A exemplo de outras datas marcantes para o jornalismo brasileiro, o Dia da Imprensa, comemorado neste 1° de junho, todos os anos merece uma edição especial de Jornalistas&Cia, publicada também no Portal dos Jornalistas. E o conteúdo para essas edições busca sempre algum assunto relevante para a atividade e seus protagonistas, ou seja, nós, jornalistas. Este ano não foi diferente. Há cerca de dois meses, quando pensávamos sobre um tema para esta edição, ocorreu-nos abordar algo que trouxesse algum alento ao nosso combalido mercado de trabalho, ceifado que tem sido por sucessivos cortes. Mas esse algo seria exatamente o quê? Aí nos lembramos de uma Redação que foge ao usual em termos de longevidade e faz um produto de altíssimo nível, elogiado por dez entre dez profissionais da área, que, embora segmentado, tem público fiel em todo o espectro da sociedade: o Globo Rural. Qual o segredo dessa fórmula de sucesso? Segundo Humberto Pereira, que comanda o programa desde a sua criação, há 36 anos, não há segredo: o pessoal gosta muito do que faz e é fundamentalista no fazer jornalístico. Simples assim. Confira a entrevista dele e um pouco do dia a dia do programa: Jornalistas&Cia – Como tem sido a audiência ao longo do tempo? Humberto Pereira – A audiência do Globo Rural tem perfil um pouco diferente dos demais telejornais, porque falamos antes de tudo para o agricultor brasileiro – pequeno, médio, grande –, para o homem que está no campo. Então, é natural que tenhamos no interior relativamente mais audiência de que nas cidades. Mas o programa é muito visto e muito bem visto também nas cidades. Em São Paulo, por exemplo, estamos atualmente com a média de 10 pontos, dependendo do domingo, pois quando tem Fórmula 1 o programa entra mais cedo e a audiência cai um pouco, fica um ponto abaixo. Isso na cidade de São Paulo. Em outros locais é diferente. Na década de 1990, por exemplo, o Globo Rural e o Jornal da Globo foram pesquisados em São Paulo, Curitiba, Londrina e Maringá. Em São Paulo e Curitiba, ambos tínhamos 12 pontos. Quando ia para Londrina, o Jornal da Globo continuava com a audiência dele, de 12, e nós íamos para 19. Em Maringá, que é um pouco mais distante, o Jornal da Globo continuava com 12 e o Globo Rural subia para 36. Naquele tempo já havia essa diferença de perfil. Quanto mais para o interior, a audiência proporcional ao share vai aumentando em relação a outros programas. J&Cia – Ele alcança o Brasil todo? Humberto – O mundo inteiro, porque como é programa de rede, entra na Globo Internacional também. Acho que falar nesse patamar de dois dígitos, de 10 pontos, na cidade de São Paulo é uma coisa extraordinária para um programa segmentado. A comida, a bebida, a roupa, tudo o que vem do campo, por mais universal que isso seja, ainda é um segmento, não é? J&Cia – Segmento forte. O programa é benquisto, não? Humberto – Muito benquisto. Se você pensar em termos de Brasil, nós todos, com poucas exceções, temos um determinado atavismo rural. Meu pai, meu avô, os imigrantes que vieram para cá, os italianos, não vieram de Roma ou de Milão, vieram da zona rural italiana, assim também os japoneses, os portugueses. Por isso o brasileiro tem essa raiz muito determinante no campo. J&Cia – Houve tempo em que o apresentador ficava lendo cartas. Como é isso hoje? Humberto – Mudou muito. Quando o programa começou, chegamos a ter a média de 270 cartas por dia. Houve assunto que gerou correspondência física, de envelope e papel, de 70, 80 mil missivas. Foi o caso de receitas, ou como a muda de acerola que fizemos com a Universidade Federal Rural de Pernambuco. Chegamos a receber carta de ministro da Agricultura, de ex-presidente da República. O Geisel [N. da R.: general Ernesto Geisel] escreveu para nós uma vez pedindo muda para a chácara dele em Teresópolis, carta pessoal. Naquele tempo recebíamos muitas cartas. J&Cia – Essas cartas estão guardadas? Humberto – Deve haver uma montoeira delas por aí nos arquivos, nos almoxarifados da Globo. Mas, à medida que o mundo foi se informatizando, esse volume de cartas diminuiu. Hoje, se recebemos cinco por dia é muito. Passamos a receber e-mails. O próprio site do Globo Rural dá ao telespectador acesso a várias informações dominantes dentro do meio rural. Por exemplo, em criação animal, vaca de leite, tem uma doença chamada mastite que é recorrente, existe desde antes do Globo Rural e vai continuar existindo depois. Então, o telespectador acessa, já tem determinadas alternativas às quais recorrer no sentido de resolver esse tipo de problema. Hoje temos um volume enorme de acessos pelas redes sociais também. O mundo das comunicações mudou. J&Cia – Há alguém aqui na redação que cuide especificamente desses contatos? Humberto – Não fica dentro da redação, fica no universo do G1. Uma pessoa que cuida do site do Globo Rural. Durante a própria exibição do programa é possível monitorar facebook, twiter, os comentários já vão aparecendo. E ainda temos cartas. J&Cia – E e-mails, são muitos, direto para a redação? Humberto – Muitos, muitos. Vão todos para uma central de atendimento ao telespectador e aí selecionamos alguns. J&Cia – Tem muita sugestão de pauta? Humberto – Sim, principalmente para seção de interatividade, que ocupa um bloco inteiro do programa. Ainda chamamos de seção de cartas, mas praticamente só recebemos e-mails. E selecionamos para responder no ar os assuntos mais universais, como a mastite, doenças virais do feijoeiro, o mosaico dourado do feijão, por exemplo. Selecionamos também os que têm mais apelo para televisão, pois não podemos esquecer da natureza do veículo. J&Cia – O que mais marcou o Globo Rural nesses 36 anos? Algum assunto que teve desdobramento muito grande na sociedade, por exemplo… Humberto – Houve alguns assuntos de muita repercussão. Lá no começo, no segundo ou terceiro ano do programa, fizemos uma boiada se deslocando do Pantanal mato-grossense para o Paraná. Quem acompanhou essa boiada foi o repórter Carlos Azevedo, que atuou na revista Realidade. Aliás, eu diria que a Realidade teve um papel muito importante na constituição e no jeito de ser do Globo Rural, até hoje. Paulo Patarra, que foi diretor de Redação da revista Realidade, foi chefe da Redação do Globo Rural. O programa foi lançado na administração do Luiz Fernando Mercadante, que também era da Realidade. José Hamilton Ribeiro, nosso repórter até hoje, foi da Realidade. Então, houve uma influência muito grande daquele tipo de jornalismo inaugural que a Realidade fazia, de criar pautas. Mas estava falando daquela boiada; aquilo foi uma coisa acompanhada com entusiasmo, com uma audiência fantástica. Naquele tempo as audiências eram maiores porque não havia concorrência da internet, do celular. A boiada se deslocava e semanalmente, no domingo, púnhamos o que tinha sido filmado. J&Cia – Quanto tempo durou esse deslocamento? Humberto – Mais de dois meses. Fizemos em 2006 outra epopeia dessas com uma tropa de mulas que trouxemos desde Cruz Alta, no Rio Grande do Sul. Houve uma reportagem anterior mostrando que a Argentina e o Uruguai produziam muares para o Brasil. De Cruz Alta eles vinham a pé até Sorocaba, Itapetininga, no interior de São Paulo. Foram vários repórteres. José Hamilton trabalhou na primeira parte, depois outros foram se revezando. Ao contrário da primeira, em que havia um repórter e só revezavam os repórteres cinematográficos. Houve um dia, por exemplo, que a boiada passou dentro da cidade de Aquidauana, no Mato Grosso do Sul. No trajeto havia um bar, com televisão. Naquele momento, oito e meia da manhã de um domingo, a boiada estava passando na rua e ali na televisão, o episódio que havíamos gravado durante a semana anterior. Houve também um momento muito importante que foi uma campanha pela preservação do Pantanal feita em Campo Grande por um farmacêutico, Ascânio, já falecido. Discutia-se então a construção ou não de uma usina de álcool dentro do Pantanal. Segundo a visão do pessoal lá, a cana seria um fator de destruição do ecossistema e o Ascânio fez uma campanha de assinaturas para a preservação do Pantanal. Nós falamos no programa: “Quem quiser também subscrever esse manifesto pode mandar para a gente”. Foram milhares de cartas do Brasil inteiro, de gente contra a instalação da usina de álcool lá no Pantanal, uma campanha de meio ambiente muito boa. Nós, do Globo Rural, temos a sorte de trabalhar com o brasileiro do interior. E esse brasileiro é a matriz do Brasil geral. O fato de ouvirmos esse homem do campo e de fazermos da pessoa humana dele o principal veículo das mensagens que o próprio campo dá enriquece demais o programa. Temos pontos altos no programa quase que semanalmente. São seres humanos de uma riqueza extraordinária. Ter esse ser humano no primeiro plano remonta à herança dessa geração mais antiga, da década de 1960, da revista Realidade. O próprio José Hamilton é um mestre nisso, de ouvir as pessoas. Essa é a essência da reportagem. J&Cia – Tirar do personagem o que ele tem de bom… Humberto – Falando do jeito dele, com o sotaque dele. J&Cia – Vocês sabem quantas reportagens foram feitas até hoje? São quantos programas? Humberto – Número de reportagens não temos, mas o programa é numerado. O do dia 15 de maio é 1.865. Vamos completar 1.900 lá por fevereiro do ano que vem. Estamos chegando no programa 2.000. Mas houve um período de 15 anos em que tivemos também uma versão diária. O lançamento foi em 2001. Ele ainda persiste dentro do Hora 1, porque foi a equipe do Globo Rural diário que foi fazer o Hora 1. Ficamos com o semanal e com o Globo Natureza. J&Cia – O que explica a longevidade da equipe, fato incomum na imprensa brasileira? Humberto – Ricardo Kotscho também passou por aqui como repórter. De vez em quando a gente almoça. Ele diz que é a redação mais longeva da história do jornalismo brasileiro. Mas tem uma meninada nova aí, embora o núcleo seja bem antigo… J&Cia – Do primeiro programa até hoje quem está? Humberto – Gabriel [Gabriel Romeiro, chefe de Redação] veio um pouquinho depois. Lucas, seis meses depois. José Hamilton, um ano e meio depois. Eu conheço essa turma há mais de 30 anos. Ivaci estava no primeiro número. É um programa bom de fazer, é muito gostoso você trabalhar com o interior do Brasil. Quem está aqui acha melhor do que trabalhar na cidade e embora tenha muita viagem, muito safári, é uma paisagem muito bonita. O brasileiro do interior é muito interessante, o nordestino, o amazonense, o amazônida, essa parte toda dos imigrantes daqui do Sul, matriz do Brasil, Minas, Serra da Mantiqueira. Quando começou, quando fomos estabelecer o Globo Rural, eu disse pro Mercadante: “Cobrir roça é uma coisa que vai ser muito difícil, porque o setor agrário, agrícola, rural, é um setor menor na imagem de qualquer jornalista do mundo inteiro. Se a gente fizer a redação com jornalistas iniciantes, com pessoal que não está dando certo em lugar nenhum…”. E ele mesmo respondeu: “Aí não vai durar seis meses. Tem que colocar gente de primeiríssima qualidade aqui”. Foi aí que vieram o Paulo Patarra, o Lucas Bataglin, que já era professor da ECA, Carlos Azevedo… José Hamilton Ribeiro não tinha mais nada para provar como profissional, já era consagrado, tinha meia dúzia de prêmios Esso, veio por vontade, “eu quero é isso, vou fazer é isso”. Formamos uma equipe de muita qualidade, que só foi melhorando com o tempo, porque a própria televisão foi se aperfeiçoando. Era todo mundo de imprensa escrita e nos abeberamos muito da estética que foi criada pelo Boni. O Boni, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho [N. da R.: dirigiu a programação da TV Globo de 1967 a 1997], teve uma influência muito grande, pegamos a época áurea dele. A Globo tinha praticamente dez anos quando ele estava criando aquela estética de qualidade que marcou a emissora. Em termos de televisão o Globo Rural caiu no melhor lugar do mundo para mostrar aquele momento. Mas o veículo veio evoluindo, saiu do filme, passou para o tape e hoje já está no disco digital, cartão digital, no HD, que é outra coisa que também favorece bem o Globo Rural. Se você tem uma paisagem bonita, com esse recurso de alta definição ela fica mais bonita ainda. Acho que por essas razões a gente acabou gostando e o time foi ficando, ficando, ficando… J&Cia – E quanto ao futuro, como vocês encaram o processo sucessório? Você falou em uma turma jovem, que está chegando… Humberto – Tem uma turma jovem, que está entendendo muito bem o programa, mas tem uma turma intermediária também. Porque não temos só gente de cinco e dez anos, temos gente de 15 no meio desses 36 do programa. Nessa faixa intermediária temos, por exemplo, Vico Iasi, que veio pra cá deve ter uns 20 anos. Vestiu a camisa do Globo Rural, entende como a gente a importância do setor. Ele não está aqui torcendo o nariz por estar fazendo boi. O José Hamilton tem uma história ótima, que conta com mais graça do que eu. Ele era diretor daquele jornal do Quércia, em Campinas, Diário do Povo. Zé era muito conhecido lá, fez muita coisa importante na cidade, fez até livro, do jequitibá rosa. Saiu de lá, veio para o Globo Repórter e depois para o Globo Rural. Um dia ele estava em Campinas e se encontrou com uma senhora que era a torcedora-símbolo da Ponte Preta, que conhecia muito bem ele, vivia lá na Redação para defender as cores da Ponte Preta. Encontra com ele na rua: “Sr. José Hamilton, que desgraça aconteceu com o senhor? O senhor era diretor do jornal do Quércia e agora está fazendo jornal de couve, de cebola, de boi, de vaca! Que desgraça, Sr. José Hamilton!”. Vejam como é o preconceito, eivado assim dentro das pessoas. J&Cia – Mas o Globo Rural contribuiu muito para acabar com esse preconceito, pelo menos no jornalismo… Humberto – Aí é que entra outro fator também. É importante acentuar que o Globo Rural começou quando a agricultura brasileira se transformou nisso que hoje se chama agronegócio. Foi quando esse avião decolou. A Embrapa acabara de ser fundada. Divulgamos muita coisa interessante de pesquisa de altíssimo nível, que é a pesquisa da Embrapa. E chegamos ao ponto de hoje, ter no campo, nos produtos – soja, laranja, café, milho, porco, açúcar, cana de açúcar, etanol – uma exuberância econômica fantástica. Viemos junto com isso e creio que tivemos um papel importante, na medida em que a Globo, principal rede de televisão do País, abre esse espaço para um programa segmentado como o Globo Rural, 15 anos de Globo Rural diário, e agora tem Globo Natureza, que não é propriamente urbano, embora tenha coisa da cidade também. Viemos junto com essa evolução, que passou da virada do milênio, das décadas de 1980 e 90, que virou essa potência que é hoje, o chamado agronegócio brasileiro. O Globo Rural também surfou nessa onda e participou desse processo. J&Cia – O serviço que vocês prestam é fantástico. A gente, que não é do campo, aprende um monte de coisas. Humberto – Internamente, quando o Globo Rural começou, na praça Marechal Deodoro, os nossos colegas do Jornal Nacional, do Jornal Hoje, apelidaram aquela redação de “mandioca news”. Hoje ninguém tem peito de chegar aqui e desprezar a gente. J&Cia – Mas você estava falando do futuro e da turma intermediária… Humberto – Eu, por exemplo, estou com 77 anos. O José Hamilton, com 80. Nós estamos saindo. Então, você pega o Vico, que está numa faixa entre 40 e 50, vestiu a camisa e quis fazer no mundo acadêmico uma tese sobre o Globo Rural. Foi fazer na Sorbonne. Fez mestrado e doutorado na Universidade de Paris. A tese de mestrado dele foi muito bem avaliada, foi considerada a melhor de estudante estrangeiro naquele ano, no departamento dele. Depois fez o doutorado. Ele tem uma visão mais importante do Globo Rural, porque estudou melhor, fez a tese e se aprofundou naquilo em uma universidade exigente, embora haja outras teses de estudantes brasileiros sobre o Globo Rural na Universidade de Milão, nos Estados Unidos. O Vico está ai para dar continuidade. E mesmo pessoas que estavam no Globo Rural diário e hoje estão no Hora 1 são standby nossos. J&Cia – Loucos para voltar… Humberto – Não é isso. Há um entendimento meu com a nossa direção, Mariano Boni e Silvia Faria, de recorrermos a esse pessoal quando precisarmos fazer a sucessão. É como naquela passagem do Riobaldo [N. da R.: personagem de Guimarães Rosa em Grande Sertão, Veredas], ele contando a histór
a: “Estou aqui, mas tem ali fulano e cicrano, está todo mundo em volta aqui, a hora que precisar a gente pega… “. Tem muita gente que já passou no Globo Rural, ficou dez anos aqui, que volta na hora se a gente falar. Há uma sucessão aí. J&Cia – Tranquila, no padrão Globo… Humberto – É claro que as coisas mudam. Eu sempre falo o seguinte: na hora em que entra uma pessoa nova, seja quem for, no Globo Rural, ela modifica o programa, pois todos os jornalistas aqui são autores, é um trabalho de muita autoria. Aquela menina ali, que acabou de levantar (aponta para Cristina Vieira), gaúcha, é uma jovem jornalista, trinta e poucos anos… Ela senta na mesma bancada que o José Hamilton, tem uma osmose que vai passando. Está prontinha para fazer 40 anos de Globo Rural, ouvindo gente. O Cesar, que é da idade dela… Eles descobriram uma coisa que é preciso descobrir, além do que se aprende na faculdade: descobriram que ouvir é a principal tarefa do Jornalismo. Essa é outra questão importante: nós trabalhamos aqui, denodadamente, com os fundamentos do Jornalismo. Somos até fundamentalistas demais nesse ponto, mas achamos que ainda é o melhor jeito de trabalhar. J&Cia – Em termos mundiais, onde há coisas parecidas com o Globo Rural? Humberto – Houve um tempo em que viajei muito para fora do País, para encontros, congressos, seminários para jornalistas de programas rurais em geral, principalmente aqui nas Américas, do Alaska até a Patagônia. Não há nenhum lugar em que eu tenha visto um programa com a expressão e a importância que o Globo Rural tem no espectro geral de cobertura, nem na Rede Globo. Não falo de cobertura local, porque aí há muita coisa boa. Em Guarapuava (PR), a cooperativa tem uma publicação, tem participação na televisão local. A coisa mais parecida que vi foi um programa só para o Estado da Califórnia, feito por um jornalista de etnia indígena, inclusive chamado Bill Evans, o mesmo nome do pianista. Mas era um programa patrocinado pela Federação da Agricultura da Califórnia, que é o principal em produção agropecuária nos Estados Unidos. Em Chicago tem um programa diretamente ligado à agricultura, mas que só faz a cobertura das cotações da Bolsa de Chicago, algo na linha Bloomberg, onde só se veem números: quanto está o trigo, quanto está a cevada, o milho. Dá aquela cotação inclusive com várias emissões durante o pregão da Bolsa de Chicago, mas é outra coisa, não é um programa cultural. J&Cia – Vem muita gente de fora visitar vocês? Humberto – Eventualmente. No ano passado teve uma delegação do Vietnã, já recebemos gente de Moçambique. J&Cia – Pessoal de televisão? Humberto – De programas de televisão… Na Europa há muitos programas também, mas a televisão europeia é inferior à brasileira, por incrível que pareça. Ou são muito setorizados. O pessoal da França gosta muito. Tem lá um organismo parecido com a Embrapa, chamado INRA, que conhece e gosta muito do Globo Rural. Eles têm feito alguns movimentos no sentido de nos encontrarmos com o pessoal de lá, porque acham que nós estamos um pouco à frente deles, na França. Em alguns países é difícil haver um programa como o Globo Rural. Por exemplo, na China e na Índia, porque eles têm inúmeros dialetos, idiomas até, diferentes, não existe uma televisão unificada como a nossa. Nos Estados Unidos são três redes nacionais que dividem também a audiência; uma delas tem um programa. Nos Estados Unidos, a preocupação dos programas de CBS, NBC e ABC é colocar um noticiário country, rural, dentro dos telejornais. O próprio York Times, quando teve uma grande crise no começo dos anos 2000, fez uma lista de providências que precisavam tomar para recuperar a credibilidade e um dos itens era esse: aumentar e melhorar o noticiário rural. J&Cia – Como vocês procuram cuidar do equilíbrio das pautas? Quando entra o milho a soja, quando entra o Sul e o Norte? Humberto – O Globo Rural também faz muitas reportagens fora do Brasil porque a linguagem do agricultor é quase universal. O agricultor no mundo já é globalizado, pela natureza do trabalho dele. Quando a gente põe, como já pusemos, um agricultor chinês