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sábado, novembro 23, 2024

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E foi apenas um “furo”…

Por José Maria dos Santos (!), especial para J&Cia

Numa segunda-feira, 25 de novembro de 2014, houve um evento na Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero que teve uma plateia inexplicavelmente diminuta. O espanto é pertinente, pois nessa noite foi exibido um documentário sobre o célebre “furo” internacional de reportagem relativo à morte do guerrilheiro Ernesto “Che” Guevara, feito por um grupo de alunos, acompanhado de um bate-papo instrutivo com sua autora, a jornalista Helle Alves (*), hoje com 90 anos, residente em Santos. Era de supor que, em se tratando de uma escola de Jornalismo, a primeira, diga-se de passagem, bem reputada do País, ocorresse um corpo a corpo animado para disputar os lugares, ao contrário do que ocorreu. Havia uns gatos-pingados.

Em todo caso, Ernesto “Che” Guevara (1928-1967) baixou na sala 10 da Fundação Cásper Líbero, uma vez que, depois de fuzilado na localidade boliviana de La Higuera, em 8 de outubro de 1967, esse argentino insiste em reaparecer. Mais adiante, tal referência de sabor mediúnico será devidamente explicada. Porém, antes disso, talvez seja oportuno debruçar sobre algumas peculiaridades que caracterizam um “furo”, pois isso permitirá entender a melhor a proeza de Helle Alves e lançar pistas sobre a possibilidade de se realizar algo semelhante. Esse encontro me voltou à memória, associado aos 50 anos da morte do guerrilheiro, a ser registrado no próximo dia 8 de outubro.

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O “furo”, na maioria das vezes, é um ato solitário e pessoal. Brota de uma espécie de blend constituído pela sensibilidade, acuidade e acervo de conhecimentos do jornalista, temperado pela experiência profissional. Os repórteres Bob Woodward e Carl Berstein demonstraram nas páginas do jornal Washington Post, durante a série de reportagens sobre o Escândalo Watergate, responsável pela renúncia do presidente Richard Nixon, que também pode ser compartilhado, desde que os participantes estabeleçam entre si uma “química” de casais apaixonados. Em 1968, o Jornal da Tarde atestou, no seu caderno exclusivo sobre o primeiro transplante de coração do País, o seu eventual caráter coletivo. Em tempos recentes, com abundância de exemplos, bem propositados ou não, particularmente nas áreas econômica e política, surgiu uma nova categoria de “furo” que, em vez de originar das qualidades do jornalista, decorre de vazamentos planejados, direcionados aos veículos de maior repercussão.

No caso de Helle, tratou-se do modelo mencionado na abertura do parágrafo anterior. A principal virtude dela, para obtê-lo, foi a tomada de uma decisão crucial, na qual arriscou, como se verá a seguir, seu futuro profissional. Helle resolveu simplesmente abandonar, a meio caminho, um assunto de forte apelo internacional para o qual fora designada, com todo o investimento dos Diários Associados embutido, em favor da ainda incerta prisão ou morte, na selva boliviana, do então ansiosamente procurado Guevara. Se a sua aposta não se concretizasse, possivelmente ela cairia no descrédito junto aos seus pares e à sua chefia e sabe-se lá o que seria de sua carreira a partir dali. Essa circunstância pede um resumo pormenorizado, para ser bem compreendida na sua profunda dimensão emocional.

* As legendas são reproduções das publicadas em 1967

1 – Em 1965, Ernesto “Che” Guevara, a estrela mais fulgurante da ainda mundialmente admirada Revolução Cubana (1959), a ponto de eclipsar o líder Fidel Castro, sumiu do mapa. Deixou uma comovente carta de despedida ao comandante, na qual se apresentava como um cavaleiro andante dos tempos modernos em luta pela justiça social, lançando simultaneamente no ar o mistério do seu destino. Pessoas que acreditam em reencarnações poderiam supor que o paladino Giuseppe Garibaldi, conhecido como o “herói de dois mundos”, dada a sua luta sem fronteiras pela implantação das liberdades republicanas, tivesse regressado à Terra. Seu documento de despedida era coroado por esta frase, que lhe era clássica: “Hasta la victoria siempre! Pátria o muerte!”  (“Outras serras do mundo requerem meus modestos esforços. Eu posso fazer aquilo que é vedado à sua responsabilidade à frente de Cuba, e chegou a hora de nos separarmos”, escreveu). Nos meses seguintes ao seu desaparecimento, a mídia internacional estabeleceu algo parecido com o jogo “Onde está Wally”. O sumiço de “Che” se transformou num doce e palpitante enigma que incendiava imaginações. 

