Miriam Leitão, comentarista, apresentadora e/ou colunista em TV Globo, GloboNews, CBN e O Globo, e os filhos Matheus Leitão e Vladimir Netto
Eu fazia um trabalho de faculdade, junto com três colegas, e o Vladimir, aos três anos, interrompe a conversa.
– Mãe, me dá uma lauda?
As amigas riram. Qualquer criança pediria uma folha. Com oito anos, ele ia tanto a uma banca de jornal, em Brasília, que chegou a entregar os jornais da quadra.
Matheus era adolescente quando o jornal me pediu para escrever para adolescentes um texto sobre inflação. Ele me asessorou sobre como me comunicar com esse público. No dia seguinte, leu e reclamou.
– Por que eu não assinei essa matéria?
Expliquei que ele não era funcionário do jornal, mas que havia sido minha fonte. Ele ficou inconformado. Queria ter assinado a matéria, junto comigo. Pensando bem, era justo.
Meus filhos cresceram entre jornalistas. Alguns colegas do Jornal do Brasil lembram dos dois nos meus plantões, quando eu não tinha com quem deixá-los. Eles têm memórias fortes dessa infância nas redações. A primeira vez que escreveram num computador foi no JB, com a autorização do editor. A novidade estava chegando às redações.
Tentei convencê-los a ir para outras profissões, alertando que há momentos difíceis na jornalismo. Eles disseram que eu sempre chegava animada da redação. Os dois fizeram Jornalismo em escolas e cidades diferentes e têm estilos distintos. Ambos têm talento para o jornalismo investigativo. Houve a investigação de um escândalo que apuraram ao mesmo tempo. Só que cada um temia que o outro também estivesse na mesma pista. Nada compartilhavam. Eu só percebi algo estranho quando os dois saíram no meio de um almoço de domingo, cada um por uma porta do restaurante, e a mesma urgência. Matheus foi o primeiro a subir a notícia no site do iG, Vladimir foi o primeiro a colocar no ar na TV Globo. A notícia derrubou o governador de Brasília, do DEM. Um nunca soube a fonte do outro. Na nossa casa ninguém faz a pergunta indiscreta sobre quem foi a fonte.
Vladimir começou em O Dia. Foi para o JB, quando eu já não trabalhava lá. Foi para Brasília, onde trabalhou na Veja, no Globo e depois a TV Globo o chamou. Matheus começou no Correio Braziliense, em seguida Época, iG, Folha, G1 e agora é colunista na Veja Online.
Os dois têm o mesmo profissionalismo, mas cada um buscou seu caminho. O trabalho do Vladimir há mais de 20 anos é exercido em televisão, Matheus é blogueiro. Na Veja dedica-se aos textos de análise e opinião. Seguem sendo excelentes repórteres, com trabalhos em várias áreas. Matheus é excelente em matérias de direitos humanos, Vladimir tem especial gosto pelas reportagens ambientais. Ele se embrenhou certa vez nos mangues brasileiros para mostrar o valor dos manguezais e o perigo da sua destruição, foi ao Sul num frio polar para alertar sobre o risco de extinção das araucárias.
Tenho imenso orgulho dos dois colegas que eu vi nascer e amadurecer na profissão. Somos parecidos. Há momentos em que ligo e ouço. “Agora não posso, estou na correria”, frase que eu também já disse a eles. O “na correria” pode ser tudo. O fechamento de uma matéria, um trabalho com deadline apertado, uma fonte ligando.
Vladimir aprofundou as reportagens dos escândalos de corrupção no livro Lava Jato, obra da qual me orgulho muito, porque é um documento meticuloso e cuidadoso, tem uma impressionante riqueza de detalhes sobre como funcionam os esquemas de corrupção no Brasil. Foram anos mergulhado em processos, checando cada informação, ouvindo todas as fontes que aceitaram falar. Nesse recomeço do País, após o sofrimento que tem sido o governo Bolsonaro, é fundamental que os eleitos evitem a repetição dos descaminhos com o dinheiro público.
Matheus passou anos buscando documentos e testemunhas da prisão e tortura dos próprios pais. Usou a técnica do self journalism, que estudou na Universidade de Berkeley, para contar uma história pessoal, mas iluminando todas as outras histórias vividas naquele tempo tenebroso, que ainda nos assombra. O Brasil nunca puniu torturadores e é governado por um defensor da ditadura. Matheus foi atrás dos que se escondiam. Revelou o nome de três torturadores, esteve cara a cara com um deles. O livro Em nome dos Pais me emociona. É o meu filho escrevendo a história que eu vivi. Mas, como jornalista, sou capaz de ver objetivamente a excelência do trabalho, tanto no livro, quanto no documentário que foi ao ar na HBO.
Cada um já enfrentou os haters de diversas tendências políticas, e já foi vítima da mentira com que se tenta calar o jornalista que incomoda. A crítica é normal, mas não o ataque sistemático e mentiroso usado pelas redes digitais de intimidação.
Somos uma família de jornalistas. O jornalismo é a nossa matéria. Ele foi mudando e fomos junto, para todas as janelas. Seja impresso, online, eletrônico. Os livros que escrevemos são reportagens e, portanto, uma extensão do mesmo ofício ao qual dedicamos as nossas vidas. Sei que se algum dia Vladimir ou Matheus forem para outra área é o jornalismo que levarão nas veias e na paixão. O jornalismo que eu praticava enquanto eles cresciam ao meu lado.