criando porco, os porcos deles, o chiqueiro, o que o porco está comendo ou não, o criador de porcos de Santa Catarina entende só de ver, não precisa saber chinês. Uma criação de boi nos Estados Unidos ou uma plantação de beterraba na Bélgica… É uma linguagem universal. Mas vamos à nossa pauta: primeiro, não posso fazer um programa só em São Paulo. Até poderia, pois São Paulo tem tudo: o búfalo da Amazônia, a uva do Rio Grande do Sul, tem boi, café, borracha, a seringueira da Amazônia. Tem tudo, mas não posso fazer só em São Paulo. Preciso fazer a seringueira no Mato Grosso do Sul ou no Amazonas, tenho que fazer o búfalo na Ilha de Marajó, e por aí afora. Preciso ter na minha pauta e no meu espelho, a cada semana, a preocupação regional, além da sazonal. Por exemplo, estamos entrando na época da colheita do café. Não posso fazer agora o plantio do café. Não posso fazer agora o plantio da soja, pois está terminando a colheita de soja. E preciso ter a preocupação de não fazer um programa monocórdio, só de lavoura, esquecendo a pecuária. Se eu fizer um programa que começa com café, passa pra soja, vai pro milho e termina com laranja, estarei fazendo um programa errado. Preciso pôr um porco no meio disso aí, um frango ou uma galinha, um boi, tenho que botar um pouquinho de pecuária também. E, mais importante, o ser humano tem que estar sempre presente em tudo, o ser humano falando mais de que nós mesmos. Um ser humano técnico, pode ser um médico veterinário, um agrônomo, um professor. Porque há muitas escolas de ciências agrárias no Brasil. Essa é outra grande vantagem que temos: em qualquer Estado há sempre instituições de governo ou acadêmicas que cuidam de rural. J&Cia – Todas com as portas abertas? Humberto – Abertíssimas para nós. J&Cia – Como é que vocês conseguem evitar “entrar em canoas furadas” nessas pautas? Ninguém sabe tudo o tempo todo, novas tecnologias… Humberto – Nós não sabemos nada, somos jornalistas, somos metidos. (risos) Mas o que precisamos saber? Temos que saber diferenciar gramínea de leguminosa, um beabá. Como o jornalista de Esporte tem que saber a diferença entre volante e meia armador. Precisa ter um conhecimento mínimo, não é? Tanto que quando chega uma pessoa nova aqui ela vai primeiro passar por cinco ou seis sedes da Embrapa, visitar quatro ou cinco fazendas em locais diferentes, sem fazer reportagem. Só para ficar, como costumo dizer, sujando a bota de bosta de vaca. Para poder começar mais ambientado com a temática. Mesmo assim, o problema maior é mesmo a “canoa furada” de que vocês falaram. Às vezes um agrônomo, lá no interiorzão de não sei onde, não está atualizado, pode falar uma bobagem. Então, desde o primeiro Globo Rural temos a assessoria permanente de um engenheiro agrônomo e de um médico veterinário de alto nível acadêmico. Por exemplo, até o ano passado nosso médico veterinário, Enrico Ortolani, era diretor da Faculdade de Medicina Veterinária da USP, aqui em São Paulo; nosso engenheiro agrônomo, Chukichi Kurozawa, é o terceiro ou quarto de altíssima bagagem acadêmica e de experiência da Unesp de Botucatu. E eles participam toda quarta-feira de uma reunião que a gente chama de vídeo show, em que exibimos o material que vai ao ar no domingo. Só não entra material da atualidade, que é a nossa especialidade como jornalistas: “A Conab anunciou quarta-feira que a safra de grãos vai ter 202 milhões de toneladas”. Isso é problema nosso, nós temos que saber fazer isso. Todas as matérias estão também sempre à disposição na internet. E, por telefone, podemos fazer consultas sobre qualquer dúvida técnica. Mesmo assim, há assuntos que nem eles sabem. Se, por exemplo, entrevistamos alguém especializado em plantação de mirtilo e framboesa na serra de Santa Catarina, o agrônomo não tem obrigação de saber disso. Aí precisamos ter malicia, ver que a plantação dele está dando certo, falar com o agrônomo local e confiar nele. Também entrevistamos professores quando vamos fazer matérias em Lavras, Piracicaba, ou consultamos acadêmicos da Universidade Rural Federal do Rio de Janeiro, das federais de