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domingo, novembro 24, 2024

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Memórias da Redação: O colibri e o sorriso do menino

A história desta semana é mais uma vez colaboração de Plínio Vicente da Silva ([email protected]), ex-Estadão, professor universitário e assessor especial da Prefeitura de Boa Vista. O colibri e o sorriso do menino Acabei de completar recentemente mais um ano desde quando, em abril de 1984, decidi arribar com a família para a terra de Makunaima e aqui fincar raízes, trazendo junto mulher e três filhos, retirantes da cidade grande fugindo da violência urbana. Nesta manhã em que os papagaios se ajuntam bicando os frutos da mangueira do fundo do quintal de casa, ainda bem cedo olhei o céu coberto de nuvens, que assim ele é nesta quadra do inverno amazônico, e recebi no rosto as carícias de uma brisa manhosa, um pouco mais fria que o normal. Ela me dizia em correntes ritmadas, umas mais velozes, outras mais lentas, que a chuva não haveria de tardar; que muito mais dela cairia dia afora e nos meses mais à frente. Então me vieram pensamentos soturnos, que me obrigaram a trocar o sorriso pelo ar de preocupação. A região do extremo norte transforma-se em período alongado num cenário quase sempre cáustico, chão ressequido durante pelo menos sete meses do ano. Todavia, assim como se dá no Nordeste, bastam alguns dias de chuva para que o lavrado daqui, como a caatinga de lá, de vegetação seca, agonizante, quase esturricada por vários meses de um verão escaldante, se cubra com um manto verde que renasce milagrosamente por obra da Natureza. Com o verde e a chuva outras vidas ganham alento. Do jardim me vinha um bom cheiro de jasmins e a laranjeira fez explodir as flores aprisionadas em milhares de botões. O perfume dessas misturas me inebriou. No jardim os canteiros riam pela boca das onze horas; uma carreira de pequenas calêndulas parecia formar um coral e a velocidade das asas ajudava o colibri a permanecer suspenso no ar enquanto colhia de flor em flor o néctar que o sustenta; aqui e ali borboletas doidejavam como pétalas vivas de flores animadas que se desprendiam das hastes. Tomei o último gole da minha xícara de café e ao levantar o olhar para certo lado da vizinhança, dei com o de alguém que me fitava; fiz com a cabeça um cumprimento quase involuntário, e fui deste bem pago, porque recebi outro com os juros de um sorriso; ou porque aquele sorriso era fresco e perfumado como a manhã deste maio ou porque a manhã era alegre e animadora como o sorriso que desabotoou nos lábios do menino que passava, pedalando sua bicicleta a caminho da escola. O certo foi que descobri como Deus tem sido generoso ao me dar tanto mais do que creio merecer. Depois descobri também que se Ele me deu tanto é porque teve um motivo maior, pois nenhuma dádiva divina nos chega às mãos se não fizermos por merecê-la e se não for para dividirmos a graça com aqueles que não a tem. A Amazônia é um extenso cenário de belezas incontáveis, construídas pela natureza generosa. Mas o inverno amazônico não é estação de poesia, embora se cantem loas aos bens que ele traz para aqueles que têm na terra o único meio do seu sustento. Aqui em Roraima, muito mais particularmente em bairros periféricos de Boa Vista, as águas derramadas pelas tempestades são sinônimos de calamidades. Então me vejo pensando nas famílias que, confrontadas com os alagamentos, acabam perdendo tudo. Como jornalista procuro ajudar da maneira que posso a combater a inércia dos governantes, a preguiça que os leva a não acabar de vez com os motivos tão óbvios que geram todo esse sofrimento. Afinal, são tragédias anunciadas que testemunho há quase três décadas, que se repetem reiteradamente, produzindo vítimas que se tornam indefesas se não acudidas pelo socorro do poder público e da própria sociedade. Esses quadros catastróficos mexem com a minha sensibilidade e nestes anos todos jamais ignorei o estado de fatalidade que atinge as famílias carentes, aquelas mais expostas aos alagamentos. Muitas delas moram precariamente em áreas invadidas, onde ergueram um humilde teto em terreno impróprio para habitação. Com a certeza de que estes são males inevitáveis diante da inoperância de quem deveria regrar e disciplinar a ocupação do solo urbano, tenho-me entregado como voluntário a essa batalha que busca minorar o sofrimento dessa gente. Aflige-me, entretanto, a expectativa de que os próximos meses serão de chuvas intensas e não deterei a parcela de poder que gostaria de ter para fazer mais do que faço. Então, resta-me tão somente juntar-me mais uma vez àqueles que, cada um à sua maneira, vão levar socorro e conforto a esses desabrigados. Certamente Deus continuará me abençoando como fez esta manhã, quando juntou nas minhas retinas o colibri voando sobre as plantas do meu jardim e o sorriso do menino inocente que passava na rua a caminho da escola. Que recompensa maior preciso eu para ser feliz?

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