Ah, internet… o que falar de você, que mal conheço, mas já considero pacas? Que revolucionou apuração e entrevistas? Que transformou laudas em posts e celulares em unidades móveis de tevê? Que tornou obsoletas as letras miúdas dos classificados e chacoalhou a receita de impressos? Que deu voz a tanta gente e calou tantos coleguinhas, agora sem emprego? Desde 2012, mais de 5.000 jornalistas foram demitidos de redações no Brasil. Quem fez A conta dos passaralhos foi o Volt Data Lab, baseado em notícias veiculadas por sites especializados, inclusive nosso Portal dos Jornalistas. Para nós, que cobrimos há anos essas danças de cadeiras, não é difícil notar que a onda mais vai do que vem. Em um primeiro momento, vagas múltiplas foram fechadas. De dez redatores, ficam quatro. E ingressar no mercado de trabalho “tradicional” passou a ser um grande desafio para os mais jovens. Ultimamente, o movimento vem atingindo seniores. Salários altos, 30 anos de casa, nomes intrinsecamente ligados a marcas deixam de valer a pena para a indústria da mídia. Demissão aos 50, e agora? Por onde começar se ninguém abre a porta aos 20? Por olhos pessimistas, a internet para o jornalismo é sinônimo de desemprego, perda de qualidade da notícia e crise da profissão, em que não vale mais a pena investir. Às vistas de Pollyanna, a pulverização da mídia, o baixo custo de produção e o acesso de cada vez mais gente aos meios digitais são estímulos para descoberta de um novo jeito de fazer jornalismo: com mais autonomia. Claro que essa autonomia não vem de graça. Junto a ela, novas habilidades passam a fazer parte da lista de afazeres do novo – e necessariamente digital – jornalista. Empreender, gerir, vender, fazer conta, negociar, experimentar. Escrever, filmar, fotografar, editar, narrar, desenhar, interagir. Analytics, final cut, photoshop, wordpress, piktochart, etus. A responsabilidade aumenta. As possibilidades e os riscos também. Para entender mais sobre esse jornalista repaginado, conversamos com Sérgio Lüdtke, que até o final de 2015 coordenava o Master em Jornalismo Digital do Instituto Internacional de Ciências Sociais, em São Paulo, e que vem trabalhando na pesquisa Empreendimentos do Jornalismo Digital Brasileiro, a ser lançada em breve. Com ela, o objetivo de Sérgio é verificar o estado do empreendedorismo digital no jornalismo brasileiro e identificar padrões de criação e evolução das iniciativas da área. De carona com o estudo, vamos conhecer, ao longo das próximas semanas, personagens que dão cara e forma ao novo modo de fazer jornalismo. No que erraram, o que vêm fazendo de bacana, competências desenvolvidas, percalços, ideias, ferramentas utilizadas e tudo mais que couber e nos ajudar a decifrar com quantos toques (ou cliques) se reinventa um jornalista. Veja o que nos conta Lüdtke: A origem da pesquisa A ideia de pesquisar ou mapear de alguma forma o empreendedorismo no jornalismo brasileiro surgiu no ano passado, quando resolvemos abrir uma bolsa para empreendedores no Master em Jornalismo Digital. Já percebíamos que havia um movimento – mas era uma coisa bastante intuitiva de nossa parte – de pessoas saindo de redações, com muita dificuldade de se inserirem novamente no mercado, fazendo um trabalho de freelance e começando a produzir seu blog, criar um site. Iniciativas no meio digital, que possibilitam a criação de veículos sem a necessidade de um investimento financeiro muito grande. Quando lançamos essa bolsa, me chamou muito a atenção o volume enorme de gente que apareceu. Inscrições inclusive de fora do Brasil, coisa para a qual não estávamos preparados. Esse número muito grande em poucos dias me fez ver que era necessário fazer uma averiguação, um mapeamento para conferir qual era o estado disso. Como está se instituindo isso no Brasil? Quais são as dificuldades dessas pessoas? Quais são as oportunidades que elas estão vendo no mercado de trabalho? E, principalmente, o que falta