Pernambuco ou do Rio Grande do Sul, e assim por diante. E eles fazem vigilância cerrada. Se cometermos uma heresia numa reportagem técnica, pode estar certo que segunda-feira vem uma enxurrada de reclamações. Mas é raro acontecer. Às vezes há casos de ciúmes entre eles. Fazemos uma reportagem em uma universidade e outra fica com ciúmes. J&Cia – E temas delicados, como agrotóxicos. Como vocês trabalham essas questões? Humberto – Nós trabalhamos de uma maneira jornalística normal. J&Cia – Isso é muito cobrado, tem muita vigilância ou é tranquilo? Humberto – Não, o que fazemos é denunciar. No começo do programa não havia os mesmos cuidados de hoje, por exemplo. A primeira vitima do agrotóxico é o aplicador, ele está todo dia ali. Você vai comprar só semana que vem ou mês que vem um tomate em que já passaram agrotóxico, mas ele está diretamente ligado com o produto. Não havia EPIs, equipamentos de proteção individual, para o aplicador. No começo do Globo Rural, chegamos a mostrar no ar atestados de óbito recorrentes de gente que morria no Paraná por causa de um produto cujo princípio era Triflularina, e médicos denunciando. Chegando atestado de óbito, você tem que denunciar. Hoje mostramos também todos os cuidados que existem para diminuir o uso de agrotóxicos em tudo quanto é cultura. Mas é claro que há um grande lobby internacional para vender cada vez mais quantidade de tudo e o Brasil é um mercado muito grande para isso. Então, tratamos normalmente, com todo o respeito. Ouvimos os dois lados, ou os dez lados, mas é um assunto que tratamos sem militância. Nossa militância não é a do meio ambiente, não é a do WWF, ouvimos esse povo todo. Nossa militância é a do jornalismo. Por isso digo que somos fundamentalistas. O nosso repórter pode até ter uma posição pessoal, mas no exercício do trabalho, aqui dentro, a militância é a do jornalismo. Agora, morreu, a gente denuncia o que matou, foi isso aqui que o matou, foi porque não estava com a proteção, então tem que usar a proteção, ou foi porque não jogou fora os frascos usados, não colocou no lugar certo para descarte. Mostramos isso jornalisticamente. J&Cia – Hoje se fala muito de branded content. Esse negócio de você usar o jornalismo para fazer publicidade. Às vezes acontece isso em algum programa do Globo Rural porque foi sugestão de pauta de uma entidade? Qual é a política de vocês para o branded content? Humberto – Não há nenhuma ação de merchandising dentro do Globo Rural e nenhuma forma de eu colocar dentro de qualquer reportagem a promoção de qualquer produto. Tanto que dizemos, por exemplo: “Você tem uma marca comercial de um carrapaticida? Damos o principio ativo, que é usado por três ou quatro fabricantes. Mas há uma coisa inevitável: estou fazendo a reportagem numa fazenda e passa um trator vermelho lá no fundo. É que nem o repórter aqui da cidade: ele está numa esquina aqui e passa um Volkswagen atrás. Porque, no caso das máquinas agrícolas, os fabricantes são identificados pela cor. Vermelho é Massey-Ferguson, verde é John Deere, amarelo é Valmet e por aí afora. Agora, quando vamos fazer uma reportagem “aumentou a venda de tratores no primeiro semestre desse ano”, filmamos numa concessionária que tem o trator azul da Ford, em outra que tem o trator vermelho da Massey-Ferguson e em outra que tem o verde da John Deere. Pomos no mínimo três marcas. E checamos nas concessionárias se de fato aumentaram as vendas. Isso para não dar a impressão de que estamos falando que aumentou a venda do trator Ford ou do John Deere. Outro exemplo: nós precisamos de carros para trabalhar. Temos duas peruas Toyota e por acaso quem está patrocinando nacionalmente o Globo Rural é a Mitsubishi. Mas quando chegamos a uma agroindústria para falar do preço do frango, que o frango aumentou, citamos apenas uma vez: “Aqui na Frangosul…”. O resto é empresa, empresa, empresa… E se num mês estivemos em uma, no mês seguinte mudamos. Outra coisa: às vezes um fazendeiro tem um produto de marca: “O queijo grano padrano de tal fazenda”. Não posso ir lá e ignorar o nome da fazenda. Mas é uma coisa bem