Como adiantamos nesta 2a.feira (18/8), conseguimos fazer contado com Renan Antunes de Oliveira, um dos editores do Jornal Já, de Porto Alegre, que publicou na edição de 19/7 do jornal a reportagem Tráfico: empresário leva 25 anos para provar inocência, um verdadeiro libelo contra o assassinato de reputações, história que ele acompanha há 15 anos. Hoje, poucos são os repórteres com essa dedicação e consideramos importante mostrar, principalmente aos mais jovens, como é o processo de trabalho de Renan. Repórter independente em Florianópolis, 64 anos, ele já rodou o Brasil – e até alguns lugares do mundo – atrás de pautas, muitas delas com características de aventura. Em suas andanças, passou por RBS, Estadão, JB, Veja, IstoÉ, TV Cultura SP, TV Gazeta, Rádio SBS da Austrália, rádio do Partido Comunista Chinês e frila do UOL, entre outros. Renan foi questionado sobre seu processo de escolha de pautas, como se organiza para pesquisar assuntos, como se aproxima das fontes sobretudo nesses temas mais polêmicos, quais pontos considera fundamentais num trabalho de investigação, quais os principais riscos (físicos e profissionais) desse tipo de trabalho. Em resumo, quais seriam os seus “dez mandamentos” de repórter investigativo. Na entrevista que concedeu por escrito, abriu o coração e foi corajoso em algumas revelações: Sou freelancer. Como trabalhei décadas assim, não me sinto capaz de dar exemplo para os mais jovens. O pessoal de hoje gosta de uma coisa estável e glamourosa, daquelas que dão crachá no peito. Além disso, eles não precisam de dicas. Conheço dúzias de editores na casa dos 20. A maioria já tuita sobre eleições, seca no Nordeste ou casamento gay com o mesmo desembaraço. Eu é que tenho que aprender a simplificar: ainda vejo esses temas banais com 120 tons de cinza. Dos mandamentos do repórter mal posso falar, porque só conheço um: “Atravessar paredes”! Enfim, poderia sugerir pro pessoal alguns truques da rua, que é onde me garanto mais ou menos. Um tema do qual posso falar e gosto muito é o das pautas não realizadas Eu procuro pelas pautas como Bocelli pela música. Trabalho para comer, movido pela velha máxima nule dia sine linea: nulo é o dia em que não se escreve uma linha. Sem linhas, sem bufunfa. Para falar um pouco da matéria do Germano, preciso dizer que entrei nela por acaso. Uma vez na história, ouvi o piu piu da injustiça. Aí, liguei o piloto automático e continuei por década e meia, movido apenas pela indignação. Como já li que um jornalista deve ter a capacidade de se indignar, mantenho a minha em dia. Exemplo atual: semanas atrás, vi uma morena nua e sangrando pelas ruas de Manaus. Eu viajava com vários coleguinhas locais e um paulista. Pedi para parar o carro, o motora levou preciosos minutos a mais – ele não tem culpa de não ser reportero, como dizem na Bolívia. A mulher ia de queixo erguido, seios caídos, bumbum firme, descalça, passos lentos e olhar perdido para o público de uma parada de busão. Clamei por um fotógrafo. Havia cinco na rodinha. Pedi a foto. Nenhum levantou a câmera. As respostas variaram: “É louca”. “Não seria ético”. Outro disse: “Ela tá sempre por aqui”. Todos se engajaram no debate, sem olhar pra ela. O paulista disse ter tido medo da reação da doida. Eu argumentei que ela poderia ser recolhida por alguma igreja evangélica, já que de prefeituras nunca espero tanta preocupação com cidadãos pelados. Mais: como estava sangrando, que tal ser medicada? No mínimo, vestida. Aí justificaram a nudez por ser índia. Eu respondi que nem entre os ianomâmis as vi totalmente nuas, sem sequer um adereço. Nada os comoveu. Nem meu último argumento de que há milhares de índios em Manaus, todos escandalosamente vestidos. A minha peladona exigiria um repórter com indignação tipo saudável, compaixão, olhar humano, aquelas coisas que nos separam dos bichos. Quando consegui descer do carro já era tarde. Eu a perdi na multidão, entre funcionárias uniformizadas da Vivo e os passageiros do bus do bairro Compensa. Dava matéria, com certeza. Minhas pautas eu pego ao azar Uma coisa pinta na minha frente, o faro diz que vale matéria, vou atrás. Sempre fiz assim. Durante décadas cumpri poucas pautas pautadas por pauteiros. Só pude fazer isso sendo frila. Quando era correspondente no estrangeiro, também decidia sozinho. O