Por Luciana Gurgel

Luciana Gurgel

Palco de tensões entre colonizadores e povos originários, a Austrália está vivendo um drama que expõe as barreiras à inclusão na sociedade e na mídia, que resistem a projetos bem escritos e compromissos verbais cheios de boas intenções.

Em 19/5, o premiado jornalista Stan Grant, apresentador da rede pública ABC e uma das estrelas da mídia australiana, anunciou em sua coluna a decisão de se afastar, pelo menos temporariamente. Ele é indígena, da etnia Wiradjuri, e estava no comando do programa de debates Q+A.

A gota d’água foi uma onda de insultos racistas em reação a comentários contrários à monarquia feitos durante a transmissão da coroação do rei Charles III. A parcela mais conservadora da Austrália discorda do movimento republicano, que deseja remover o monarca inglês da chefia de Estado.

Premiado jornalista, que já foi correspondente da CNN, entrevistou líderes globais e tem mais de 30 anos de experiência profissional, Grant escreveu  que estava deixando o jornalismo devido aos abusos em redes sociais e ao comportamento da imprensa e da ABC: “A mídia transformou a discussão pública em um parque de diversões. A mídia social […] é um espetáculo sórdido. […] Vidas são reduzidas à zombaria e ao ridículo”.

No texto corajoso, ele diz ser regularmente ridicularizado ou abusado racialmente, assim como membros de sua família (a filha também é jornalista). E afirma que a esposa é alvo por ser casada com um Wiradjuri.

A onda de ataques subsequente à coroação fez o copo transbordar e respingar até no conglomerado News Corp, de propriedade do magnata da mídia Rupert Murdoch, cujos títulos são acusados pela ABC de colocar lenha na fogueira para destruir a emissora pública.

Grant diz na coluna que ninguém na ABC − cujos produtores o convidaram para participar da cobertura da coroação − pronunciou uma palavra de apoio público nem refutou as mentiras sobre ele após a transmissão.

Ele afirma não responsabilizar nenhum indivíduo, livrando explicitamente a pele do diretor de Jornalismo Justin Stevens, que estaria “tentando mudar uma organização que tem seu legado de racismo”.

E demonstra indignação ao salientar que todas as reportagens criticando a ABC por parcialidade na transmissão foram ilustradas com a sua foto, afirmando querer encontrar um lugar “longe do fedor da imprensa” e onde não se lembre “do esgoto da mídia social”.

O caso não é isolado. Na edição especial sobre diversidade na mídia publicada pelo MediaTalks em 2022, a correspondente brasileira Liz Lacerda descreveu o ambiente hostil para estrangeiros e povos originários em seu artigo A Mídia dos Brancos e a Mídia dos Outros. Ela relatou a predominância de jornalistas brancos na ABC, falando inglês australiano sem sotaque, apesar de quase metade da população ter nascido fora do país ou ter pelo menos um dos pais estrangeiros.

Há um canal digital na rede pública dedicado aos aborígenes, o que, longe ser uma vantagem, comprova a segregação existente no jornalismo.

O terremoto provocado por Stan Grant continua gerando ondas de choque. David Anderson, diretor-geral da ABC, pediu desculpas no domingo em um e-mail para a equipe, dizendo que as experiências dele foram “angustiantes e conflituosas” para a corporação.

Anderson defendeu-se da acusação de inércia lembrando que no início do ano a empresa denunciou assédio a Grant no Twitter. Mas isso parece estar longe do que o jornalista esperava.

No dia seguinte, o diretor de Jornalismo deu uma entrevista lamentando não ter se posicionado publicamente antes. E criticou abertamente a organização de Murdoch, afirmando que a ABC vive um nível de ataques sem precedentes.

No mesmo dia, funcionários e jornalistas da ABC protestaram diante de várias redações da empresa, em solidariedade a Stan Grant e rejeitando o racismo. Parlamentares uniram-se ao protesto.

Em uma análise sobre o caso publicada no The Sydney Morning Herald, a pesquisadora Jenna Price uniu-se ao coro dos que criticam a postura de alguns jornalistas da News Corp, sobretudo colunistas e editorialistas que se alinharam aos que não gostaram das posições Grant sobre o papel da realeza e dos povos originários.

Como ele mesmo admitiu, é difícil mudar o racismo estrutural em empresas jornalísticas estabelecidas em uma sociedade dividida entre colonizadores e colonizados. Pode ser que nunca mude. Mas pelo menos alguém com voz potente fez alguma coisa − e a terra continua tremendo no jornalismo australiano.


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