Por Luciana Gurgel

Luciana Gurgel

Na semana em que duas tragédias foram extensivamente cobertas pela imprensa − o acidente da cantora Marília Mendonça e a morte de oito jovens no show do rapper Travis Scott nos EUA −, a conduta do jornalismo em situações que envolvam vítimas e suas famílias foi objeto de um relatório produzido pelo grupo britânico Survivors Against Terror.

O trabalho é resultado de uma pesquisa feita pela Kantar com feridos em ataques terroristas, testemunhas, parentes de vítimas fatais e de pessoas atingidas.

Embora o foco seja em terrorismo, as sensações compartilhadas pelos entrevistados podem ser aplicadas também a acidentes comuns ou violência urbana. E ajudam pensar nos limites entre informar o público e ferir sentimentos de vítimas ou parentes de quem perdeu a vida. Uma reflexão que repórteres e editores fazem diariamente ao tomar decisões sobre como abordar tragédias.

Os participantes nas entrevistas em profundidade foram selecionados entre pessoas envolvidas em atentados no Reino Unido, como os da Manchester Arena e da London Bridge, no ataque à sala de concertos Bataclan em Paris e em atos terroristas em Tunísia, Bali e Bruxelas.

O nome é sugestivo: A Second Trauma (Um Segundo Trauma), tratando do que a organização classifica como “intrusão da mídia”.

No relatório, o SAT diz reconhecer o papel vital que a imprensa desempenha em manter o público informado sobre o terrorismo e seus impactos. Mas aponta que 59% dos sobreviventes disseram ter sofrido intrusão, importunação, pressão, deturpação e invasão de privacidade.

Quase a metade dos casos aconteceu nas primeiras 24 após o atentado, das mais variadas formas, como abordagem em perfis de redes sociais, na porta de casa, por meio de parentes e até dentro do hospital.

Houve relatos de crianças informadas por jornalistas que familiares foram mortos antes que os pais dessem a notícia. Ou repórteres avisarem equivocadamente a parentes que seus entes queridos estavam vivos.

E em um país conhecido pela agressividade dos tabloides, as críticas não foram somente a eles. Segundo o SAT, o problema é “endêmico”, envolvendo quase todos os jornais e TVs, até a sóbria BBC.

Um participante disse que “o pior eram os freelances”, ávidos por emplacar pautas em grandes jornais e até fingindo trabalhar para eles para arrancar declarações.

Ao descreverem o impacto do assédio, os entrevistados usaram palavras pesadas: assustado, ansioso, furioso, aterrorizado, oprimido, intimidado, traído, vitimizado.

A condenação não é geral: 52% deles relataram experiências positivas com a imprensa. Mas a reprovação é muito alta.

Imprensa precisa mudar a cobertura de tragédias
O avião de Marília Mendonça acidentado
Tumulto matou oito jovens no show de Travis Scott

Incentivo ao terrorismo

O estudo mostrou ainda que muitos veem com preocupação a forma como o jornalismo cobre os atentados, não apenas pelo impacto pessoal mas também pelos efeitos sobre o crescimento do terrorismo.

Cerca de 90% dos sobreviventes discordam da veiculação de nomes dos terroristas. Mais de 80% dizem que vídeos feitos por eles não deve ser exibidos, mesmo parcialmente. E 98% concordam que “manifestos” não devem ser tornados públicos.

Soluções

O relatório apresenta seis recomendações, incluindo um acordo voluntário para não contatar os enlutados e gravemente feridos pelo menos nas primeiras 48 horas após um ataque. Propõe que fotos de pessoas enlutadas ou feridas não sejam usadas sem permissão de parentes.

Pede a criação de um “centro de apoio aos sobreviventes” e de um sistema para confirmar fatalidades para a mídia apenas depois que as famílias forem informadas. E sugere que os veículos que não sigam as regras sejam banidos de coletivas.

O SAT finaliza com uma mensagem dura para os jornalistas e veículos que cobrem ataques terroristas:

“Claro que existe um legítimo interesse público em tais ataques, mas isso não significa que os sobreviventes devam ser tratados como alimento para jornalistas famintos por notícias.

As medidas foram apresentadas aos órgãos que regulam a imprensa britânica, e algumas podem até ser incorporadas à prática jornalística. Mesmo que não sejam, o relatório tem o valor de chamar a atenção para algo que nem sempre é percebido na correria da reportagem ou do fechamento.

E é bom lembrar que o tratamento nem sempre justo com quem sofre, sem compaixão ou empatia, não acontece apenas em grandes eventos midiáticos como quedas de avião, catástrofes naturais ou morte de personalidades. Neles, é até possível que haja mais debate interno para avaliar ângulos ou a propriedade de dar uma foto ou forçar uma declaração. O perigo maior pode estar na cobertura de acidentes ou da violência urbana, com pessoas não tão famosas como as vítimas de grandes atentados, mas que sofrem da mesma forma com um tratamento pouco humano da imprensa.


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