Por Luciana Gurgel

Luciana Gurgel

Os protestos da extrema direita que se alastraram pelo Reino Unido nos últimos dias, após um ataque a faca em uma escola de dança de Southport que deixou três crianças mortas, encontraram rapidamente um mordomo para levar a culpa: a mídia social.

No entanto, nem todos concordam que as redes sejam as únicas responsáveis, abrindo um debate no país sobre o papel das plataformas e meios para regulá-las, mas também sobre a contribuição da grande mídia, aliada a narrativas extremistas e dos políticos que as insuflam.

O que detonou os protestos foi a notícia (errada) publicada nas redes sociais apontando um imigrante como autor do crime. Mas é apenas a ponta do iceberg.

Essa história de reação violenta a imigrantes − sejam eles ilegais, refugiados com direto a asilo ou gente que se estabeleceu no Reino Unido legalmente para trabalhar − não é de hoje e nem de longe pode ser vista apenas como reação a um crime trágico.

Ela tomou corpo com o Brexit. Sair da União Europeia parecia uma ideia absurda, mas venceu raspando um plebiscito em 2016, por 52% a 48%, expondo um “Reino Desunido”.

A campanha pró-Brexit tinha uma narrativa muito parecida com a que está sendo utilizada pelos extremistas da English Defense League (EDL) para atacar mesquitas, queimar carros, encarar policiais e até incendiar uma delegacia de polícia, um desafio à autoridade que não é comum por aqui.

Ela prega: “We want our country back.”

Uma guerra cultural

O lema não diz respeito apenas a não querer estrangeiros supostamente tomando empregos dos britânicos. É uma reação à multiculturalidade, dizendo não a pessoas que praticam outra religião, ouvem outras músicas, usam outras roupas ou comem outras comidas. Mais do que empregos, os alinhados à EDL são motivados por identidade cultural.

É claro que não se pode negar o poder de influenciadores extremistas, principalmente Tommy Robinson e Andrew Tate, com respectivamente 800 mil  e 9,2 milhões de seguidores no Twitter / X.

Eles haviam sido banidos, mas foram readmitidos na plataforma por Elon Musk, que chegou a retuitar uma postagem de Tate nos últimos dias e agora comprou uma briga pública com o premiê Keir Starmer, afirmando que uma guerra civil é inevitável no país.

Mas esses influenciadores chegaram aonde estão porque conseguiram aliciar gente comum. E essa gente comum não se informa (?) apenas por redes sociais.

GB News: a Fox News britânica deu palanque a Nigel Farage

O Reino Unido tem a sua Fox News, chamada GB News. Não na mesma escala, mas a rede criada em 2021 por apoiadores do Partido Conservador, na esteira da saída da União Europeia, tem audiência de 2,8 milhões de pessoas por mês. Em 2023 seus canais online registraram mais de 50 milhões de pageviews.

E ela deu palanque para uma figura central no discurso contra imigrantes: Nigel Farage, cada vez mais apontado como um dos culpados pelo clima que levou aos protestos da extrema direita no Reino Unido.

Nigel Farage

Depois de muitas tentativas, o controvertido político conquistou pela primeira vez um assento no Parlamento nas eleições realizadas em julho, tendo desistido de ir trabalhar na campanha de seu amigo do peito Donald Trump, como já fez no passado, ao ver que havia terreno fértil para sua candidatura e do seu partido, o Reform UK.

Farage é um hábil comunicador, que ganhou um programa quatro vezes por semana na GB News, e utiliza há três anos o palanque eletrônico para martelar a retórica nacionalista.

Como jornais britânicos ajudaram a construir a guerra cultural

Ainda na grande mídia, todos os jornais do Reino Unido estão obviamente contra os protestos. Mas alguns deles poderiam fazer o seu mea culpa pela violência nas ruas.

O Daily Telegraph, um dos grandes diários nacionais britânicos, segue a mesma retórica no editorial e no time de articulistas fixos que emprega. O mesmo acontece com os tabloides Daily Express e Daily Mail.

Este último, o mais lido do país depois do gratuito Metro, estampa manchetes absurdas como O verdadeiro peso dos migrantes para o Reino Unido, alegando que metade dos britânicos sofria problemas de acesso a escolas, saúde pública e habitação devido aos estrangeiros − muitos europeus trabalhando em empregos que eles não queriam e pagando impostos. E não devido à gestão catastrófica do Partido Conservador que perdeu as eleições de lavada.

Retórica da mídia

Esses veículos da mídia tradicional atingem gente que está dentro e fora das redes sociais. E vêm construindo há anos uma visão de mundo que trata o diferente como ruim − em um país que, pela sua história imperial, devido a acordos com as colônias, sempre recebeu imigrantes e teve um diálogo mais aberto com outras culturas.

Mas o que publicam ou veiculam também repercute nas redes sociais, em seus próprios canais ou compartilhado pelos que lá estão circulando livremente, mesmo respondendo a acusações criminais, casos de Tate e de Robinson.

As fontes do conteúdo da mídia e das redes sociais

A terceira perna nesse tripé é a fonte para o conteúdo de ódio, polarizador e nacionalista da imprensa tradicional e das mídias sociais.

Aí entram políticos que realmente acreditam nessas teses, e aqueles que por oportunismo embarcam nela, como Farage e Boris Johnson.

O ex-jornalista que virou premiê e teve que sair da política (pelo menos por enquanto) devido aos sucessivos escândalos em sua gestão, como o Partygate, um dia foi contra o Brexit, escrevendo isso em colunas de opinião. Mas virou de lado e se elegeu primeiro-ministro em 2019 com larga maioria no Parlamento, bradando que iria entregar a saída da União Europeia no momento em que um acordo estava complicado e pressões por um novo plebiscito ganhavam força.

Seu dream team na gestão do país entre 2019 e 2023 foi formado por figuras políticas controvertidas, que usaram durante todo esse tempo sua exposição em todas as mídias e na tribuna do Parlamento para defender o nacionalismo e o “fora imigrantes”, além de proporem ou implantarem medidas efetivas nessa direção, como o controvertido projeto de enviar refugiados para Ruanda.

A culpa é só das redes?

É fácil culpar apenas grandes plataformas de mídia social, sobretudo o Twitter / X, por deixarem esse conteúdo nocivo circular e não banirem os extremistas.

Mas é como enxugar gelo, pois as redes do submundo, fora do alcance das regulamentações, continuariam aliciando gente mais inclinada a embarcar nessas teses.

Outras pessoas, certamente suscetíveis porém menos “engajadas”, talvez não embarcassem se não fosse a ajudinha de políticos com credibilidade nacional e redes de mídia tradicional.

Apesar de todas as pesquisas apontando descrédito na imprensa, ela ainda desfruta de uma aura de confiável, sobretudo a que fala aquilo que o seu público está querendo ouvir em vez de abrir espaço para opiniões diversas. E seu conteúdo é compartilhado para colocar mais lenha na fogueira da guerra cultural.

As redes sociais têm culpa, mas não deveriam sentar sozinhas no banco dos réus em um julgamento sobre quem é o vilão que levou aos confrontos que estão assustando o Reino Unido.


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