Por Luiz Antônio Maciel (*)

Na madrugada um pouco fria e chuvosa de São Paulo, tradicionalmente conhecida (mais antigamente do que hoje) como a cidade da garoa, 1h30min da segunda-feira, 28 de outubro. Depois de um dia difícil e extenuante, Eunice Palhares dormia na cama de acompanhante do quarto 1602 do Hospital Sancta Maggiore da Rua Maestro Cardim quando sentiu um toque no ombro. A enfermeira, que fazia o atendimento daquela ala, lhe comunicou, em voz baixa: “Ele faleceu!”. Wilson Palhares, o marido de Eunice, nascido e criado na Mooca, há 86 anos e sete meses, havia dado o último suspiro, indicavam os monitores dos aparelhos médicos que o acompanharam nos últimos dias.

Wilson Palhares, jornalista e cidadão do mundo por convicção e por seu legado profissional e pessoal, considerava-se um filho dileto da Mooca, onde viveu a infância e parte da juventude. Ali estavam suas raízes, de origem italiana e portuguesa, e o povo simples e humilde que aprendeu a entender e amar ao jogar futebol e participar de brincadeiras nas ruas de terra, pelas quais raramente passava algum veículo. Nos últimos anos, frequentemente, costumava ir até o bairro, para ver a rua onde morou, acompanhar desolado a derrubada das casas e comércios antigos para a construção de torres de concreto, tentar identificar um bar ou um pequeno armazém de secos e molhados onde fazia as compras a pedido da mãe. Eram essas voltas ao passado que o ajudavam a manter o ânimo pela vida, apesar de lamentar as mudanças na paisagem urbana de seus primeiros anos.

Cultivou alguns amigos daquela época durante muitos anos, enquanto eram vivos; outros ainda se mantiveram próximos até os últimos momentos. Lamentava não poder localizar, apesar de todos os recursos da internet e das redes sociais, um ou outro colega de bairro ou dos bancos escolares para ter o prazer de rever e reviver histórias antigas.

Orgulhava-se de ter sido office-boy (ou estafeta ou contínuo externo, na linguagem daquela época), o que lhe permitiu conhecer boa parte da cidade, principalmente o centro, que percorria a pé, de bonde ou de ônibus. Quando já se encaminhava para definir uma carreira, fazendo o cursinho pré-vestibular de Salim Abeid Neto para a Faculdade de Jornalismo Cásper Libero, passou a vender livros e Enciclopédia Barsa e, posteriormente, discos (long playings) de porta em porta, junto com o recém-amigo de cursinho Ari de Toledo Schneider. Ambos costumavam lembrar com humor o dia em que demonstravam a um freguês as qualidades dos discos, considerados inquebráveis. De tanto dobrar e torcer o exemplar de demonstração, uma hora o disco quebrou. Decepção, cliente perdido e fim de carreira para dois ex-promissores vendedores.

No cursinho preparatório para o vestibular, conheceu Eunice Terezinha Fruet, recém-chegada de Itu, que, depois, durante o curso, viria a ser sua namorada e com quem se casou anos mais tarde e teve dois filhos, Flávio e Marcos.

Wilson e Eunice passaram no vestibular que classificou, em primeiro lugar, um dos mais jovens inscritos, Gabriel Manzano Filho, que ainda hoje trabalha na redação de O Estado de S. Paulo. Aprovado no exame, Palhares ingressou na faculdade em 1963. Com o golpe civil-militar de 1964, tornou-se na faculdade uma das lideranças nas lutas de oposição à ditadura. Paralelamente ao curso, conseguiu uma vaga de repórter na Folha de S.Paulo, onde fazia cobertura de geral, em especial do movimento estudantil, em ascensão na época. Depois, especializou-se no movimento sindical, com abertura para as novas lideranças de esquerda, enquanto velhos setoristas, como Adriano Campagnole (ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo), faziam uma cobertura meio chapa-branca dos dirigentes sindicais na época, de viés conservador.

Em 1965, às vésperas do lançamento do Jornal da Tarde, que cooptou grande parte da equipe da Sucursal do Jornal do Brasil em São Paulo (Laerte Fernandes, Guilherme [Bill] Duncan de Miranda, Miguel Jorge, Carlos Brinkmann, Rolf Kuntz), o diretor da sucursal Eurilo Duarte pediu a mim, Luiz Antonio Maciel, noticiarista da Rádio JB, recém-contratado em agosto, no último ano da Cásper Libero, que indicasse alguns colegas que já evidenciassem ser bons profissionais, para preencher algumas vagas. Assim, Wilson Palhares, Ari Schneider e Josué Rodrigues Silva Machado passaram a integrar a equipe do JB, comandada, com a saída de Laerte Fernandes, por Ebrahim Ali Ramadan. Eurilo Duarte trouxe do Rio de Janeiro outros reforços de peso: Mário Escobar de Andrade (futuro editor de Quatro Rodas e diretor da Playboy), Fernando Guimarães e Alfredo Lobo.

