ESPECIAL: DIA DO JORNALISTA
O cego Assis Ângelo (sim, ele detesta ser chamado de deficiente visual, diz que é cego e ponto) é só inquietação desde que, oito anos atrás, deixou de ver as cores, os formatos, as silhuetas e os contornos do mundo, pelo descolamento das retinas. Viu-se obrigado pelas circunstâncias da doença a trocar a luz da visão que o acompanhou por pouco mais de 60 anos pelas trevas da escuridão, nesses últimos oito.
E por que toda essa inquietação?
Óbvio, quem um dia enxergou, ficar cego, do dia para a noite, literalmente, é como receber uma sentença de morte.
Óbvio, quem sempre teve muitos amigos e foi o tempo todo rodeado por eles, ver-se de um momento para outro todos (ou quase todos) se afastarem, é como perder o chão e entrar em queda livre num abismo quase sem fim.
Tudo isso é óbvio, mas o que não é tão óbvio e é mais determinante na saga do cego Assis é a vontade de trabalhar; mais do que isso, a capacidade de trabalhar.
Sim, porque, como ele faz questão de dizer, perdeu a visão dos olhos, mas não perdeu a voz nem os outros sentidos e muito menos a capacidade de realizar coisas. Continua fazendo jornalismo diariamente, escreve poesias, faz a coluna semanal do Jornalistas&Cia, acompanha (por rádio e pelo áudio da televisão) tudo o que se passa no mundo e no jornalismo, e tem uma memória prodigiosa, que, somada ao seu talento e determinação, lhe permitiriam fazer muitas coisas, como ancorar um programa de televisão para deficientes ou um programa de rádio sobre cultura popular.
Mas o trabalho, aquele que dignifica o homem, que lhe dá sustento, satisfação, prazer, realização, este não chega, porque ele está invisível, porque não lhe atribuem uma capacidade que ele sabe que tem e que vez ou outra até consegue demonstrar, quando o chamam para fazer alguma palestra Brasil afora (antes, eram dezenas por ano), em que pese a pandemia hoje ser restritiva para deslocamentos.
Por que ele não poderia liderar um novo projeto de cultura popular, tantos já concebeu para inúmeras organizações, como Metrô de São Paulo, Sesc, Correios etc.?
O que o impediria de voltar a apresentar um programa de rádio, como São Paulo Capital Nordeste, que apresentou por anos na Rádio Capital, líder de audiência no horário?
O problema é que o cego Assis ficou invisível, como milhões de pessoas com deficiência nesse País.
E quer trabalhar, mas não consegue. Pede socorro ao mercado e aos eventuais contratantes, mas não é ouvido. Quer conversar, falar de seus projetos, da situação política do País, mas não tem com quem, esquecido que foi pela grande maioria dos amigos. Mantém com grande sacrifício, inclusive financeiro, um blog para que possa exercitar sua prosa e sua mente diariamente, com comentários críticos sobre a política e amorosos sobre a cultura popular, da qual é hoje, sem dúvida, um dos maiores conhecedores e estudiosos, dono de um acervo com perto de 150 mil itens, que mantém com grande zelo em seu próprio apartamento, no bairro paulistano dos Campos Elíseos.
Pois foi desses encontros com o cego Assis que nasceu a ideia de fazer este especial, dando guarida às suas críticas de que o Brasil não enxerga seus mais de 40 milhões de pessoas com deficiência, número que ele faz questão de dizer que colheu do censo do IBGE de 11 anos atrás.
“Eu posso fazer um programa para todos os deficientes, todas essas pessoas que se tornaram invisíveis, que estão jogadas num canto de algum lugar, muitas vezes escondidas pelas famílias. Para os cegos, como eu, para os surdos, mudos, para os paraplégicos. Enfim, colocar a deficiência no horário nobre, para mostrar que neste mundo há seres humanos com desejos, necessidades, amores, seres humanos consumidores, que só querem ter a oportunidade de deixar de ser um número para ganhar visibilidade e dignidade”.
Foi esse grito de Assis, estridente, mas que tem ecoado em poucos ouvidos, que nos motivou a dedicar o especial do Dia do Jornalista aos jornalistas com deficiência, numa modesta mas relevante contribuição que acreditamos fazer para a causa da inclusão. E mais do que depressa, quando tomamos a decisão, convidamos outro colega que há anos colabora com J&Cia, nestas páginas, para liderar o especial: Plínio Vicente da Silva, ele próprio que traz da infância graves sequelas da poliomielite, com as quais desde então convive, sem ter se deixado por elas abalar – entrou para o Jornalismo ainda jovem, para nunca mais dele sair. Só de Estadão foram 25 anos. E hoje, lá de Roraima, onde vive com a família, divide-se entre aulas, palestras, assessorias e os brilhantes textos que escreve, entre outros, para este J&Cia, com seu Tuitão quinzenal e frequentes colaborações para o Memórias da Redação.
Ao Plínio, a Assis e a todos os personagens maravilhosos desta edição os nossos agradecimentos e a certeza de que, com eles, estamos homenageando todos os jornalistas e todas as pessoas com deficiência desse Brasil tão machucado e maltratado e que pouco olha para eles como deveria.
Também os agradecimentos às marcas que nos apoiaram e que, como nós, se sensibilizam com a causa da deficiência, certamente porque também elas hoje se debruçam sobre esse universo, buscando dar aos deficientes não só um bom lugar para trabalhar, mas, sobretudo, dignidade.
Confira a edição especial do Dia do Jornalista!
Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli