Esta semana abrimos espaço para uma homenagem de Igor Ribeiro ([email protected]) a Rodrigo Manzano, seu amigo, quase-irmão e companheiro de trabalho na redação do Meio & Mensagem, falecido em 20/7. Chapéu: Saudades Eu não conhecia os irmãos verdadeiros do Rodrigo Manzano. Mas não raro era confundido com um deles. Só no fim de semana passado, entre hospital e velório, entre amigos e familiares, pelo menos três pessoas pensaram que eu também fosse “Manzano”. Devo confessar que, dada a minha admiração pelo Rodrigo, isso muito me envaidecia. A gente não era exatamente parecido: sou muitos centímetros mais baixo, alguns quilos mais magro, cinco meses mais novo e muitos fios de cabelo mais careca. Mas havia certa lembrança física e, às vezes, nos divertíamos à custa disso. Na última ocasião, as vítimas foram as moças da revisão do Meio & Mensagem. Tão logo cheguei à Redação, ele me apresentou como irmão mais novo – eu consentia de pronto, já acostumado com a brincadeira. Algumas semanas depois, uma das revisoras foi perguntar ao Manza sobre um texto meu, mas ela havia esquecido do meu nome. Referiu-se como a reportagem “do seu irmão”. Pronto: Manza ficou preocupadíssimo com o rumo da brincadeira e me pediu para ajudar a desmentir. “Imagina, Igor, se isso chega no RH, vou ser demitido por nepotismo!”, disse. Eu ria. Adorava seu lado Televisa. No último sábado (20/7), enquanto Manza ainda lutava contra a infecção que enfraquecia seus órgãos, Ana Ignacio – amiga e repórter da época de revista Imprensa – falou que aquilo tudo era um drama típico, daqueles que nosso chefe adorava fazer. Dei um sorriso e, esperançoso, concordei. Manza foi embalado por uma corrente de amigos e familiares capaz de emocionar o mais cético dos pirronistas. Ele próprio tentou muito, mas não deu. Algo mais forte o chamou para espalhar sua candura e genialidade em outro lugar. Foram essas características que também fizeram dele uma das personalidades mais queridas do twitter brasileiro. Muita gente não sabia que o Senshô (@senshosp) também soltava pérolas com sua entidade “civil”. Como quando me perguntou, por cima da baia, “Como chama mesmo aquela coisa que jogador de futebol faz?”, querendo lembrar de “drible”. Ou quando falou que o bife do bandejão da firma estava tão duro que ele o havia apelidado de “Eike Batista”. Ou quando comentava, com os olhos cintilantes de desejo, sobre o programa da Nigella ou suas aventuras no Chi Fu. Manza era um universo. Ao mesmo tempo, uma criança e um idoso. Tal qual um meninão espontâneo, encenou certa vez uma dança, no meio da redação de Imprensa, que entrou para a história (comemorava a meta de um milhão de visitantes únicos do portal). Por outro lado, ao passar perto de sua casa dia desses perguntei, via SMS, se queria tomar uma cerveja, ao que respondeu: “Sou velho, Igor. Estou de pijamas, fazendo feijão, carne de panela e vendo Viola, Minha Viola”. Seus textos eram repletos dessas pequenas riquezas, sempre espirituosas e coerentes. Como na narrativa A flor do cafezal, que conta os bastidores de um programa de Inezita Barroso, com os casais de velhinhos se espremendo entre as fileiras do auditório da TV Cultura para dançar uma moda caipira, que o remetiam à infância no interior de São Paulo, em Tupã. Ou ainda o perfil que fez de Nina Horta, em que reparava na semelhança da estampa de sua camisa com as porcelanas azuis de seu jogo de chá. Seus relatos, assim como sua vida, eram feitos desses detalhes, dessas delicadezas. A isenção e a justeza de ideias também eram constantes, mesmo em viagem pela China para produzir seu célebre especial para a revista Imprensa, ao lado da fotógrafa Pya Lima. Não era segredo sua paixão pelo país, mas Manza não estava lá só para fazer o tour estatal, como já ficava implícito no título inaugural da série, Cobrir e descobrir. O especial Império do Meio é daquelas coisas que deveria ter ganhado muitos prêmios de jornalismo e ainda vai ser redescoberto (www.imperiodomeio.com.br). Uma experiência em que Rodrigo Manzano descortinou com elegância a muralha ideológica do gigante que toma o Oriente. Mas prêmios nunca foram a prioridade de Manza. Ele os ganhara, e muitos: pelo menos três troféus Sangue Novo, dedicados a estudantes de jornalismo paranaenses, quando ainda cursava Comunicação em Londrina; mais quatro na revista Imprensa – dois como repórter e dois como diretor Editorial (sendo um Anatec e um Marketing Best). Era orgulhoso deles, sim, mas sua missão era outra: adorava ser professor. Tudo o que aprendeu nas