Por Sérgio Vaz
Houve uma época em que na redação do Jornal da Tarde tinha mais pares de mãos do que teclados de Olivetti. Na verdade, bem mais – e era uma briga, uma batalha.
Havia quem amarrasse a Olivetti que chamava de sua à mesa. Amarravam mesmo, com grossos barbantes. Faz tempo demais – isso foi ainda na Major Quedinho, no então glorioso, maravilhoso Centro da cidade, e portanto antes de 1976, o ano em que a S.A. se mudou para o longínquo Bairro do Limão, do outro lado do Rio Tietê. Assim, não consigo me lembrar de quem tinha esse costume de amarrar a Olivetti à mesa; creio que o Randáu Marques era um deles, mas não tenho certeza.
Não importa.
Lembro é que havia os que se divertiam em cortar os barbantes dos que se diziam donos das Olivettis em que trabalhavam. Tinha neguinho que, ao contrário, gostava de lembrar a todos que as Olivettis não eram de fulano ou sicrano ou de outro – eram dos Mesquitas, diabo, e não do repórter fulano, do copydesk sicrano.
Por essa época eu era copydesk – e me lembro vagamente de que, quando chegava para trabalhar, tinha que sair à cata de uma Olivetti.
Mas isso tudo até aqui foi um grande nariz de cera. O que eu pretendia contar é que havia uma Olivetti que ninguém queria saber de roubar. A do Lenildo Tabosa Pessoa.
Seria preciso falar um pouquinho que fosse de Lenildo Tabosa Pessoa.
Lenildo era articulista e editorialista. Pernambucano, sotaque arretado – a rigor, creio que ele treinava em casa para não perder o sotaque, e até mesmo para exacerbá-lo. Um tanto mais velho que a imensa maioria das pessoas na redação – se não me engano, Lenildo tinha ali uns 40 e poucos quando a média girava em torno dos 30.
Mas a idade não era o principal diferencial do Lenildo em relação a, digamos, 97,8% da redação.
Lenildo era um direitista. Conservador. Um danado de um reaça.
Inteligentíssimo.
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Faço aqui um rápido parênteses.
Cheguei ao JT com 20 anos de idade. A quantidade de pessoas inteligentes, brilhantes mesmo, naquela redação era um absurdo. Um absoluto absurdo.
Mesmo levando isso em consideração, Lenildo era um exagero. A inteligência do cara soltava faíscas – o que era uma merda para a gente aceitar, porque, cacete, nego de direita, reaça, em geral é burro! (Era o que a gente pensava, jovens demais…)
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O apelido de Lenildo Tabosa Pessoa na redação era Lenildo Babosa Pessoa.
Era um católico sério, seroiíssimo. Acho que era o católico mais devotado de todos os jornalistas que conheci – mais até do que o José Maria Mayrink. Mais que o Melchíades Cunha Júnior.
Pré-concílio, evidentemente. Para o Lenildo, o papa João XXIII era um diabo de um comunista.
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Mas não é isso que importa.
A historinha da redação é apenas que ninguém jamais roubava a Olivetti do Lenildo.
Não porque ela estivesse amarrada.
Lenildo, com o cuidado de um jesuíta, havia trocado todas, todas, absolutamente todas as teclas de plástico da sua Olivetti. Na tecla do a estava lá, digamos, a identificação do z. Na tecla do z, a identificação do m. Na tecla do P, o pedacinho de plástico que dizia X.
Para usar a Olivetti do Lenildo, só os mais exímios datilógrafos. Os neguinhos que haviam feito curso de datilografia. Que eram capazes de digitar olhando para a lauda, e não para o teclado.
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Às vezes me lembro da Olivetti do Lenildo porque há um fenômeno recorrente nos teclados que uso: é comum que as letras vão desaparecendo das teclas. Sei lá porque isso acontece comigo e não com todo mundo, mas é o que acontece.
Mary reclama quando tem que usar meu teclado – mesmo sendo filha da Dona Lúcia, que deu aula de datilografia pra um monte de gente em Belo Horizonte. Mas essa, definitivamente, é outra história.
A história desta semana é uma das que Sérgio Vaz publica em seu site 50 Anos de Textos (é de janeiro de 2021). Ex-Jornal da Tarde, Afinal, Agência Estado, Marie Claire e Estadão, entre outros, Sérgio também edita o site 50 Anos de Filmes.
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