de preparo para essas pessoas para que elas consigam que esses projetos sigam adiante? Então, parti de algumas entrevistas qualitativas para buscar elementos e inseri-los em uma pesquisa maior. Minha ideia – sem nenhuma dimensão do que isso poderia ser – era chegar a 150 empreendimentos. Desses, gostaria de ter 90, 100 que pudessem me responder. Mapeei muito mais do que isso. Foram mais de 250, sem incluir empreendimentos que integrem alguma empresa da indústria da mídia, financiados pelo governo ou que se considerassem sem fins lucrativos, porque eu achava que isso destoava do meu objetivo inicial. Desse número que mapeei, consegui que aproximadamente 70 me dessem retorno. Essa [curiosamente] foi uma grande dificuldade que tive: como conversar com essas pessoas. Mapear, saber que elas existem, ter a indicação de alguém ou uma URL na mão não significa muito, porque os pontos de contatos que esses empreendimentos disponibilizam para o público são muito precários. Desde formulários de contato que simplesmente não funcionavam até a falta de resposta. Escrevi cinco, seis vezes para cada um deles. Se eu fosse alguém que tivesse entrado no site, gostado e quisesse, de alguma maneira, colaborar com ele, não teria sequer como saber de minha oferta. Pecam já no princípio, que é a comunicação. Quem são os jornalistas empreendedores e o que querem contar A maioria desses profissionais já teve experiência em veículos – muitas vezes online –, mas também muitos vêm de redações tradicionais. São profissionais que saíram ou foram cortados em algum processo de demissão. Outros tomaram a decisão, por conta própria, por vontade de fazer algo diferente. Alguns com recursos – ou porque saíram de empresas ou porque tinham algum dinheiro guardado e resolveram investir. É um perfil bastante amplo. Difícil de colocar em faixas etárias. E é também bastante amplo no sentido geográfico, há vários empreendimentos espalhados pelo Brasil. Normalmente, os empreendedores fazem opção por determinado nicho. Por exemplo: alguém que cobria tênis em determinado jornal, essa editoria fechou, então ele faz um site sobre tênis. Alguns são empreendimentos um pouco mais complexos, são grupos de pessoas que se juntam e tentam focar às vezes num tipo de linguagem ou delimitação geográfica. Em geral, a escolha está ligada a uma determinada habilidade ou experiência do jornalista, que tenta seguir por ali aproveitando parte da experiência e a paixão sobre o tema. Pontos em comum de empreendimentos que não se sustentam… Não pensar num modelo de remuneração que fuja da publicidade. A maioria deles pensa em viver de publicidade. Esse, a meu ver, é um erro bastante comum: ver a publicidade como única alternativa de sobrevivência. …e o que pode dar certo O que é perceptível aos que conseguem sustentação econômica para ficar mais tempo é saber diversificar ou mudar o direcionamento inicial para aportar coisas, buscar experiências diferentes daquilo que eles queriam incialmente. Desse modo, conseguem transformar a atividade, a produção do conteúdo em um elemento do negócio jornalístico que criam. Os que conseguiram fugir da premissa de que “nós só vamos fazer jornalismo e vamos viver de publicidade” me parecem ser os em melhores condições. Um exemplo disso é o Destemperados, do Rio Grande do Sul. Em torno da produção de conteúdo, eles começam a agregar outros modelos de negócios (como a criação de food parks, associação com a RBS para produzir cadernos de gastronomia dos jornais do grupo, participação em quadros de rádio, eventos etc.) que podem ajudar a dar manutenção, sem deixar de pensar na produção de conteúdo, que continua sendo a base, a forma de dialogarem permanentemente com o público. Porque todas as outras coisas são circunstanciais, mas a produção de conteúdo, não. Olhar curioso também para o negócio Muitas vezes, essas outras possibilidades de negócio não partem do jornalista. Mas se ele está aberto a outras proposições e tem um olhar um pouco mais curioso – que é um olhar que jornalista tem, só que não para o negócio –, pode encontrar alternativas de sustentação em que não tinha pensado antes. O jornalista tem uma dificuldade muito grande, que herda da indústria, porque a indústria da mídia demonstra há muito tempo dificuldade de fazer essa variação, de pensar que as marcas podem ser reconstruídas – ou que existem marcas internas que podem ganhar uma dimensão maior – e insistem em que só a marca-mãe do seu negócio é válida, não tratando o digital com todas as especificidades que pode ter. Talvez o problema do jornalismo e dessas novas iniciativas seja a falta de oportunidade de arejar seu negócio. O que se vê em comunicação corporativa, por exemplo, são várias caminhadas, vários talentos, vários repertórios que as agências trazem para dentro delas, fazendo com que haja uma explosão criativa tanto de oportunidades quanto de informação. Para tirar o olho do retrovisor Jornalista só se dá com jornalista. Fica muito fechado num único grupo e não permite que todas essas outras competências comecem a fazer parte de seu trabalho. Repensar as coisas com foco fechado é muito difícil. Olhar para o futuro sem tirar o olho do retrovisor é ruim para começar a conseguir fazer coisas novas. A gente não arrisca, não desbrava, não consegue enxergar, não tem outras pessoas com experiências diversas das nossas que possam contribuir para que possamos olhar ou experimentar outras coisas. Acho que isso é herdado [das grandes empresas de mídia] também por essas novas iniciativas. Então, boa parte delas, infelizmente, vai fechar, não vai conseguir sobreviver. Muitos, por exemplo, saem de uma redação achando que vão fazer um crowdfunding, que vão conseguir manter-se por um bom tempo com várias chamadas de financiamento. O crowdfunding é que nem rifa de colégio: vendemos primeiro para os pais, avós, tios, para um vizinho ou outro… De repente se precisamos fazer uma segunda, o pai vai comprar, a mãe vai comprar, o avô já não sei, o tio já não sei… os vizinhos não vão comprar. E essa possibilidade vai ficando reduzida. As pessoas não sabem lidar com isso. Jornalista não sabe vender. Deveria buscar profissionais, apoio de quem está habituado a trabalhar com isso. Sem dar chance para si de ampliar, ele vai para um mercado com um repertório reduzido, aí as chances são pequenas. Diversificar fonte e audiência Sou egresso de redação, mas já tive empresa. Montei startups – uma livraria online e uma editora de e-books. Já havia apanhado um pouco. No meu caso pessoal, busquei a diversificação de fontes. Quando deixei de trabalhar em redação, não quis ser fornecedor de um único cliente. Optei por trabalhar com três, quatro atividades. É complicado administrar essa agenda, porque precisamos ser muito disciplinados (e eu não sou!), mas me valho de ferramentas digitais para controlar a minha vida. Acho que é a receita para todo jornalista: não depender de uma única fonte. Essa fonte pode secar em algum momento, porque não temos um histórico que possa nos garantir que isso vai continuar sendo sempre dessa forma. O digital não te permite isso. Há uma verdade que não existe em outros veículos: não se vende projeção, vende-se realidade. A publicidade no digital é cobrada se é exibida, se as pessoas clicam. É muito difícil imaginar que a todo momento se pode contar com isso. E diversificar fonte também de audiência! Não se pode ficar escravo de determinada rede social – porque de repente o facebook muda um algoritmo de uma página e deixamos de ser exibidos para aquele número de pessoas; não podemos ficar dependentes só de Google, porque basta cometermos um erro para ele nos colocar numa lista negra, não oferecendo mais nosso site para determinada busca. Podemos apostar em um único assunto, mas não podemos apostar numa única fonte, nem de receita, nem de audiência. Essa é uma regra que posso afirmar sem nenhum temor de erro. É