Por Lyz Ramos e Victor Félix
No Dia Internacional das Mulheres, o Portal dos Jornalistas traz uma entrevista com Lilian Tahan, diretora-executiva do portal Metrópoles. Sob o comando dela, uma equipe formada por mais de 40 mulheres mapeou a analisou todos os casos de feminicídio ocorridos no Distrito Federal em 2019.
Desta megaoperação nasceu a reportagem especial Elas por Elas, que trouxe perfis, ilustrações e registros das vítimas com a proposta de personificar os números crescentes da violência contra a mulher na região.
A partir do desenvolvimento e notoriedade que o projeto tomou, Elas por Elas venceu os prêmios Mulher Imprensa (Reportagem com temática sobre mulheres) e Roche (Cobertura Diária), colaborando para que o Metrópoles se tornasse o +Premiado Veículo de Comunicação de 2020. O projeto também ganhou um espaço editorial no portal Metrópoles e desdobrou-se em palestras pelo Distrito Federal.
Fizeram parte do projeto, além da própria Lilian Tahan, Priscilla Borges, Maria Eugênia, Olívia Meireles, Érica Montenegro, Amanda Cieglinski, Ana Beatriz Magno, Ana Helena Paixão, Antonia Pellegrino, Basília Rodrigues, Bruna Sabarense, Carol Oliveira, Carol Pires, Carolina Nogueira, Carolina Vicentin, Clara Arreguy, Clara Averbuck, Conceição Freitas, Donas da Rima, Gabriela de Almeida, Isabella Cavalcante, Juliana Contaifer, Luísa Guimarães, Jak Spies, Maithe Marques, Maria Clarice Dias, Marina Oliveira, Nísia Bahia, Rafaela Lima, Roberta Gregoli, Raquel Martins Ribeiro, Regina Bandeira, Tânia Fusco, Tatiana Sabadini, Thaís Antonio, Thais Cieglinski, Denise Costa, Juliana Afioni, Mariana Reino, Viviane Novais, Stela Woo, Stephanie Arcas, Yanka Romão, Isabella Almada, Jacqueline Lisboa e Rafaela Felicciano.
Em entrevista ao Portal dos Jornalistas, Lilian falou sobre as origens do projeto, o que as autoras sentiram escrevendo, as dificuldades de abordar um tema tão delicado, e todos os aprendizados que as histórias trouxeram para a redação. Ela destacou que uma grande percepção das mulheres envolvidas no projeto foi a de que “a morte violenta na verdade é o fim da linha de uma história de vida muito sofrida. Então a gente se propôs a contar uma história de vida”.
Lilian contou também que, apesar de Elas por Elas envolver apenas mulheres, foi um projeto que “o Metrópoles todo abraçou. Todos os profissionais, passando por todas as hierarquias. (…) É muito importante que o homem esteja envolvido no debate, mas na execução do Elas por Elas sentimos que, com uma equipe inteiramente feminina, teríamos empatia e um sentimento de não resistência nas conversas com familiares”.
Por fim, a diretora do Metrópoles destacou os aprendizados e a importância dos reconhecimentos e prêmios que o projeto recebeu.
“O fato de termos gastado energia para cobrir um aspecto tão cruel da sociedade fez com que as pessoas prestassem mais atenção nele. (…) Nós nunca mais olhamos uma história de feminicídio da mesma forma após o projeto. Os reconhecimentos nos ajudam a olhar para trás e dizer ‘valeu a pena’, respirar fundo e seguir cobrindo outros temas tão essenciais como este.”
Confira a entrevista com Lilian Tahan na íntegra:
Portal dos Jornalistas: Como surgiu a ideia de fazer o Elas por Elas? Desde o começo o objetivo era construir um projeto nesse formato e a tantas mãos?
Lilian Tahan: Um projeto desse tamanho depende de orçamento e de um esforço muito grande da equipe. Nós tivemos uma percepção coletiva na redação. Notamos um aumento significativo no número de matérias sobre feminicídio e violência contra a mulher publicadas por nós diariamente.
Quando percebemos que essas mortes estavam cada vez mais frequentes, eu tomei a decisão de que faríamos um projeto especial ao longo do ano inteiro – na época, ainda era outubro de 2018. Chamei as principais editoras e conversamos sobre o formato do projeto.
Logo percebemos que não teríamos braços suficientes para abordar tudo o que acontecia, então fizemos contratações, incluindo a editora Érica Montenegro, que ficou responsável pela coordenação, além de repórteres para a produção dos perfis.
Foi a partir de um reforço de equipe que a gente conseguiu dar um olhar, um tratamento muito mais zeloso, muito mais cuidadoso para esses eventos graves, com o objetivo de não só olhar diferente, mas também dar um tratamento diferente.