No primeiro semestre de 1967 surgiram indícios de que ele estaria na Bolívia, preparando uma nova revolução. A especulação era reforçada pela eclosão da guerrilha deflagrada recentemente na região central do país. Nesse sentido, a revista Realidade, indiscutível sucesso da Editora Abril, dona, na época, dos corações e mentes da juventude escolarizada do País, publicou uma foto de “Che”, de perfil, cavalgando naquilo que parecia ser um burro, numa paisagem típica do altiplano boliviano. A matéria informava que a imagem fora feita por alguma câmera infiltrada da CIA (Central Intelligence Agency). 

2 – Helle Alves trabalhava nos Diários Associados (Diário da Noite e Diário de São Paulo), na capital paulista, conglomerado nacional que ainda era comandado pessoalmente por Assis Chateubriand, já entrevado por uma série de problemas cardiovasculares.

Fora enviada à cidade de Camiri, na província de Cordillera (Bolívia), distante 900 quilômetros de La Paz. Ali estava prestes a ser iniciado o rumoroso julgamento do filósofo francês Régis Debray, atualmente com 77 anos. Debray já ganhara notoriedade pelo livro Revolução na Revolução, transformado rapidamente em bíblia dos levantes armados de esquerda, no qual lançou o conceito do foquismo. Tratava-se de uma nova teoria de luta armada, inspirada na ação revolucionária de Ernesto Guevara, que consistia em disseminar focos localizados de combate pelo globo sob o famoso bordão “Um, dois, mil vietnãs” ou “Vietnã é o exemplo” – alusão ao enfrentamento vietnamita contra os Estados Unidos. A ideia era que tais escaramuças se transformassem em guerra de libertação, na medida em que ganhassem apoio popular. Coincidentemente, em 1967, Carlos Marighella encampou essa proposta ao criar aqui em São Paulo a Ação Libertadora Nacional (ALN). Simultaneamente, o slogan aparecia escrito nas faixas de protesto em todas as passeatas estudantis do Brasil.

Debray estava preso, acusado de organizar o movimento de guerrilha na Bolívia. Na esteira dessa acusação atrelavam-se outros crimes que lhe garantiriam várias décadas de prisão se, posteriormente, não fosse extraditado para a França, fruto de prolongadas gestões diplomáticas. Afinal de contas, a essa altura, “Che” já não pertencia mais a este mundo e estava comprovado que o inofensivo Debray sabia manejar melhor a caneta e a oratória do que o fuzil.

A Direção de Redação dos Diários Associados debruçou-se sobre o mapa da América do Sul. Considerou, levando em conta a corrida contra o tempo, que seria mais prático enviar a equipe, a bordo de um dos dois aviões bimotores da casa, até a cidade de Corumbá (MS), onde seriam dadas as vacinas de praxe para pessoas que se dirigem a áreas de endemias. De lá a equipe seguiria em voo regular para Santa Cruz de La Sierra. A partir desse ponto, alcançaria Camiri (295 km) por terra, utilizando carro alugado. Porém, uma exigência burocrática – visto especial das autoridades de segurança para entrar em zona conflagrada, conforme estava qualificada a região em razão da guerrilha – reteve os jornalistas por um dia ou dois em Santa Cruz de La Sierra. Não é necessário lembrar que a guerrilha, Guevara e Debray estavam em todas as bocas e manchetes.

A escala forçada na cidade foi providencial para a consecução do “furo”. Em função das operações militares naquele território, recaia sobre Santa Cruz, hoje com cerca de 1,1 milhão de habitantes, uma atmosfera conspiratória que lembrava Lisboa ou Casablanca durante a II Guerra Mundial, cuja neutralidade e posição estratégica no teatro dos combates atraiam todo tipo de agentes secretos. Só faltaram Humphrey Bogard e Ingrid Bergman. Nesse cenário pululavam ondas de boatos misturados a vazamentos fidedignos altamente secretos que mais ampliavam o clima de espionagem. Ora era um soldadinho boliviano que voltara das frentes de luta contra guerrilheiros e deixava escapar seu testemunho; ora era um americano bisbilhoteiro que fora surpreendido na zona rural, interrogando suspeitosamente camponeses.

Não se iludam: sempre que um segredo é do conhecimento de duas pessoas, terceiros ficarão sabendo. A presença de Guevara não fugiria dessa verdade.

