Por Luciana Gurgel
O que parecia ser o mea culpa sincero de um homem arrependido de sua má conduta tornou-se uma crise no jornalismo polonês, expondo uma das mazelas do mundo corporativo da qual a imprensa não está imune: abusos cometidos por poderosos, que se tornaram mais visíveis à medida que as vítimas passaram a denunciar.
O personagem do escândalo é uma celebridade da mídia polonesa, o jornalista investigativo Marcin Kacki.
Autor de livros e professor universitário, ele publicou em 5/1 no site da Gazeta Wiborcza, onde era editor, um artigo descrevendo seus problemas com álcool, dificuldades de se tratar e relacionamentos complicados com mulheres, que a seu ver o teriam perdoado. O título era “Meu jornalismo – álcool, terapias fracassadas, mulheres mal amadas, filhas negligenciadas e medo do amanhecer”.
Kacki atribuiu o comportamento inadequado à sua enorme dedicação à profissão, destacando grandes reportagens que fez, algumas sobre abuso sexual.
Poderia ser uma atitude nobre, admitindo fraquezas e tentando fazer as pazes com o passado e com pessoas que magoou. Só que a história era outra.
Semanas antes, Kacki havia sido afastado da Escola Polonesa de Jornalismo após denúncia de assédio feita por uma ex-aluna, Karolina Rogaska, que hoje trabalha na Newsweek polonesa. Só que o jornal não sabia disso, nem os colegas, nem o público que leu seu artigo.
Todos ficaram sabendo quando Rogaska publicou no sábado um longo post no Facebook revelando o afastamento da faculdade e detalhes do assédio, alguns repugnantes.
Ela relatou que os dois haviam conversado por telefone recentemente, e que chegou a achar que Marcin Kacki tivesse “entendido alguma coisa” sobre o que fez no passado. Mas que ao ver o artigo publicado no site e o tom de vítima adotado pelo autor, julgou que os telefonemas eram apenas “para recolher mais material” para uma autodefesa. E que o texto era parte de uma estratégia para neutralizar o impacto negativo quando a história da faculdade se tornasse pública.
“Cansada do culto aos torturadores”
Nem todas as vítimas têm a mesma coragem. Karolina Rogaska abre o texto no Facebook demonstrando consciência sobre o que poderia enfrentar: “Não posso mais ficar calada, mesmo sabendo que isso pode envolver linchamento. Sei, infelizmente, como as vítimas são tratadas. Mas já chega, estou cansada do culto aos torturadores”.
Após o post no Facebook, o jornal agiu rápido, demitindo o autor. O título instigante continua ativo na internet, mas agora dá acesso a uma página em que a Gazeta Wyborcza pede desculpas aos leitores e a Karolina Rogaska. O jornal disse desconhecer previamente o afastamento de Kacki da faculdade e assumiu a culpa por não ter tomado mais cuidado com um assunto tão sensível.
Nem sempre o desfecho é esse. Outros figurões de redações pelo mundo foram acusados de assédio, e as empresas jornalísticas levaram algum tempo para decidir o que fazer.
Também é raro uma jornalista se expor tanto. Vários abusos ficam impunes porque as vítimas preferem não revirar o passado ou não querem ficar marcadas, temendo implicações para a carreira.
Pelo menos para uma já teve − a de Marcin Kącki. Ele deu entrevistas sem negar as denúncias e tentou dividir a culpa sobre a publicação do artigo, argumentando que editores do jornal leram o texto antes. Mas os comentários sobre sua conduta são demolidores.
Parece ser mais um caso de talento que vê sua carreira abalada por um comportamento que nem todos ainda perceberam que não é mais tolerado. E que, se ocorreu no passado, demanda mais do que justificativas para maus atos ou desculpas indiretas.
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