Portal: Como foi a preparação para as entrevistas? Qual foi a conduta utilizada para conversar com vítimas, familiares e amigos?
Lilian: Quando você está abordando um crime e tem urgência de publicação, por mais cuidadoso, humano e empático que seja um repórter, às vezes é complicado ter o tom certo, porque ele está pressionado pelo tempo.
Então, imagina quantas vezes o jornalista chega ali para fazer uma abordagem em um cemitério e as pessoas sentem aquela impressão de falta de empatia: “Poxa, eu tô aqui no meu momento de dor, vivendo o auge do meu luto e um repórter veio me abordar? Não é momento!”. Então, a gente tomou a decisão de resgatar a história dessas mulheres.
Poderia ser a pessoa mais simples ou alguém com cargo importante, não importa. Nós resgatamos com todo o cuidado. Então, a abordagem foi muito cuidadosa e muito delicada. E para tornar isso possível a primeira coisa que você precisa é de tempo e estrutura.
Alguns perfis que fizemos foram publicados três, quatro meses depois de a mulher ter sido morta. Porque a gente fez uma abordagem familiar, foi até a família, pediu licença, bateu na porta, explicou que estávamos querendo contar a história daquela mulher e todo o contexto que cercava a vida dela.
O que a gente aprendeu fazendo esse projeto é que a morte violenta na verdade é o fim da linha de uma história de vida muito sofrida. Então, a gente se propôs a contar uma história de vida. Nada justifica um assassinato, mas a gente consegue entender o estado de vulnerabilidade de uma mulher que é vítima de feminicídio.
E isso nos permite também, até como prevenção e como um alerta para as autoridades públicas, mostrar que esses casos são anunciados pela condição de vulnerabilidade em que aquelas mulheres se encontram e porque os assassinos dão sinais claros, muitas vezes verbais, de que vão matar essas mulheres.
Por isso, tivemos que mergulhar nas histórias e resgatar profundamente a vida e o contexto de vida dessas mulheres. Então, a gente fez perfis muito elaborados, muito cuidadosos, que levaram muito tempo para serem feitos. Às vezes a repórter visitou e revisitou várias vezes essa mesma família para que ela tivesse a segurança do que estava apurando.
Conversamos com amigos, vizinhos, buscamos pessoas próximas do assassino. Muitas vezes fomos atrás do próprio assassino dentro dos presídios, onde quer que ele estivesse, com o objetivo de compreender, não suas razões, até porque o assassino nunca tem razão, mas o contexto de vida da mulher vitimada. E isso às vezes levava muito tempo, até a gente quebrar a resistência, por exemplo, da família. A família está muito sentida.
Portal: Como as autoras dos textos se sentiram escrevendo sobre o tema?
Lilian: Várias meninas que produziram o conteúdo voltaram para a redação com sentimento muito doído, de tristeza, de impotência, de senso de responsabilidade do tanto que aquilo ali era importante para a gente alertar. Porque o objetivo é contar o que aconteceu e alertar para que outros casos não ocorram. Então, gerou um sentimento de muita tristeza, mas ao mesmo tempo um sentimento de empatia, de pertencimento em uma sociedade ainda muito dura com a mulher e com o papel que ela desempenha.
Portal: O Metrópoles forneceu algum tipo de serviço de apoio psicológico/emocional para as repórteres? De que forma vocês conversaram para os casos não abalarem as repórteres?
Lilian: Nós somos um grupo muito unido. A gente tem um nível de parceria muito grande. Então, por exemplo, eu sou a líder do projeto, mas a minha porta está sempre aberta. Existe, claro, uma hierarquia, mas ela não é muito vertical, é bastante horizontal.
Todas as questões que foram sendo descobertas, todos os dramas que foram trazidos, isso tudo chegou para a gente, e eu sempre tive o cuidado de observar caso a caso, de estar ajudando dentro do que eu podia fazer. A conversa entre nós é constante, a gente sempre debateu muito.
Esse foi um tema que tratamos durante um ano inteiro. Não foi uma questão do tipo: “Faz lá, trabalha lá esse assunto, esse especial e traz depois”. Não, foi um projeto que o Metrópoles todo abraçou. Todos os profissionais, passando por todas as hierarquias, a gente sempre conversou e esteve muito próximo.
Portal: Quais foram as principais dificuldades na produção do projeto?
Lilian: Creio que é um assunto muito delicado, então você tem uma abordagem também muito delicada. Não é como se você estivesse ligando, por exemplo, para um chefe de cozinha que está inaugurando um novo restaurante e está doido para falar sobre esse novo restaurante. Neste caso, você tem portas abertas. É muito fácil você fazer essa abordagem.