Assim como ocorre com um segredo, é impossível disfarçar o necessário o impacto provocado pela movimentação de uma equipe jornalística, no Brasil ou em qualquer lugar do planeta. Assemelha-se à excitação produzida pela chegada de um circo em uma cidade. Repete-se a mesma expectativa febril. Essa metáfora permite afirmar que, de algum modo, nós, jornalistas, temos afinidade com os palhaços. Por favor, não me entendam mal, embora, pessoalmente, não considere essa identificação como algo depreciativo. Palhaços, por aquilo que representam – e cada um de nós pode escolher o sentimento que melhor convier nesse sentido – estabelecem empatias imediatas que derrubam barreiras entre as pessoas. Jornalistas são assim. Enturmam-se com impressionante facilidade. A imprensa, felizmente, ainda é percebida como um serviço institucional legítimo a serviço do bem comum, com o qual todos gostam de colaborar – à exceção, é claro, daqueles que não apreciam a transparência das coisas. De modo que, sob tal guarda-chuva, Helle pode recolher informações, somá-las com suas observações a respeito de manobras inusitadas de tropas, sopesar os resultados para concluir que Ernesto “Che” Guevara estava pelas redondezas e que sua queda era iminente.

Dominada por esse pressentimento, comunicou à chefia, em São Paulo, que iria desprezar o julgamento de Régis Debray em favor do novo objetivo. Os chefes deixaram a escolha ao seu critério. O que mais podiam fazer? Na sua opção individual, Helle tomou o caminho que poderia conduzi-la para o céu. Ou, em caso de fracasso, atirá-la nos braços do capeta. Pessoas que enfrentaram expectativas ansiosamente aguardadas e não materializadas sabem do que estou falando.

Quem conhece a célebre fábula do “pulo do gato” entende que procedimento como aquele adotado por Helle jamais será ensinado em uma aula de Jornalismo como se fosse o Teorema de Pitágoras, ou os conceitos de texto imaginados pelo francês Roland Barthes. O professor, no máximo, poderá trazer para a sala – apoiado, aliás, nos princípios do filósofo citado, relativos à escrita – exercícios de capacitação a partir de experiências conhecidas e bem-sucedidas, como se fosse uma sequência interminável na linha do tempo. Talvez essa seja a melhor maneira de despertar/cultivar a acuidade e o senso de oportunidade adaptados às situações que se apresentem a um repórter em ação.

Existem exemplos criativos e/ou emocionantes. Provavelmente, um dos mais significativos seja o do repórter da revista Time que procurou o pintor Pablo Picasso para fazer matéria alusiva, salvo engano, aos seus 70 anos. Ocorreu-lhe levar uma fotografia ampliada do artista, tipo 3×4, que deixou cair displicentemente sobre a mesa enquanto fazia seu trabalho.  Um dos impulsos irresistíveis das pessoas – particularmente os pintores, desenhistas e arquitetos – é o de garatujar em papel enquanto falam. Melhor ainda se for alguma imagem. O jornalista apostou nesse hábito próprio de seres humanos. De modo que Picasso, enquanto ia respondendo às perguntas, divagando aqui e ali, colocava, de próprio punho, óculos na sua foto, fez um bigode e depois o cavanhaque. Time reproduziu a obra sob o título Picasso By Picasso. Na carta semanal, o editor-chefe detalhou a simpática trama na qual o pintor fora enredado.

No Brasil, talvez o exemplo mais próximo desse oportunismo bem-vindo tenha sido dado por Samuel Wainer na sua célebre matéria em que Getúlio Vargas anunciou sua volta à política para 1950. Eis os fatos: Samuel era repórter de O Jornal, do Rio de Janeiro, pertencente aos Diários Associados naqueles fins dos anos 1940. Getúlio achava-se enfurnado na sua Fazenda Itu, arredores de São Borja (RS), embrulhado na sua bombacha e sorvendo seus intermináveis charutos, após ser deposto do poder em 1945. O ex-ditador estava recluso e aparentemente esquecido nos confins do pampa gaúcho, próximo à fronteira com a Argentina. Para todos efeitos, havia se aposentado, antecipando o personagem do coronel decadente que Gabriel Garcia Marquez iria criar décadas mais tarde. Era o ano de 1947.

Samuel Wainer sobrevoava a região de São Borja em um dos aviões da empresa. O piloto apontou para o solo e identificou a propriedade. Samuel pediu que pousasse. Segundo me contou (**), orientado pelo próprio Chateaubriand, estava fazendo uma série de reportagens sobre o cultivo de trigo no Rio Grande do Sul relativa à autonomia do Brasil sobre a dependência portenha do produto. Samuel supunha que o isolamento e a distância do Rio de Janeiro num encontro relaxado na varanda da casa, sob efusões do chimarrão, contribuiriam para a loquacidade de Getúlio, embora tivesse certeza de que o “Velho”, como era conhecido, fosse um perfeito jogador do xadrez político. Seja como for, Samuel voltou à toque de caixa para o Rio com a manchete Eu voltarei (1950) como líder das massas

Por volta das quatro horas da tarde do dia 10 de outubro de 1967, Helle entrou na redação dos Diários Associados, na rua Sete de Abril, 230, primeiro andar. Trazia as fotos do corpo de Ernesto “Che” Guevara, exposto no dia anterior em Valle Grande, clicado pelo fotógrafo Antonio Moura, a serem exibidas em primeira mão (***). No seu bloco de anotações estavam registradas as informações do texto que escrevera e mandara por telex a Aderbal Figueiredo e Fernando Asprino, secretários de redação respectivamente do Diário de São Paulo e do Diário da Noite, e que iriam render outras matérias nos dias seguintes.