discreta, não estou fazendo propaganda do queijo dele, não filmamos a marca, nada. Mas no dia seguinte recebemos 17 e-mails perguntando: “Onde é a fazenda? Eu quero comprar aquele queijo?” Aí damos o telefone. É uma coisa que gera benefício, é inevitável. Vamos a uma fazenda onde tem um rebanho maravilhoso de reprodutores angus. Os telespectadores ligam para a central de atendimento pedindo o telefone, aí tudo bem. Não somos vendedores. J&Cia – O programa depende muito de recursos para viagens. Como é a briga de vocês por borderô? Humberto – Em primeiro lugar quero dizer que a Globo sabe que é um programa caro, porque depende de viagens. Não temos como fazer o Globo Rural dentro da cidade. Precisamos ir para as fazendas, temos que viajar. Ela sabe que o programa necessita de especialistas. As afiliadas nos ajudam nas atualidades, mas nas grandes reportagens não tem como, precisamos mandar gente com experiência, com malícia no setor. Temos que mandar o José Hamilton, todos os nossos repórteres aqui. Então, ela sabe que é caro. Mas nunca faltaram recursos para fazermos o Globo Rural que queremos fazer. O que está havendo no momento, em vista da crise, é um movimento de economia para o qual foram chamados todos os programas. Isso é geral. Então, na hora de eu fazer minhas opções aqui, tenho escolhido as mais econômicas. Por exemplo, uma equipe nossa que está em Rondônia, com Alberto Gaspar. É a terceira vez que ele passa uma temporada no Globo Rural. Uma viagem para Rondônia é cara. Tem que ir de avião. J&Cia – E ficar pelo menos uma semana. Humberto – Ele vai ficar 15 dias. E não vai fazer só uma reportagem, temos que aproveitar. Já que está lá, vai fazer café, piscicultura, respostas de cartas, vai fazer várias coisas. É o único jeito de otimizar a viagem. E outra: planejo essa viagem com uns 20 dias de antecedência, pois aí compro as passagens de ida e volta por um preço bem menor. Lá tem dois hotéis, um em que o apartamento custa R$ 300 a diária, e outro R$ 250; fica no de 250. Enfim, somos solidários com o esforço de economia, porque o faturamento de toda a mídia baixou, mas sempre ouvindo dos nossos diretores: “A economia não pode comprometer a qualidade do produto”. Temos tido amparo para fazer o que tem que ser feito. J&Cia – E a sua formação? Você foi padre, é isso? Humberto – Fui frade, frade dominicano. Fiz Filosofia, Teologia, como o Gabriel também foi. J&Cia – Fizeram juntos? Humberto – Fomos da mesma turma. J&Cia – Então é um conluio? (risos) Humberto – Depois fiz dois anos de Cinema, na PUC de Belo Horizonte, e voltei para São Paulo para fazer cinema, trabalhar em filme aqui, fiz o roteiro de Cléo e Daniel. J&Cia – Como você veio parar no jornalismo? Humberto – Eu mexia com jornalismo desde os meus tempos de frade, que nem o frei Betto, que também era calouro nosso lá no convento. Eu já colaborava com jornal em Belo Horizonte, O Diário, Estado de Minas, em 1967 e 68. Fazia crítica de cinema. Eu era aluno e em algumas cadeiras era professor da Escola de Cinema. Ainda lá fiz algumas reportagens para a revista Realidade, eu já era ligado ao pessoal da Realidade aqui. Fiquei em São Paulo até 1966 e em 67, 68, fui para lá. Voltei novamente em 1969. J&Cia – Você é de Minas? Humberto – Sou de Belo Horizonte. Quando voltei para cá, de 1969 em diante, trabalhei no Bondinho, com a turma de Sérgio de Souza, Narciso Kalili. Eu fechava lá Espetáculo e Arte, eu era dessa área. Tinha lá critica de livro, de filme, teatro, exposição de arte etc.. Nesse meio tempo acabei indo para uma produtora de cinema do José Pinto, a José Pinto Produções, onde fui diretor de produção. José Pinto, fotógrafo, que é meu compadre até hoje. A propósito, teve uma edição da revista Realidade que foi simbólica, de maio de 1968, o mês daqueles protestos danados, no mundo inteiro, da Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro. Naquele número tinha uma reportagem que fiz ainda como frade, chamada “O pecado está mudando”, e que buscava mostrar que o pecado não era mais sexo, masturbação, nem nada, e sim a injus
iça social, essas calamidades,