Por Luciana Gurgel
Aos 81 anos, o ator britânico John Cleese teve mais sorte do que humoristas contemporâneos, que hoje pisam em ovos para evitar piadas que os façam vítimas da cultura do cancelamento.
Décadas atrás, quando ele inspirou gerações de atores cômicos com atuações inesquecíveis nas irreverentes séries Monty Phyton e Fawlty Towers, não havia tal preocupação.
Pela sua trajetória artística, Cleese virou ídolo. Mas não para todos. Seu posicionamento conservador na vida real desagrada a muitos colegas de profissão, mais alinhados a valores progressistas. E a uma parcela do público, descontente com sua defesa do Brexit.
Com esse histórico, não soou estranho o anúncio de que ele vai estrelar (em data a ser confirmada) uma série no canal Channel 4 explorando como o chamado “politicamente correto” afetou a comédia. O nome é provocativo: John Cleese: Cancel Me (cancele-me).
Cleese emprestará sua popularidade para validar o questionamento que setores da sociedade, das artes e até o Partido Conservador, que governa o país, fazem sobre a cultura do cancelamento no Reino Unido.
Ele promete ir fundo no debate sobre o que é piada, o que é ofensa e até onde a pluralidade de ideias pode chegar. Por meio de entrevistas com pessoas “canceladas”, o programa propõe-se a investigar por que uma nova “geração woke” está “tentando reescrever as regras sobre o que pode e o que não pode ser dito”.
A palavra woke (acordado, em inglês) define quem despertou para a importância de combater racismo e discriminação. Para Cleese, esse despertar não é necessariamente bom.
“Estou feliz por ter a chance de descobrir todos os aspectos do chamado politicamente correto. Tem coisas que eu não entendo, tipo: como a ideia impecável de ‘Vamos todos ser gentis com as pessoas’ foi desenvolvida, em alguns casos, ad absurdum.
Quero trazer os vários argumentos para que as pessoas possam ter mais clareza em suas mentes com o que concordam, com o que não concordam e sobre o que ainda têm dúvidas.”
Mesmo longe das telas, ele não se livrou das polêmicas que atingiram muitos programas de humor. Em 2020, classificou de “estúpida” a decisão do serviço de streaming da BBC de remover uma cena do Fawlty Towers gravada em 1975, em que o Major Gowen usou a “palavra com N” (pior xingamento a um negro em inglês) para referir-se ao time de críquete das Índias Ocidentais.
A cena acabou ficando, com uma mensagem de alerta. Mas o episódio mostrou sua irritação com o revisionismo.
Revisionismo nas artes, na mídia e na academia
No Reino Unido, esse revisionismo vem motivando reações no mundo das artes, na mídia e na academia.
O lançamento da emissora GB News, em março, é um exemplo. Ela nasceu com apoio do Partido Conservador e é financiada por expoentes do conservadorismo, com a declarada missão de não se submeter ao politicamente correto. Deu voz a figuras polêmicas como o político Nigel Farage, que não hesita em vociferar contra imigrantes e minorias em rede nacional.
As universidades britânicas têm sido palco de embates envolvendo retratos e esculturas de figuras associadas ao colonialismo e à escravidão. E sobre o direito de palestrantes compartilharem visões consideradas politicamente incorretas, com vetos seguidos.
Sobrou até para a rainha Elizabeth, que teve um retrato seu removido da parede de uma faculdade por decisão de estudantes.
Nesse ambiente polarizado, o programa de John Cleese vai atrair audiência dos que já concordam com sua tese. E provocar reação dos que discordam da ideia de que não se pode perder a piada mesmo quando ela ofende alguns ou fortalece preconceitos.
A depender do tom, pode ser uma boa contribuição para o debate, ajudando a encontrar o ponto de equilíbrio. Ou servir de combustível para referendar o uso da mídia e das artes como veículos para validar comportamentos nocivos à sociedade “empacotados” como humor.
Inscreva-se em [email protected] para receber as newsletters MediaTalks trazendo notícias, pesquisas e tendências globais em jornalismo e mídias sociais.
- Leia também: Opinião | Erros e acertos na crise