Na sucursal do JB, Wilson Palhares passou a cobrir Política em São Paulo, sempre com uma visão crítica da ditadura militar. Por conta desse envolvimento profissional com os meios políticos paulistas oficiais e não oficiais, em 5 de setembro de 1969 foi procurado na sucursal de São Paulo por uma equipe de busca da recém-criada Operação Bandeirantes, que viria a se transformar no Doi-Codi. Como não estava na redação naquele momento, o então diretor da sucursal Walter Fontoura comprometeu-se a levá-lo posteriormente ao quartel do RecMec, sede da Operação Bandeirantes, na Rua Manuel da Nóbrega, no Ibirapuera. Foi o que se sucedeu.

Apesar da promessa do oficial do Exército de plantão ao jornalista Walter Fontoura de que Wilson Palhares seria bem tratado, as sessões de tortura começaram pouco depois, sob acusação de que o detido pertencia à Ala Vermelha, uma dissidência do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) envolvida em guerrilha urbana contra o regime. Três conhecidos de Palhares já estavam presos e submetidos a intensas torturas naquele quartel do Exército: Alípio Raimundo Viana Freire, ex-colega da Cásper Libero; Renato Tapajós, cineasta e estudante de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo; e Laís Nascimento Furtado (cuja irmã, Aurora Nascimento Furtado, foi morta no Rio de Janeiro sob tortura, com aplicação de garrote vil, que lhe provocou fraturas no crânio), também ex-aluna da Cásper Libero, companheira de Renato e que assumiu o sobrenome Tapajós.

Depois de transferido para a sede do Doi-Codi na delegacia de polícia civil da Rua Tutóia, no Paraíso, onde permaneceu por alguns dias, Palhares foi enviado com outros presos da Ala Vermelha para o Departamento de Ordem Política e Social (Deops), onde permaneceu cerca de dois meses, na última cela (fundão) e, por pouco tempo, na cela 1, no subsolo. Com a morte de Carlos Marighella (comemorada até com tiros dentro do Deops por um delegado da equipe de Sérgio Fleury) no início de novembro e a prisão de grande número de membros da Aliança Libertadora Nacional (ALN), entre eles os frades dominicanos e alguns jornalistas, como Rose Nogueira e seu então marido Luiz Roberto Clauset, entre outros, o Deops apressou a tomada de depoimentos de presos que ocupavam as celas, para enviá-los ao Presídio Tiradentes (posteriormente demolido). Ali, um prédio destinado ao setor administrativo e ao almoxarifado do presídio foi esvaziado para receber essa leva de presos políticos, separados da ala dos presos comuns. Ali seria a “residência” de Wilson Palhares até fevereiro de 1970.

A cela ficava no último pavimento da edificação. Uma área grande, de cerca de oito metros de largura por 40 de comprimento, sem obstáculos, com dois ou três banheiros com chuveiros, pias e uma bancada onde parte dos presos preparava suas próprias refeições. Havia até um “chef”, um preso francês à espera de deportação, que comandava a cozinha. Sua especialidade era um minestrone de ótima qualidade. Era ajudado por um outro francês, Jacques, então companheiro da fotógrafa Nair Benedicto, ambos presos no processo da ALN. Camas tipo “patente” e beliches ocupavam a maior parte do espaço, para acomodar os presos políticos. Numa dessas camas, permaneceu por meses, engessado e imobilizado, Carlos Lichtsztejn, integrante de um Grupo Tático Armado (GTA) da ALN, que caíra de uma altura de vários metros ao tentar fugir de um cerco de agentes da repressão.

Só havia dois locais por onde entrava a luz natural do dia: a entrada da cela com grades e uma fileira de pequenos basculantes de vidro no alto da parede ao fundo. O acesso à cela era por uma porta com grades de ferro de cerca de um metro de largura, ao fim de uma escada de alvenaria que ligava esse pavimento ao inferior, onde havia celas individuais (chamada a ala dos “nobres”), que abrigavam na época um velho dirigente sindical do Partido Comunista Brasileiro e o ex-deputado Hélio Navarro, cassado pelo AI-5 de 30 de dezembro de 1968.

Libertado no dia 4 de fevereiro de 1970, após audiência na Segunda Auditoria de Guerra da Segunda Região Militar, na Av. Brigadeiro Luís Antonio, e posteriormente absolvido pelo chamado Conselho de Guerra (júri composto de militares e um juiz togado civil), Palhares reassumiu o cargo de repórter na sucursal de São Paulo do Jornal do Brasil. Por decisão de seu diretor Walter Fontoura, com apoio do editor-chefe do JB Alberto Dines e da direção da empresa, recebeu todos os salários do período em que esteve preso. Seu filho mais novo, Marcos, nasceu nove meses depois.