redações ensinou na Academia. Deu aula na Fiam, na PUC-Campinas, na ESPM. Nutriu, entre os alunos, o mesmo carinho e admiração que conquistou entre parentes, amigos e colegas. Defendia, com ênfase inclusive, maior aproximação entre redações e salas de aula. Mas que não viessem encher-lhe a paciência com pequenezas como a obrigatoriedade do diploma de jornalismo, ao qual chamava de “pedaço de papel carimbado e assinado”. Era um defensor do estudo, dos bons cursos de Comunicação, mas não da politicagem e das benesses enviesadas que contaminavam as faculdades. Quem lhe enchesse a paciência mandava ver se não tinha “roupa para lavar”, como de costume. Outro de seus contrastes fascinantes era a postura romântica em busca de um jornalismo inteligente e narrativo, porém em harmonia com os meios digitais, tablets, redes sociais. Em uma palestra que ele e eu fizemos na Intercom de Curitiba, em 2009, queríamos conquistar os jovens com nossa ideia de um mundo digital como redenção do jornalismo, com plataformas que substituiriam gradualmente o meio impresso, caro e poluente, e reinventariam a reportagem escrita e audiovisual. Apesar do interesse dos estudantes, o par de professores locais que nos recebeu ficou desconfiado e agarrou-se a pretextos antiquados, que não necessariamente tinham a ver com bom jornalismo. Mas a gente persistia, Quixote e Sancho, brigando contra moinhos de ventos, fosse lá, fosse em São Paulo, fosse em Brasília, em qualquer lugar. E depois nos divertíamos lembrando daquilo. Ele não ligava para elogios e ficava até um pouco tímido ao ouvi-los. Mas o atormentava ser mal interpretado. Não raro se irritava com a maldade anônima que atravessa os comentários de portais. Afinal, Manza era elegante mesmo quando defendia casos ou personagens controversos. Para ele, por exemplo, pouco importava a inflação ou a acomodação da base aliada em ministérios esdrúxulos: Dilma Vana era sempre aguardada para jantar. Se em um de seus diversos blogs expressasse sua admiração pela presidente – ou pela rainha Elizabeth, ou por Mao Tsé-Tung, ou pelo livre consumo de tabaco –, fazia-o com muita parcimônia e delicadeza. Ficava angustiado, portanto, se nesses mesmos espaços lhe respondessem com agressividade e grosseria. Passava a se achar culpado, incompreendido, equivocado, mas nunca injustiçado (ainda que na maioria das vezes o fosse). Pode soar estranho, mas essa angústia do Manza – que tem muito a ver com aquele drama citado pela Ana – era um de seus traços “adoráveis”, para usar outra expressão típica dele. Ou sua predileção por gim, especialmente o Bombay Sapphire. Ou suas havaianas guardadas dentro da gaveta da mesa do escritório. Ou sua preocupação, no bar, em levar alguma janta para o Esper. Ou as histórias da Socorro e dos lacinhos que espalhava pela casa. Ou as manhãs com Chopin, café e cigarro. Manza foi a criatura mais doce que conheci. Era tão gentil que se enrolava até para dar bronca nos funcionários. Sempre lembro do clássico caso em que lhe coubera a missão de demitir uma repórter e ele, cheio de hesitações e justificativas, acabou fazendo a criatura acreditar que estava sendo promovida. Simplesmente adorável. As reuniões de pauta com o Manza eram intermináveis e nada enfadonhas. Enchíamos a sala de lanches e gastávamos saliva. Além de Ana, no auge da Imprensa participavam dos convescotes Karina Padial, Luiz Pacete, Pamela Forti e Laura Cantal (no portal, estavam os valentes Thais Naldoni e Eduardo Neco). A gente fazia questão de sair daquela sala com ideias fantásticas para encher 60 páginas mensais. Podiam não ser as melhores pautas, podiam não ser as preferidas da direita, da esquerda e do Sinval Itacarambi Leão. Mas eram as ideias que, naquela tarde de reunião, consumiam tanto debate e tanta reflexão que seriam, inevitavelmente, convertidas em reportagens realizadas com prazer, empenho, raça, paixão. Isso era muito do Rodrigo Manzano. Não raro, numa das reuniões, procurávamos um nome que sintetizasse determinada ideia, aquela curta palavra que posteriormente reinaria como uma vinheta, ou chapéu, no topo do abre. Alguém citou “Saudades” e, naquela ocasião, ficou tão piegas que todos caíram na risada. Passou a ser uma piada interna, a partir de então, chamar de “Saudades” qualquer pauta para qual faltasse chapéu convincente. Nunca achei que veria esse momento, Manza. Mas o chapéu de todos os amigos que aqui ficaram finalmente virou “Saudades”. Vai ser difícil, impossível mesmo, tirar ele do topo das nossas páginas. Saudades de você, meu irmão.