Texto publicado originalmente em 8/6/2022 pela Amazônia Real
*Por Kátia Brasil
O pescador Amarildo da Costa de Oliveira, chamado de “Pelado”, preso na Delegacia da Polícia Civil de Tabatinga (AM), se tornou peça-chave para elucidar o sumiço do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira. A afirmação parte tanto de uma testemunha que esteve com a dupla até poucas horas antes de os dois não serem mais vistos quanto da Polícia Federal. Nesta quarta-feira (8), o órgão federal afirmou que não descarta “nenhuma linha investigativa, inclusive homicídio” sobre os desaparecidos na Amazônia.
“Pelado” está preso por porte de munição de uso restrito. Mas o que a testemunha ouvida pela agência Amazônia Real revela é ainda mais grave. Na manhã de 4 de junho, Pelado e mais dois pescadores ameaçaram com armas o indigenista Bruno Pereira, o jornalista Dom Philips e toda a equipe de Vigilância Indígena da Univaja (EVU). “Pelado” procurou intimidar o grupo que estava em outra embarcação no rio Ituí a caminho de uma missão para impedir a invasão do grupo à Terra Indígena (TI) Vale do Javari.
“O Pelado é um dos caras mais perigosos da região do Ituí. Já deu vários tiros na base e já trocamos tiro com ele. Pelado é peça fundamental nesse quebra-cabeça, não pode ser solto”, afirmou a fonte da Amazônia Real, que afirma que “Pelado” tem envolvimento com o tráfico de drogas.
Em coletiva na sede da Polícia Federal, em Manaus, o superintendente Eduardo Alexandre levantou a hipótese de o narcotráfico estar relacionado ao desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips. “As investigações apuram o envolvimento de quadrilhas de tráfico de drogas na região. Estamos buscando saber se houve algum crime nesse desaparecimento”, disse.
Além das invasões na TI Vale do Javari, o narcotráfico usa rotas dentro e fora da terra indígenas para escoar em embarcações carregamentos de drogas produzidas no Peru e na Colômbia. Uma fonte ouvida pela Amazônia Real afirma que Amarildo da Costa de Oliveira, o “Pelado”, tem envolvimento com o tráfico de drogas. “Ele (Pelado) é envolvido com o Janeo, Churrasco, Nei, Valmir Benjamin, Caboco, Colômbia, o peruano que comanda o tráfico na região”.
Já o superintendente da Polícia Federal lembrou, na coletiva, que a região que faz fronteira com o Peru e Colômbia é “bastante perigosa, onde há uma criminalidade intensa, tráfico de drogas”, e também garimpo ilegal, exploração ilegal de madeira e pesca ilegal. E que, por isso, a investigação não descarta a ocorrência de crime no desaparecimento.
“Vamos apurar eventual homicídio caso tenha ocorrido. Não descartamos nenhuma linha investigativa. Nós estamos na busca das pessoas, não só crimes apurados, mas busca de embarcações, de desaparecidos”, disse Eduardo Alexandre. A PF abriu um inquérito, que se soma a outro da Polícia Civil. Cerca de 250 agentes e dois aviões atuam nas buscas do indigenista e do jornalista britânico e um gabinete de crise foi montado para tentar elucidar o caso.
Repercussão internacional
Depois de iniciar tardiamente as operações de busca e elucidação do caso, o governo federal mobilizou diversas forças policiais e de segurança para atuar no Vale do Javari. O caso, de repercussão internacional, lança os holofotes para uma conflituosa região da Amazônia, onde as atividades do tráfico de drogas, garimpo ilegal e roubo de madeira ocorrem à luz do dia. Diversas equipes de jornalistas brasileiros e internacionais, inclusive a Amazônia Real, estão a caminho da região.
Como publicou a reportagem, uma fonte indígena afirmou que o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Araújo Pereira foram vítimas de uma emboscada no domingo (5) no deslocamento de embarcação entre as comunidades São Rafael e Cachoeira em direção à cidade de Atalaia do Norte, um percurso de 2 horas de viagem.
Segundo a Univaja, a última informação de avistamento deles é da comunidade São Gabriel, que fica rio abaixo da comunidade São Rafael.
A nova testemunha ouvida pela reportagem é ligada à Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), que também falou sob anonimato por temer risco de vida. Ela ajuda a explicar pontos ainda obscuros no caso, oferecendo detalhes dos últimos passos do jornalista e do indigenista.
Bruno Pereira e Dom Philips iniciaram a visita à Equipe de Vigilância Indígena (EVU) na localidade chamada Lago do Jaburu na sexta-feira (3 de junho). No dia seguinte, por volta das 5h40, a equipe avistou “Pelado” numa lancha (voadeira ou canoa de alumínio) com motor de 60 HP, mais potente do que os usados por Bruno e Dom, que estavam numa voadeira com motor de 40 HP. A equipe de vigilância trabalha num barco chamado de canoão, que tem motor também de 40 HP, mas tem rádio de transmissão e o Dispositivo de Comunicação Satelital SPOT.
“Estávamos na nossa base, o canoão, na margem esquerda do rio Itacoaí, quando eles passaram: o pescador Pelado e mais dois pescadores, que não conseguimos identificar. Aí nós montamos, rapidinho, uma equipe de nove homens (todos indígenas) e seguimos atrás deles em direção à base (da Funai), pois eles iriam invadir a Terra Indígena (Vale do Javari), que é ilegal. O motor dele 60 HP é veloz, nós seguimos atrás deles”, disse.
