Por Luiz Roberto de Souza Queiroz
Quando o chefe da sucursal de Recife do Estadão, Carlos Garcia, foi preso e torturado pelo Exército. Um dos piores momentos foi quando um sargento folheou sua caderneta de endereços e cismou que uma anotação “boi”, seguida por um telefone, era o disfarce para indicar a célula comunista que “existe no Estadão, para divulgar notícias contra o Exército”.
“Torturado, eu não conseguia atinar o que era a anotação ‘boi’, feita havia muito tempo, e apanhei, apanhei muito, até que de repente lembrei que, quando viajamos juntos pelo Nordeste, você precisava escrever sobre a festa do boi bumbá, Bebeto, e um amigo contou que conhecia um grupo folclórico que fazia as apresentações e me deu o telefone; anotei com o nome abreviado, só boi”.
“Contando agora dou risada”, disse Garcia quando relembrou a história, “mas na hora não tinha graça alguma; lembro que havia um soldado no quartel que mandou colocar o eletrodo para dar choque nos meus testículos e não no peito, e explicou para os soldados que, no peito, os choques podiam ser fatais”, e completou: “nós não queremos que este filho da puta morra ainda”.
O mais triste é que Carlos Garcia foi entregue aos torturadores como sendo um perigoso comunista, desses que se dizia que comiam criancinha, por causa de uma gozada que deu num coronel do Exército. A reportagem que ele escreveu contava que por causa da lenda indígena do mboitatá, a cobra com olhos de fogo, circulou em Teresina que a cobra imensa tinha sido vista numa certa lagoa.
“Era lenda que se repete há anos no sertão”, escreveu Garcia, “mas um coronel do Exército levou a sério, montou uma expedição para capturar a cobra, o Exército drenou a lagoa… e não existia a cobra, como todo mundo sabia, menos o coronel”.
Garcia, Roberto Godoy e Raul Bastos contam a história no filme Estranhos na noite (em quatro partes), que relata os anos de chumbo no Estadão e o desespero de não poder se livrar da tortura, principalmente do gancho em que foi pendurado, algemado. É que nunca existiu célula nenhuma e não havia o que contar. Garcia só foi solto quando o dr. Júlio Neto passou um telegrama ao ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, responsabilizando-o pela vida do jornalista. Mesmo após a ordem de Orlando Geisel para libertá-lo, ele foi torturado uma noite inteira, antes de ser libertado.
Mas não são as tristezas que eu lembro do Garcia, lembro do seu bom humor e do seu amor pelas flores. Uma vez o levei para minha casa em Mairinque. Ele se impressionou com as árvores em volta do lago, ostentando nos galhos os longos fios esbranquiçados da Tillansdia usneoides, e expliquei que chamávamos a parasita de barba de pau. Ele olhou, pensou e disse: “Para nós, no Nordeste, barba de pau é pentelho”.
Outra vez, quando veio a São Paulo, queria jantar com ele mas explicou que não dava: “Vim nessa época porque meu sonho é descer a Serra de Santos na época da floração das quaresmeiras na Mata Atlântica”.
Ele queria ver a selva toda florida, com as árvores ostentando suas flores brancas e roxas. Fiquei pensando quantas vezes nós, paulistas, descemos a Serra xingando o trânsito, os congestionamentos, sem olhos de ver a beleza da mata, que encantava Garcia.
Seu amor pelas flores eu senti muitas vezes quando, juntos, rodamos o sertão inteiro fazendo matérias para o Estadão. Era um sertão bravo naquele então, tão bravo que Garcia nos fazia levar um estoque de coco verde no carro, pois a água dos açudes e riachos não seria aceita por meu organismo, por meu estômago de cidade grande, dizia ele.
E fomos parando o carro dezenas de vezes para Garcia fotografar as flores silvestres. Ele se desculpava dizendo que seu hobby era colecionar fotografias de flores, não de rosas nem orquídeas de floricultura, mas das florezinhas esquecidas, nascidas ao léu no meio do sertão tão querido do seu Nordeste querido.
Vá em paz, Garcia. Após essa vida tão bem vivida, está na hora de conhecer as flores do céu.
A história desta semana é uma homenagem de Luiz Roberto de Souza Queiroz, o Bebeto, a Carlos Garcia, morto pela Covid-19 em 27/4.
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