mesmo vale se estou numa cidade fora do eixo, como Floripa, ou na estrada, onde tudo que rola pode valer. Meus temas preferidos? Crimes pequenos. Caço injustiças. Cenas engraçadas. Farejo causas fora do eixo. Índias peladas nas ruas. Escrevi sobre o papa, presidentes, governadores, pobres, negros, albinos, drogados (cada vez mais), prostitutas, gays, ladrões, presidiários, assassinos e vítimas da violência policial. Soja e bichos. Duas matérias de que lembrei agora como entre as favoritas foram a do menino queimado pela PM e a da menina recolhida de um bordel pelo Conselho Tutelar, ambas em Curitiba, meu cemitério de elefantes – é o melhor lugar do mundo para amarrar o burro do jornalismo na sombra. Se as turminhas do salário mínimo, cesta básica e bolsa família fornecem bons personagens, o outro lado da moeda também rende. Já dedilhei sobre os vestidos da princesa Diana, dos sapatinhos da mulher do Donald Trump, de um pé do ACM, da fuga do Pizolatto pra Itália, sobre o boquete da Monica no Bill – com esta matéria perdi a boca de frilas da BBC, mas isto é papo pro capítulo das demissões. Outras pautas eu pego lendo jornais, quando vejo pontas soltas na matéria Uma assim me aconteceu no Paraná. Chego lá desempregado, 2001. Vejo manchetes dadas por policiais para repórteres sonolentos: padre eleito prefeito mata o vice dias antes da posse. Veja: “Batina suja de sangue”. Globo: “o assassino” estaria “foragido”. Vários jornais deram a mesma coisa, mas tudo de orelhada. Nenhum repórter na cena. Nem na cidadezinha, nem nas calçadas, sequer na porta da igreja-prefeitura. Farejei o ar. Snif… Nunca vi um padre prefeito matar alguém. Snif… Aqui tem sacanagem da polícia. Padre prefeito existe, padre assassino idem, prefeito assassino idem idem. Mas, a combinação padre-prefeito-assassino me cheirou improvável. E, matar antes da posse? Talvez se fosse o vice matando o prefeito, jamais o contrário, né? Definitivamente, tinha alguma coisa errada na versão oficial. Eu queria um emprego no jornal. Aí me ofereci pra ir lá investigar, faria reportagem tipo degustação em supermercado. O pauteiro não quis nem de graça: “Envolve viagem aos grotões”, foi o pífio argumento do preguiçoso. Falei com o dono, que aceitou a parada. Fui, no carro da mana. Achei o padre e o verdadeiro assassino antes da polícia. Mas, falemos só do padre. Onde ele tava? Raciocinei: se inocente, vai pedir ajuda ao bispo. Batata. Ao amanhecer bem cedinho fui na diocese. O bispo tomava um café digno do papa. Devorei rosquinhas frescas servidas por uma freira alemã. E perguntei: “Aquele padre prefeito é bandido ou foi armação”? O santo homem cravou “inocente”, ainda de boca cheia. Arrisquei: eu prometo que se o senhor me deixar entrevistá-lo, ele terá sua versão e não o entregarei pra polícia. O bispo me olhou alguns segundos, enquanto limpava os farelos da batina. Aí, talvez confiando no poder divino da mídia, mandou a freirinha trazer o padre. Ele estava escondido atrás do confessionário. Gol certo. Fui com ele até o Ministério Público, onde o homem se entregou, mais medo da polícia do que de Deus. Existe vida sem pauteiro Eu disse acima que escolho as minhas histórias sem pauteiro. Motivo: eles são pessoas muito ocupadas pra ter tempo de bolar pautas. Primeiro, o pauteiro cuida da mulher. Depois, dos filhos. Aí temos a casa, o carro, a vacina do cachorro, as prestações, as baladas, os achaques, as idiossincrasias do cara. Com o que sobra de energia mental, turbinada pelo Bom Dia Brasil, ele vai te dar uma pauta pras ruas. Melhor deixar pra lá, né? Escolhida a pauta é que começa a vida dura de um freelancer Pra nós, só a pauta não basta. A gente primeiro precisará levantar a matéria, pra depois tentar vendê-la. É assim porque se você disser prum editor “tenho tchã tchã tchã”, ele vai querer saber tudo antes de comprá-la. Vendida a história, oremos para que o financeiro concorde em pagá-la. Tudo pronto ? Neca. Você pode cair num copidesque burro. Ultrapassado este platô chegamos ao pico do Everest: o pagamento. Poucos chegam lá. Seja porque o financeiro não tinha concordado com o valor, ou porque o editor não mandou o boleto do mês, ou porque os frilas foram cortados: “Ainda estamos pagando os do primeiro semestre do ano passado”. Resumo da ópera: minha matéria vencedora do Esso