Por Luciana Gurgel
A morte do britânico Tom Moore, que se tornou uma celebridade da pandemia ao arrecadar mais de £ 33 milhões para o sistema público de saúde por meio de um desafio de caminhada no jardim, faz refletir sobre acertos e erros em estratégias de comunicação.
O centenário veterano de guerra entrou para o Guinness e foi condecorado pela Rainha, sonho dos súditos. Virou símbolo, associando sua imagem à valorização dos profissionais de saúde e inspirando a população a aguentar firme os solavancos da Covid.
Mas acabou sendo vítima da doença, que pode ter sido contraída após uma viagem a Barbados com a família no Natal, um presente da British Airways.
O tratamento da notícia por parte da imprensa e de boa parte da sociedade, elegante e sem recriminações, referenda o conceito de relações públicas cunhado por Al Golin, fundador da agência Golin e reconhecido como uma das maiores personalidades da história da atividade. Trata-se do Banco de Confiança, em que depósitos são feitos ao longo do tempo para serem resgatados nas crises.
A morte de Moore foi tratada como fatalidade, em que pese o fato de que sua idade tornasse pouco indicado encarar uma viagem internacional para hospedar-se em um resort. E de ela ter acontecido em um momento em que viajar não estava legalmente proibido, mas a recomendação oficial era de que só se viajasse em caso de absoluta necessidade, já que o pais ingressara na segunda onda da pandemia.
Mas pouco se falou sobre isso. O capital de imagem do simpático Capitão fez com que sua contribuição positiva dominasse a narrativa, deixando de lado um possível jogo de culpas em torno da decisão da família de viajar ou da companhia aérea de oferecer o presente.
Também a British Airways saiu praticamente ilesa do que poderia ser um grande transtorno. Além de tomar emprestado um pouco do crédito do veterano, ela própria tem créditos em seu banco de confiança, pois é tida como patrimônio nacional pelos britânicos
Até houve quem criticasse o presente nas redes e classificasse a iniciativa como golpe de RP. Mas a companhia livrou-se de uma condenação por parte de autoridades de saúde ou da imprensa, que adotou a elegância britânica e optou por destacar a contribuição positiva do veterano.
De qualquer forma, a história serve para lembrar aos profissionais de RP sobre a necessidade de avaliação criteriosa dos riscos antes de embarcar em uma oportunidade de visibilidade para a marca ou para o cliente. Um desfecho negativo como o que acabou acontecendo com o veterano tem o potencial de transformar a oportunidade em crise.
Mas ainda que a imagem de todos tenha sido preservada, há um legado negativo: o do exemplo. Quando insatisfeitos pressionam pelo fim do isolamento, saber que Tom Moore viajou para os trópicos enquanto boa parte do país ficava em casa sob o frio, passando o Natal com no máximo seis familiares, transmite uma mensagem oposta à que as autoridades de saúde tentam passar.
QAnon encontra novas redes e infiltra-se no mundo da ioga
É um exemplo que vem em má hora, pois conspiracionistas continuam à solta nas redes sociais, inclusive os adeptos do QAnon. Eles até reduziram a presença no Twitter em 60% desde os tumultos em Washington, como aponta estudo de uma consultoria britânica que usa inteligência artificial para monitorar as redes.
Mas encontraram novos refúgios, como a Clapper, uma novidade que está sendo comparada a um TikTok sem moderação. E invadiram o mundo da ioga, com influenciadores da prática disseminando teses antivacina e contra o isolamento social entre os praticantes.
Para o pesquisador Marc-André Argentino, da Universidade canadense de Concórdia, o QAnon não está extinto após a posse de Joe Biden. E a invasão do Capitólio mostrou como a desinformação online tem consequências offline.
Publicar ou ou não publicar?
O QAnon e outros grupos radicais fazem esquentar o debate que desafia as redações desde os tempos da prensa de tipos móveis de Gutemberg: tudo deve ser publicado?
Para o jornalista e professor da Universidade de Melbourne Denis Muller, não. Ele acha que alguns fatos não devem ser noticiados pelo risco de estimularem extremismo político, terrorismo ou a cultura do cancelamento.
Referindo-se a Donald Trump, Muller questiona até se a imprensa é obrigada a publicar inverdades, mesmo que ditas por um presidente. E faz reflexões sobre a qualidade jornalística de tudo o que viraliza nas redes e sobre o que é censura.
Nem todos os males atuais podem ser colocados na conta da pandemia. Mas algumas questões ganham mais relevância durante a crise que muitos comparam a uma guerra, pois as consequências sociais da viagem que se patrocina ou da notícia que se publica são mais graves na crise do que em tempos de paz.
Veja em MediaTalks: QAnon encontra novas redes e infiltra-se no mundo da ioga e Publicar ou não publicar, eis a questão.
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