Mas, no nosso caso, você bater na porta de alguém que está sofrendo, em luto por causa de uma tragédia, é muito mais complexo. Você tem bastante dificuldade de fazer essa abordagem. Então, leva-se tempo, você tem que ter paciência, é preciso ter um jeito muito cuidadoso, reunir profissionais muito experientes, e a gente fez isso de uma maneira sistemática.
Para buscar profissionais experientes, é preciso um orçamento compatível, então foi um projeto que mobilizou toda a redação, sugou uma energia importante de todos nós e teve um investimento significativo. A dificuldade passa pela natureza delicada do assunto, principalmente em relação à abordagem das famílias.
Felizmente, uma dificuldade que pensei que teríamos acabou não acontecendo. A gente abriu um contador de violência contra mulher no site e isso foi muito simbólico. Detectamos o espaço que mais rendia publicidade durante o ano inteiro e colocamos ali um box com o contador da violência contra a mulher.
E isso precisava ser atualizado todos os dias. Só que para você ter condição de atualizar você precisa que as autoridades passem esses números. E isso dependia da boa vontade das autoridades em fornecer os dados em um espaço curto de tempo. E a delegacia de atendimento às mulheres foi excelente conosco, nos passaram os dados com muita brevidade. Então, o que era para ser uma dificuldade, acabou se tornando uma força-tarefa e eles foram muito parceiros da gente, nos possibilitando atualizar a contagem durante o ano inteiro.
Portal: Quais foram as entidades/órgãos que forneceram os dados para o projeto?
Lilian: Essa coleta foi feita a partir de dados oficiais de entidades como Ministério Público, Ministério da Saúde, Secretaria da Saúde do DF, Polícia Civil do Distrito Federal, e Polícia Militar do Distrito Federal.
Portal: O fato de terem sido mulheres que tocaram o projeto fez diferença no produto final?
Lilian: Sim, fez diferença. Existe toda uma empatia, um lugar de fala e outros processos que, por sermos mulheres, acabaram facilitando e melhorando o projeto. Só conseguimos construir uma sociedade mais tolerante com a existência das mulheres se conseguirmos educar desde cedo os homens mostrando que, sim, naturalmente temos diferenças, mas temos o mesmo valor que os homens têm.
É muito importante que o homem esteja envolvido no debate, mas na execução do Elas por Elas sentimos que com uma equipe inteiramente feminina teríamos empatia e um sentimento de não resistência nas conversas com familiares.
Portal: O projeto ajudou a aumentar a discussão sobre feminicídio, com campanhas em escolas, você apresentou o Elas por Elas em evento no Ministério da Justiça… o que você tem a dizer sobre os desdobramentos do projeto?
Lilian: Nós nunca mais olhamos uma história de feminicídio da mesma forma após o projeto. Claro, todo o nosso esforço, a produção dos perfis, ficou concentrado em um ano específico, mas foi um aprendizado para todos nós, uma experiência única na cobertura de um tema tão delicado e importante. Todos temos agora um olhar muito mais cuidadoso, que faz parte do dia a dia no Metrópoles.
Portal: Os prêmios recebidos pelo Metrópoles ajudaram o portal a ser o +Premiado veículo de comunicação do Brasil em 2020, segundo levantamento do J&Cia/Portal dos Jornalistas. Qual o significado desses reconhecimentos para você e sua equipe?
Lilian: Eles nos ajudam a perceber que estamos no caminho certo. É muito gratificante ter um trabalho reconhecido, mas, mais do que isso, nos dá um reforço de que o caminho é esse, de que é essencial olhar para temas sociais, de que nosso papel é muito importante.
Temos a gestão do nosso orçamento, do nosso tempo, do nosso foco, da nossa energia, e quando direcionamos esses quatro elementos para o caminho certo, para o objetivo certo, não só vamos dar voz a um determinado grupo, mas teremos um retorno em forma de reconhecimento e reforço de que estamos no caminho certo.
O jornalismo tem um papel social, mas existe a questão da sobrevivência, passamos boa parte do dia tentando sobreviver. Não é um modelo fácil, existir atualmente fazendo jornalismo não é fácil. Então, precisamos desse tipo de reconhecimento e reforço, pois isso mostra para nós que nosso trabalho valeu a pena, conseguimos chamar a atenção da sociedade para um tema tão importante e essencial.
O fato de termos gastado energia para cobrir um aspecto tão cruel da sociedade fez com que as pessoas prestassem mais atenção a ele. Esse resultado nos dá também energia para seguir em frente e fazer outros projetos. Nos ajuda a olhar para trás e dizer “valeu a pena”, respirar fundo e seguir cobrindo outros temas tão essenciais como este.