Mesmo apesar da diferença na potência dos motores, a testemunha contou que a equipe da EVU conseguiu interceptar a voadeira do “Pelado”. Em outra embarcação, Bruno Pereira, funcionário licenciado da Fundação Nacional do Índio (Funai), mas que trabalha na Univaja, e Dom Philips acompanharam toda a fiscalização. O jornalista que colabora com o jornal britânico The Guardian registrou em imagens a ação, pois estava fazendo uma reportagem sobre o trabalho dos indígenas.
“Eles ameaçaram o Bruno”
“O Pelado parou o barco em frente à placa da demarcação da Terra Indígena, já em terra indígena. Saiu da canoa (a voadeira) fazendo de conta que não estava acontecendo nada ali. Quando nos aproximamos, Bruno mais à frente de nós, o Pelado e os outros dois levantaram as espingardas tentando nos intimidar. Eles ameaçaram o Bruno”, afirmou a testemunha. Segundo essa fonte, a equipe da vigilância indígena, sempre acompanhada de Bruno e Dom em outra embarcação, decidiu seguir em direção à Base da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari da Funai, no rio Ituí.
A EVU, Bruno Pereira e Dom Philips, segundo a testemunha, voltaram para a base do Canoão no Lago do Jaburu, onde pernoitaram de sábado para domingo (5). Pela manhã, o indigenista e o jornalista deixaram o local ao amanhecer. O percurso entre o lago e a comunidade ribeirinha é de 15 minutos em via fluvial.
“Eles disseram que iriam passar na comunidade São Rafael para falar com o pescador ‘Churrasco’, mas o lugar é onde mora o Pelado. Ele (Bruno) nos falou que iria passar rápido, mas não tínhamos o teor dessa conversa”, disse.
Munição de uso restrito
A Polícia Militar do Amazonas informou que prendeu o pescador Amarildo da Costa de Oliveira, 41 anos, o “Pelado”, na terça-feira (7). “Pelado” foi preso na comunidade ribeirinha São Gabriel, o último lugar que avistaram Bruno e Dom no domingo passado. “Os policiais encontraram munição de uso restrito e permitido e chumbinhos”, disse o delegado Alex Perez, titular da 50ª Delegacia Interativa de Polícia Civil de Atalaia do Norte (distante a 1.138 quilômetros de distância, em linha reta, de Manaus).
“Churrasco”, que é tio de “Pelado” e presidente da comunidade São Rafael, e também “Janeo” foram detidos na segunda-feira (6) por suspeitos de envolvimento no sumiço do indigenista e do jornalista, mas liberados pela Polícia Civil, que abriu um inquérito para investigar.
A Polícia Civil afirma que “Pelado”, que cumpre a prisão em flagrante na Delegacia de Tabatinga, negou envolvimento com o desaparecimento do indigenista e do jornalista. No entanto, a lancha que ele usou foi apreendida e passará por perícia.
Para a nova testemunha ouvida pela Amazônia Real, “ele (Pelado) não ameaçou a gente só agora, tudo aconteceu antes. Ele não pode ser solto igual o Churrasco e o Janeo”. E acrescentou: “A Polícia Militar encontrou na comunidade São Rafael o motor 60 HP, que foi apreendido, junto com o dono, o Pelado. A lancha estava no porto da casa dele. Mas não encontraram nada, nada, nada que fosse suspeito de ser pertence do Bruno e do Dom”.
Perguntado se a equipe de vigilância indígena registrou a ação de “Pelado” e os outros dois homens no rio Itacoaí, a testemunha elucidou uma dúvida que paira sobre as investigações: “Quem registrou tudo foi o Dom. Fotografias, filmes, as agendas, todos os documentos estavam com eles. O Bruno iria levar tudo para a Polícia Federal na segunda-feira (6)”.
Questionado por que a equipe de vigilância EVU não acompanhou Bruno Pereira e Dom Philips na ida à comunidade São Rafael, já que havia um clima de animosidade e era temerário deixá-los seguirem sozinhos a uma área potencialmente conflagrada, a testemunha declarou: “Era muito cedo, 3 e 4 horas da manhã que eles se levaram. Olha, ele falou que iria passar rápido no Churrasco e seguir viagem, nós não tínhamos ciência do que aconteceria a conversa na comunidade”.
“Por incrível que pareça, no dia seguinte sentimos que a área estava vazia, não tinha ninguém circulando com o motor 60HP. Quando foi por volta das 10 horas de domingo (5) recebemos a notícia que Bruno e Dom não chegaram em Atalaia. Nós começamos a nos preocupar”.
“Nas buscas que fizemos até agora, somos mais de 30 indígenas, pelos igapós, furos, lagos, todos os igarapés, principalmente na beira do rio, não achamos um vestígio do Bruno e do Dom”, disse a testemunha, explicando que a investigação se centralizada entre as localidades de São Gabriel e Cachoeira “Mas temos esperança de encontrar uma pista”.
Livro sobre a Amazônia
Dom Phillips morava em Salvador, e estava acompanhando o trabalho da Univaja como parte de uma pesquisa para escrever o livro Como salvar a Amazônia. Antes do Vale do Javari, o jornalista tinha passado pelo Acre também para visitar populações indígenas.
O indigenista Bruno Pereira é servidor concursado da Funai desde 2010 e foi coordenador regional do Vale do Javari, em Atalaia do Norte até 2016, e coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Diretoria de Proteção Territorial da Funai, até 2019. Segundo o site Rede Brasil Atual, o indigenista saiu do cargo por pressões de ruralistas.