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sexta-feira, março 29, 2024

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Memórias da Redação ? A ponte

A história desta semana é novamente uma colaboração de Plínio Vicente da Silva ([email protected]), ex-Estadão, atualmente professor universitário e assessor especial da Prefeitura de Boa Vista (RR). A ponte Em meados dos anos 50 do século passado, quando a televisão brasileira, recém-nascida, já dominava as técnicas de transmissões externas, tive o privilégio de ser um assíduo telespectador de jogos do campeonato paulista. Não era fácil chegar até um dos raríssimos aparelhos receptores disponíveis no complexo da Santa Casa de Misericórdia, meu endereço nos muitos anos em que lá estive internado para tratar as sequelas da poliomielite. Os jogos eram transmitidos aos domingos à tarde, e se minha memória não falha, com Aurélio Campos na narração e Ari Silva nos comentários. Perdoem-me os historiadores se estiver errado. Fiquem à vontade para me desdizerem. Mas isso é o de menos, pois envolvia toda uma logística cada vez que me entregava ao supremo esforço de ir ao encontro do televisor mais próximo, percorrer a distância entre o 3º. andar do Pavilhão Fernandinho, onde estava “hospedado”, e o prédio da Radiologia. Com o tempo meu esquema ganhou simplicidade e cumplicidade. Frederico, velho enfermeiro já quase sexagenário, passou a gostar de mim desde o dia em que declarei emocionado, a Oberdan Cattani, Waldemar Fiume e companhia, que nos foram visitar numa 5ª.feira à tarde, que era palmeirense desde pequenino. Naquele tempo era comum os times de futebol irem aos hospitais em dias de folga para levar um pouco de alegria à gurizada. Ia o time inteiro, não um ou outro jogador como ocorre hoje nas jogadas de marketing que os patrocinadores promovem para vender suas marcas. Portanto, ao saber que eu era palestrino como ele, não foi difícil convencer o velho Fred a me levar para ver os jogos na tevê. Ele passou a fazer isso com algum prazer, mesmo quando um dos times não era o alviverde do Parque Antártica. Num desses dias quem estava jogando era a Portuguesa, não me lembro contra quem. Era o ano de 1952 e a lusa estava estreando um novo arqueiro, chamado Lindolfo, que, devido às suas defesas elásticas, ao longo da sua carreira ficou conhecido como o “goleiro acrobata”. Também não me recordo do resultado, mas ficou eternizada em minha mente a imagem dele fazendo uma jogada espetacular ainda no primeiro tempo, no gol da antiga concha acústica do Pacaembu, que mais tarde daria lugar ao tobogã de hoje. Enquanto Fred empurrava a cadeira de rodas e me levava de volta ao meu quarto, passei todo o trajeto, não mais que uns cem metros, falando da defesa, da minha incredulidade por vê-lo atravessado no ar, numa simetria horizontal que o lendário Geraldo José de Almeida batizaria tempos depois de ponte. Passaram-se os anos e mais de três décadas depois, logo nos meus primeiros meses de Roraima, em pleno inverno chuvoso, fui ao município de Bonfim, fronteira com a Guiana, fazer uma matéria para o Estadão. A pauta era mostrar o balé dos botos, golfinhos de água doce, que na época da cheia sobem os rios Negro e Branco e chegam ao alto Itacutu, onde ficam se alimentando por vários dias. Não foi preciso esperar muito. No meio da tarde, as barrancas em frente ao porto da balsa que fazia a travessia – hoje substituída por uma bela ponte construída pelo Brasil – já estavam tomadas por dezenas de pessoas, que se juntaram para assistir aos espetáculos proporcionados pelos únicos mamíferos completamente aquáticos da Amazônia. Era um grupo grande, de mais de uma dúzia. Segundo os entendidos eles sobem os rios acompanhando a piracema, transformando os cardumes em presas fáceis, só indo embora quando as chuvas de setembro, as últimas do inverno tropical, começam a rarear. Embora os olhos de todos estivessem pregados nas águas do rio, eu acabei dividindo minha atenção ao me deparar com outra coincidência incrível entre as tantas que marcaram minha vida. Ao meu lado estava um tenente do Exército, recém-chegado para comandar o 1º Pelotão Especial de Fronteira. Assim como as pessoas enfileiradas ao longo do barranco, estava igualmente entusiasmado com os saltos espetaculares daqueles protagonistas amáveis e dóceis e que, por incrível que possa parecer, são ainda caçados impiedosamente por ribeirinhos sem coração. O militar tinha o perfil de um bom entrevistado e durante a nossa conversa percebi pelo sotaque que era paulista. O que ele me confirmou ao se apresentar: Lindolfo Mário de Melo Filho, natural de São Paulo, capital. Foi então que minha memória buscou lá longe, no passado distante, a figura que marcou a infância de um menino apaixonado por futebol. Sim, ele era filho do Lindolfo, aquele que, como os botos, fazia pontes acrobáticas. Eles no rio Itacutu, nas lonjuras da Amazônia; o pai dele nos campos de futebol das minhas lembranças mais distantes…

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