A história desta semana é de Antonio Carlos Seidl ([email protected]), ex-assessor-chefe de imprensa do HSBC, ex-correspondente da Folha de S.Paulo em Londres e ex-produtor do Serviço Brasileiro da BBC de Londres, hoje atuando como consultor em Comunicação Corporativa. Thanks for the Memory Uma homenagem à memória de Ivan Lessa (foto), um grande nome em redações deste e do outro lado do Atlântico, jornalista, escritor, tradutor e cronista admirado e polêmico, é o tema desta seção nesta semana. E as minhas lembranças dessa estrela da imprensa internacional começam na hora do almoço de uma quarta-feira cinzenta de 1986 no Topo Gigio, a cantina italiana preferida de Ivan no Soho, bairro boêmio de Londres, terra que ele escolheu para viver por 34 anos e meio, desde que deixou o “Bananão” por vontade própria em janeiro de 1978, até a morte no dia 8 do mês passado. Honrado pelo convite para o repasto, lá estava eu com um dos baluartes do saudoso Pasquim, minha leitura mais prazerosa nos anos 1970 e então colega do Serviço Brasileiro da BBC, à espera de um ilustre convidado, que, homem de letras, também passara pela Redação da BBC em Londres. – Salve o grande cronista! –, exclamou Ivan, saudando a chegada de Fernando Sabino (1923-2004) ao restaurante. – É a mãe! –, retrucou impromptu Sabino, referindo-se, com o devido respeito, a Elsie Lessa (1914-2000), a mulher que trouxe Ivan ao mundo, e que, com um texto refinado, delicado e com profundo senso de observação, contava a seus leitores as histórias de viagens pelo mundo em suas crônicas na coluna Globe-Trotter, do segundo caderno de O Globo. Fiquei emocionado em testemunhar a irônica troca de gentilezas dos colegas de BBC. Antes de ir para Londres em 1978 para fazer um mestrado na London School of Economics e trabalhar na BBC, as colunas da mãe, no jornal dos Marinho, e a do filho, no icônico Pasquim, eram leituras obrigatórias, uma espécie de mestrado para curtir Londres. Elsie Lessa, na ocasião, morava em Londres. Com ela aprendi muito sobre os hábitos, tradições e o caráter dos ingleses, em geral, e londrinos, em particular. Aprendi também a gostar do Royal Borough of Kensington and Chelsea e de suas atrações, onde depois morei por quase 15 anos. Uma vez lá, inclui em meus passeios visitas às casas de chá, feiras de antiguidades, museus e parques que ela descrevia com verve e graça de um enorme talento para escrever crônicas. Com o filho, divertia-me com as Cartas de Londres e com os Diários de Londres, suas colunas no célebre Pasquim, onde Ivan encarnava o personagem Edélsio Tavares, que com irreverência, sarcasmo e humor contava suas aventuras na capital britânica ao seu fictício amigo Caldas Marombão, que ficara em Ipanema. Foi com Edélsio que me iniciei, cautelosamente, na culinária indiana, presente em cada esquina de Londres e, até hoje, tão rara no Brasil. Em uma de suas cartas a Caldas, Edélsio narrou uma conversa dele com o indiano Zulfimar, que ele chamava de Zulfa, um de seus “comparsas” dos pubs da, como dizia, “Estrada da Corte do Conde” (Earl’s Court Road). – Estou aprendendo a comer indiano, não o Zulfa, mas a cozinha Tandoori, que é tudo que entra num forno enorme e que sai dando tapa em culinária baiana e endemia rural. Nossas pimentas, perto dos molhos deles, parecem quindim ou baba de moça. Com essa peça de cultura utilíssima, evitei queimar a língua na minha primeira vez em um restaurante indiano em Londres. Já na invejável condição de colega das transmissões em ondas curtas da BBC para o Brasil, pedi a Ivan para escrever uma crônica sobre Londres para uma edição especial do caderno de Turismo da Folha de S.Paulo. Ele topou na hora. Combinamos o prazo. Dias depois, ele me trouxe o texto datilografado em duas laudas, com algumas correções feitas a caneta. E ficamos sabendo que, nas palavras dele, a primeira coisa que descobriu “sobre a cidade à beira-Tâmisa espraiada” foi que Londres não é um “estado de espírito”: – Querem toda a verdade sobre Londres? –, perguntou Ivan em seu texto. – Eu conto. É tudo um bando de estrangeiros metidos a falar inglês e eu não quero intimidade com eles. A gente dá os pés e querem logo pegar nas mãos, dizendo rauduiudú. Ivan não queria intimidade com os “ingleses”, mas era um amigão de seus colegas da BBC, uma referência de bom humor e cultura na nossa Redação – formada por profissionais bem mais jovens – para os assuntos do passado, pois, conforme bem definiu Ruy Castro na seção Memória da “ilustríssima” na Folha, Ivan tinha “complexo de Peter Pan”, seu sonho era estacionar no passado. Cinema, música e literatura eram seus temas preferidos. Generoso, tinha satisfação em repassar a um colega as edições lidas da The New York Times Review of Books, da qual era assinante, a outro seus antigos elepês aos poucos substituídos por CDs, a outros livros raros que desencavava nos sebos da Charing Cross Road. A mim me coube um cassete que guardo com carinho até hoje. Sim, uma fita cassete. Na pele de Edélsio, Ivan revelou o seguinte a Caldas em carta de 4 de março de 1981: “Saio cada vez menos de casa. Sinto-me como se tivesse encontrado, finalmente, depois de tanto zanzar, o meu canto. Nele me afundo com meu milhão de melodias, minhas cem páginas de gibis mensais… E preparo na mente cassetes, cavalgando meus discos. Como preparo cassetes!”. Num papo regado a Carlsberg Special Brew, nossa marca preferida de cerveja no pub da BBC, uma verdadeira extensão das mais de 40 Redações do Serviço Mundial da BBC, confessei-lhe que estava brindando ao fim de um caso. Feliz porque acontecera e não triste porque acabara, cantarolava naqueles dias Thanks for the Memory, para me lembrar com carinho dos altos e baixos daquela experiência. Certamente depois de “cavalgar seus loucos corcéis”, ele me surpreendeu me dando um cassete com várias versões da música composta em 1938 por Ralph Rainger e Leo Robin, desde a original com Bob Hope e Shirley Ross, vencedora do Oscar de melhor música no filme The Big Broadcast, passando por Dorothy Lamour, Ella Fitzgerald e Frank Sinatra. De quebra, no lado B, mais dor de cotovelo nas vozes de Dick Farney e Dorival Caymmi e, como não poderia deixar de ser, a gloriosa I apologise, na voz inconfundível de Billy Eckstine, sua preferida e que tão bem imitava enquanto “batucava as pretinhas” na Redação da BBC à beira do Tâmisa.