de Reportagem 2004 foi rejeitada por vários até ser publicada de graça no Jornal Já Porto Alegre. Depois de premiada, foi reproduzida também de graça em n sites e num jornalzinho do Ceará, o único que teve a decência de me pedir por favor. Por ela, paguei todos os custos. Usei o carro da mamãe pra procurar fontes no interior e fiz o resto da apurática caminhando pela cidade, 45 dias… O segredo da fonte Como a gente conquista fontes? Bem, não as conquisto. Apenas procuro por elas pra conversar. Ela será fonte boa dependendo do papo. É um jogo. Será que ela tem alguma coisa pra me dizer? Será verdade? Será que fiz a pergunta certa? Será que fiz o approach certo ? Muitas se melindram. Muitas não gostam de ti e aí não falam p. nenhuma. Umas contam tudo. O pai do FK nunca falou sobre o suicídio do filho, mas a mãe me despejou a dolorida história nos mínimos detalhes, sem derrubar uma lágrima. Existem fontes intransponíveis. O secretário do prefeito de uma cidade do interior de SC cansou de minha insistência, se queixou pra um comprador meu em Sampa e tomei uma chamada. É que às vezes é o dia da fonte e elas te caçam. Meses atrás outra matéria deu xabu. A assessora de uma empresa de TI blindou seu chefe de uma maracutaia também ligando. Recebi o “segundo aviso” pra me comportar, pra não incomodar as fontes. Desisti das duas matérias, meu comprador daquelas encomendas ficou satisfeito. Salvei os dedos. Ser mulher, às vezes ajuda na apurática. O subcomandante Marcos escolheu uma jovem repórter americana pra falar para um pool de jornalistas numa noite na selva mexicana, mandando a beldade de volta com as informações que ansiávamos – ela reapareceu ao amanhecer, de cabelo ainda molhado. Ser homem tem também suas vantagens. A finesse me impede de relatar a história da entrevista com uma ex-primeira-dama no Central Park. Comecei a perguntar “não entendo como é que teu marido foi te trocar por aquela chinelona, deixar uma mulher com tua classe e beleza”. Funcionou: arranquei dela tudo o que precisava pra escrever a história do maridão, um político corrupto, sem molhar o meu cabelo. A arte da entrevista Entrevistei muita gente na vida. Um dos grandes fracassos foi com uma prima, dentro de casa! Sem dúvida, ela é a desconhecida mártir da luta pelos direitos da mulher no interiorzão gaúcho. Cresci ouvindo mamãe criticá-la. Se minha irmã queria sair sozinha, mami poderosa bradava “quer ser uma p… como tua prima”?! Ela tinha sangue de imigrantes russos. Uma foto amassada que eu vi durante um café da tarde em 2000 mostrava uma loira alta, parecida com a Uma Thurman. Muito bonita, com certeza seria uma ET entre os bugres e a peonada das fazendas de Vacaria. O pecado da prima: nos anos 50, ela tentou sair dos grotões pra saber o que é que existia além da porteira. Na primeira tentativa, os irmãos grandões e loirões como ela a encontraram ainda a 30 km de casa, trazendo-a de volta. Na segunda, um motorista passou e ela pediu para ir com o cara. Os irmãos deram uma surra no motora. Um circo passou pela cidade vizinha, ela se escondeu num camarim, na esperança de seguir viagem. Os irmãos perdigueiros a caçaram. E arrebentaram seis dentes do palhaço que a ajudara. Mamãe dizia que “a vagabunda ia atrás de qualquer homem”. A honra da família era salva pelos brothers – eles desmanchavam na porrada os interessados desavisados. A prima fingia se aquietar, mas tentava de novo. Aí os maninhos a botaram na última das prisões: casaram a moça com um amigo de bebedeiras. Vapt vupt o cara fez três filhos nela. Um dia o marido voltava para casa borracho, quando caiu do cavalo e morreu afogado num riacho perto do curral das ovelhas. A prima criou os filhos sozinha, com amor e resignação. Naquele café que tomamos em 2000, o assunto chegou ao marido morto. Sem que eu perguntasse, ela me confidenciou, com um sorriso triste e amargo: “Aquele bosta foi meu único homem”. Com estas seis palavras ela destruiu décadas de preconceito da minha mãe. Atraído pelos detalhes, conversei horas com ela. Me convenci de que a personagem dava uma p… pauta. Liguei pra Trip. Vendi a história “Minha Prima Puta”. Nunca foi publicada. Eu estava me preparando pra escrever quando dois quarentões criados pela prima me procuraram, indignados, ameaçadores. Trouxeram meu irmão como testemunha da