uma coisa básica para qualquer empreendimento digital de jornalismo na internet dar certo. Somos todos redes As redes que se conseguem criar ajudam muito o empreendedorismo no jornalismo. Primeiro, ter um assunto, chegar ao público com alguma facilidade, garantir a relevância para isso e ser um interlocutor, uma referência importante. Com isso, é possível ter uma base em torno do conteúdo ou marca. Conseguimos ser um meio ainda para chegar em determinado público na medida em que ganhemos relevância. As redes sociais são determinantes nisso. De seis, sete anos para cá, uma origem que beirava 2% da audiência total passou a até 70, 80% via redes sociais. A formação de comunidades é decisiva para conseguir levar o negócio adiante e poder até criar esses outros modelos de negócios associados. Jornalistas vs. não jornalistas: quem produz melhor conteúdo? O fato de nós, jornalistas, acharmos que temos maior capacidade de produção de conteúdo do que alguém de outras profissões é uma coisa muito nossa. Nós somos preparados, temos técnicas, ferramentas das quais nos apropriamos para fazer um bom trabalho jornalístico, mas essas técnicas podem ser intuitivas também para outros. Profissionais que falam sobre assuntos nos quais têm muita experiência podem se comunicar melhor do que jornalistas, se tiverem um bom texto. Compromisso com a verdade eles vão ter, na medida em que queiram ser referência. Passam, então, a concorrentes fortes. Mas isso não é um movimento de agora. Nós todos somos mídia de alguma forma. Começamos a transmitir coisas, mesmo que não deliberadamente. As empresas, na medida em que abriram seus sites, também se tornaram mídias. De muito tempo, aquilo que considerávamos fonte passou a ser mídia também. Todo mundo tem seus canais próprios. Várias empresas têm suas redações próprias, produzem conteúdo com o apoio de jornalistas. Para se diferenciar, o jornalista precisa usar as técnicas e fazer um trabalho melhor do que os outros. É a única saída. Investir em coisas que profissionais de outras áreas não fariam é obrigação nossa. Chamar a atenção quando alguma coisa que não foi checada está de alguma forma ganhando relevo nas redes sociais, chamar a atenção para o contraditório. Esse trabalho que deveríamos fazer nas nossas próprias redes é superimportante para ganharmos credibilidade e relevância. Eu só vejo o jornalismo enfrentando essa realidade com mais jornalismo, com jornalismo de mais qualidade. Mostrar que esse trabalho feito por um jornalista consegue se distinguir porque ele traz uma série de elementos que não foram pensados por aquele profissional ou por aquela empresa – por mais conhecimento que tenham sobre determinado tema. Palavrinha mágica: colaboração É importante conversar com o público, saber o que o público quer. Temos que sair da nossa postura de que sabemos o que é melhor para o nosso público, sem necessariamente estarmos equipados com todas as possibilidades que se tem hoje. O jornalista precisa se preparar muito. Não pode ficar achando que, para fazer um trabalho jornalístico, pode repetir as coisas que fazia antes. Senão vai ser suplantado por alguém que vai empacotar melhor, por alguém que vai ter um publicitário do lado ou porque vai ler melhor o que o público está querendo (porque tem um profissional de analytics). Isso remete à comparação com agências e áreas de comunicação de empresas, que é um grande diferencial. Lá também tem jornalista, mas ele é parte de um processo de comunicação. E o jornalista [de redação] acha que ele é o processo de produção de conteúdo: ele cria a pauta pensando que sabe exatamente o que o público quer, faz a apuração, faz a produção e distribui no meio que acha ser o mais interessante para o público. Quem tem mais chances de ganhar a atenção do público? O jornalista precisa dialogar com outros profissionais que o ajudem a melhorar o seu trabalho e, principalmente, melhorar a informação que vai levar até o público.