Ao deixar a sucursal do JB, Palhares foi para a Editora Abril, trabalhar como editor na seção de Internacional, onde varava as madrugadas das quintas e sextas-feiras e, às vezes sábados, acompanhando e editando matérias sobre política mundial. O desafio profissional seguinte foi trabalhar na revista Playboy, como editor especial encarregado de reportagens e das famosas entrevistas com personalidades, o ponto forte da revista. Depois de cerca de dois anos, a convite de José Roberto Nassar e Rui Falcão, editores da Exame, foi trabalhar na revista. Foi o autor da matéria de capa da edição 327, de 29 de maio de 1985, China – A longa marcha do consumo (arte de Gilberto Midaiara, com edição gráfica do saudoso Hélio de Almeida, editor de arte da revista), depois de uma viagem pioneira de dez dias à República Popular da China, visitando Beijing, Xangai e Nanquim. Retratou as transformações pelas quais o Império do Meio estava passando sob o comando de Deng Xiao-ping. Começavam a ser permitidas atividades capitalistas sob controle do Estado, e até o consumo de Coca-Cola, antigo símbolo do imperialismo norte-americano, que passou a ser tão comum nas cidades como o consumo de chá verde. Era o começo da nova China que hoje rivaliza com os Estados Unidos como uma das maiores economias do mundo.

Capa de Exame com a reportagem de Palhares

A reportagem se encerra com uma conclusão profética: “(…) na extremidade de um canudo numa garrafa de Coca-Cola continuará existindo um chinês dirigido pelo Partido Comunista. Em outras palavras, o atual momento vivido pela China não é apenas uma pausa que refresca” (antigo slogan da marca).

Cansado das madrugadas de fechamentos da mídia comercial, Palhares decidiu enveredar por uma seara própria, como empreendedor. Criou há mais de 30 anos a empresa Bloco de Comunicação, para dar assessoria e fazer projetos de mídia para empresas. Lançou e foi editor do Jornal Nova Embalagem, patrocinado pela Associação Técnica das Indústrias Automáticas de Vidro (Abividro). Foi quando começou a se interessar e se aprofundar no estudo do mercado mundial de embalagens. Em 1999, criou a revista EmbalagemMarca, especializada nesse mercado. Ainda hoje é o veículo mais completo do setor no Brasil. Lançou o cobiçado Prêmio EmbalagemMarca, para distinguir as soluções mais importantes do mercado nesse setor.

Espírito inquieto e sempre ávido de conhecimentos, era dono de ampla cultura e leitor repetitivo de D. Quixote. Aventurou-se na poesia nos tempos idos da Faculdade Cásper Libero, onde presidiu a Academia dos 13, de cunho literário e artístico. Entretanto, ao iniciar o trabalho profissional como jornalista, trocou a poesia pela dureza da realidade, mas sempre com um toque poético e muitas vezes sutilmente irônico e sarcástico. Sua língua ferina era conhecida nas rodas de conversas com amigos, o que lhe valeu, já nos tempos de faculdade, o apelido de Nicodemo, criado por Josué Machado. Seu sarcasmo não o abandonou mesmo na véspera da morte. Seu filho Marcos relata que dois dias antes, quando ainda estava razoavelmente lúcido, perguntou: “Pai, como você está?” E Palhares, com alguma dificuldade de movimentos, apontou o polegar para baixo e emitiu a sentença definitiva: “Estou fodido!”

PS: Wilson Palhares faleceu em decorrência de complicações de um câncer de bexiga descoberto no início do ano e atribuído pelos médicos, provavelmente, ao fato de ele ter fumado durante muitos anos.


Luiz Antônio Maciel

(*) Luiz Antônio Maciel, 81 anos, jornalista profissional formado pela Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero, em 1965. Começou a carreira como noticiarista da Rádio Jornal do Brasil, em São Paulo, em 1965. Depois, já na redação da sucursal de São Paulo do Jornal do Brasil, foi repórter, pauteiro, chefe de reportagem e secretário de Redação. Em 1974, começou como redator de Internacional do Jornal da Tarde, e subeditor, passando depois para a Editoria de Economia, onde foi subeditor e editor. Em 1896, transferiu-se para a revista Playboy, como editor especial encarregado de reportagens e das entrevistas mensais. A partir de 1989 trabalhou como editor e redator da revista Guia Rural, da Editora Abril, depois exerceu as mesmas funções na revista Globo Rural, da Editora Globo, foi editor especial da Revista Imprensa e por duas vezes trabalhou na Gazeta Mercantil, como redator de revistas e depois como subeditor de Informática. Participou da experiência pioneira de criação de um dos primeiros sites jornalísticos sem vínculo com a mídia tradicional, o Panorama Brasil, que posteriormente se fundiu com o Diário do Comércio e Indústria (DCI). Encerrou a carreira no Diário do Comércio, da Associação Comercial de São Paulo, onde trabalhou por dez anos, como editor de Economia e pauteiro da Editoria de Política.

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