lama que eu supostamente iria jogar na família. “Se tu escrever sobre minha mãe eu te mato”, começou um deles. Sem saber, ou talvez sabendo, repetiu o que seus tios russos fizeram com a mamãe. Meu irmão, amigão deles, apoiou os primos filhos da p. Por segundos me senti como ela, só faltou o vestidinho de chita e ser trancado na fazenda. Minha bela e triste prima, oprimida agora pelos filhos, nunca mais atendeu aos meus telefonemas. Fonte é tudo igual, só troca de endereço Quando procuro uma fonte, ainda hoje fico paralisado por segundos, sem saber como começar ou por onde ir. As dúvidas galopam na minha cabeça. Quando as localizo, fico inseguro entre dar bom dia e perguntar se vai chover. Não sei se conto que meu tio Girolamo produzia vinhos na Serra Gaúcha ou se vou direto ao ponto. Depende do feeling. Ano passado, fui diretaço com o assassino da Penha (SC), um pescador que matou toda a família. Encontrei-o numa igreja, antes da polícia. Não dava tempo pra firulas: “E aí ? Dizem que você matou a família…” Ele disse que não. A próxima pergunta poderia ofender mortalmente o matador (eu já tinha apurado que ele era culpado). Mesmo assim, arrisquei: “Se não foi você, quem poderia ter sido”? O assassino me olhou firme. Jurou que “se eu pegar quem fez isso… mato!” Imediatamente mudei a conversa pra amenidades. Perguntei aonde ele iria depois do nosso papo. Me contou que visitaria a namorada, em Goiás. Passamos a falar de motos. Não mencionei mais o crime, temendo ser a próxima vítima. Tentei vender a matéria desse assassino para uma editora da madrugada de um portal. Ela achou o tema “muito tétrico”. Derrotado, escrevi mal pra burro (meu relógio biológico é o matutino). Tentei botar no portal, tipo minuto a minuto da apuração, sempre na frente da polícia, mas não quiseram. Um editor me arrasou: “Teu texto não tinha pé nem cabeça”. O assassino? Horas depois do nosso papo ele confessou ter matado pai, mãe, irmã e um sobrinho. Por sorte, não havia mais ninguém em casa naquela hora… Mandei pro portal o drama e a confissão, mas aí perdeu aquele clima quente da investigação. O editor só deu meu material bem depois da concorrência, numa nota pífia. Mea culpa, pelo texto chinfrim. E aqui vai uma lição: por melhor que seja a história, por mais confiável a fonte, mesmo com uma baita apuração, o texto tem que segurar. Escrever é o nome do jogo. Voltando ao tema das fontes: procurar por elas exige tenacidade É raro que a boa matéria te procure, você tem que procurar por ela. No caso Germano, de tempos em tempos eu ligava pra ele, ou abria o site da Justiça pra procurar o processo. Tipo missão: “Tenho que fazer isso hoje”, mesmo que demore 15 anos. Também exige faro. É uma sensibilidade que os anos trazem. Às vezes, quando faço um “povo fala” pra TV, sou capaz de divisar na multidão quem quer aparecer e quem vai fugir da câmera. Aí eu vejo um cara preso dizendo que é inocente e todo mundo (até eu…) rindo dele. Aí me vi nas mãos dessa polícia (parcialmente) bandida e desse judiciário (parcialmente) vagabundo que temos. Pronto. Não pude mais abandonar a história do Germano. Aos poucos fui percebendo a verdade, atestada pela absolvição dele no STJ. Claro, algum coleguinha poderá questionar o mérito da minha matéria dizendo que, como Germano, Fernando Collor e O.J.Simpson também foram declarados inocentes por tribunais. Com certeza, entre eles estarão alguns dos que queimaram Germano e nunca ouviram a versão dele, como manda o manual. Nem examinaram os processos, como eu fiz. Descobri (mas não publiquei) que o primeiro juiz a mandá-lo pra cadeia foi afastado do cargo a pedido do MP do Rio, acusado de trabalhar pra traficantes, sendo então confortavelmente aposentado. Só isso já daria uma p… pauta. É a pauta dentro da pauta, uma iguaria. Mas, ninguém se interessou por ela, nunca. Muitos repórteres que não se indignaram com a injustiça cometida pelo Estado contra Germano me acham maluco por ficar insistindo tanto num assunto fora do radar – os mais chegados ironizam que “é mais uma daquelas matérias arrastadas do Renan”. Entenderam outra razão pra nunca desistir da matéria? Provar que eu tinha razão… este sentimento mesquinho e tão humano do eu, eu, eu… Minha sorte é que ele foi inocentado depois de 25 anos. Ufa! Já posso jogar o outro sapato no chão.