Corpo de Ernesto “Che” Guevara, clicado pelo fotógrafo Antonio Moura

Ao contrário do que seria de esperar, o seu “furo” de reportagem não mereceu festejos dos colegas. Na verdade, foi recebido com deliberada frieza, e isso se deveu, mais do que a eventuais pontadas de inveja, ao alinhamento ideológico em torno do mito eliminado. A morte de Guevara representou, para boa parte da esquerda brasileira e, dentro dela, uma parcela expressiva formada por jornalistas, a derrota de uma esperança que, de pronto, restringiria efusões de júbilo. Não é à toa que a imagem de Che continue aquecendo o coração da juventude como reencarnação de Dom Quixote de La Mancha e que seu corpo insista em não baixar de vez à sepultura. No momento, ele se encontra no mausoléu de Santa Clara, no norte de Cuba, exibindo, desafiador, seu bigode à Cantinflas.

No fundo, Helle Alves desempenhou, involuntariamente, o difícil papel dos portadores de más notícias que povoam as tragédias gregas. É de se perguntar se o baixo quorum do evento referido na abertura deste texto não tenha a ver com isso.

(*) Helle Alves é minha sogra. Conheci minha mulher por meio dela. A propósito, até hoje Helle insiste em dizer que me convidava para almoçar aos domingos na sua casa, no Sumaré, em nome da minha vulnerabilidade alimentar de rapaz pobre vindo do interior (Jaú-SP).

 

(**) Em 1969 fiz parte de um “exército brancaleone” convocado para recuperar o jornal Última Hora no Rio, quando Samuel Wainer retornou do seu exílio voluntário na França, estabelecido a partir de 1964. Lá fiquei por cerca de oito meses, sem receber sequer um cruzeiro novo. Porém, pagaram-me a moradia, no lendário “Solar da Fossa”, na rua Lauro Miller, que era uma espécie de mosteiro hippie em Botafogo. Ali não havia divisão entre o dia e a noite e talvez o relógio fosse visto como invenção absolutamente sem sentido. Caetano & Cia moraram lá. Quando cheguei, também aportavam aqueles que viriam ser os Novos Baianos. Concluí que o projeto de recuperação da UH seria inviável por dois motivos: 1) O recente AI-5 jamais permitiria seu reflorescimento; 2) Um dos blocos da rotativa, segundo queixou-se para mim um dos gráficos, estava preso com um novelo de arame. Mas Samuel continuava o mesmo: carismático, alto e elegante nas habituais camisas azuis com gravata bordô; óculos sobre a cabeleira branca e dois faróis azuis no lugar de olhos; majestoso no seu entusiasmo permanente e envolvente.

 

(***) Antonio Moura, ou “Mourão”, assim chamado para ser distinguido de “Mourinha”, outro fotógrafo dos Diários Associados, me contou que após algumas semanas da morte de Che foi procurado por um sujeito falando em nome do governo cubano. Pediu, para efeito de investigação e comprovação, um jogo de todas as fotografias do cadáver que havia feito. Estava bem informado, pois, de fato, “Mourão”, consciente da importância do acontecimento, havia fotografado minuciosamente o corpo de Che, da cabeça aos pés, parte a parte. As mais impressionantes se referem aos olhos abertos e à mão direita semipendente.

 

(!) José Maria dos Santos ([email protected]) passou pelos Diários Associados, foi repórter de Quatro Rodas, editor de Claudia, Veja, Placar, Manequim e Guia Quatro Rodas, na Abril, e editor e colunista do Diário do Comércio, de São Paulo, entre outros. Atualmente aposentado, escreve para a Revista do Historiador, da Academia Paulista de História, da qual é um dos acadêmicos, além de atuar como voluntário na campanha do desembargador Walter Fanganiello Maierovitch a deputado pelo Parlamento italiano nas eleições de março próximo, para ocupar uma das três vagas a que cidadãos italianos nascidos na América do Sul têm direito. J&Cia dará proximamente detalhes dessa atividade de Zé Maria.

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