Clóvis Rossi orgulha-se de nunca em sua carreira na Folha de S.Paulo (e lá se vão 33 anos) ter pedido aos chefes na redação para tirar uma folga além dos fins de semana e das férias. Toda vez que circulavam as tradicionais escalas de descanso das equipes que haviam trabalhado nos plantões de Ano Novo, Carnaval ou Natal, ele ignorava. Mas depois de cobrir mais uma vez o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, no último mês de janeiro, decidiu pela primeira vez quebrar essa tradição em nome de uma boa causa: passar 15 dias com a esposa passeando pela Itália antes de entrar de cabeça na cobertura das eleições naquele País: “Eu tinha férias para tirar e emendei com a folga de Carnaval. De Davos fui direto para a Itália, onde alugamos um apartamento em Milão”. Depois de visitar Bologna e Verona, o casal decidiu passar o Carnaval em Veneza. A lua de mel fora de época estava indo muito bem, obrigado, até que o celular de Clóvis tocou freneticamente durante uma travessia no tradicional vaporetto, a embarcação que serve de táxi para os venezianos e turistas. O visor do aparelho indicava que era alguém da redação. Deu aquele frio na barriga. “Você pode falar com a Vera (chefe de especiais do jornal) sobre a renúncia do Papa?”, perguntou a voz do outro lado. “Na hora achei que se tratava de um trote. Isso nunca aconteceu em 600 anos na Igreja. Mas era verdade”. Depois de voltar correndo para Milão para pegar as malas e cancelar as reservas da etapa seguinte da viagem, em Florença, Clóvis e a esposa desembarcaram em Roma. “Eu viajo menos do que gostaria e mais do que o orçamento do jornal permite. Desta vez passei quase 50 dias fora, mas tive que encurtar as férias”. Uma vez na terra do Papa, repetiu o mesmo ritual de todas as coberturas que fez ao longo da carreira. Passou em uma banca de jornais e comprou tudo o que viu pela frente. Depois, cercou-se de livros sobre conclaves, perfis de papas e afins. E submergiu naquele mundo: “Sou muito inseguro e sempre me sinto como se fosse a primeira cobertura. Me cerco de toneladas de informação. Faço um arquivo monstruoso, mas acabo não usando nada. Minha obsessão é fazer dossiê. Compro livro, revista, jornal, tudo. Só consigo escrever quando acho que entendi o foco do assunto”. Apesar de ter acompanhado outros conclaves, Clóvis diz que esse é o tipo de cobertura mais difícil de se fazer: “É ruim porque não tem fonte. Eu conhecia dom Geraldo Magela [arcebispo-emérito da Arquidiocese de Salvador, na Bahia]. Fiz uma entrevista com ele por telefone. Eu em Roma e ele ainda em Salvador. Os cardeais do conclave não falam e quando falam dizem só platitudes do tipo: ‘Será feita a vontade do Espírito Santo’”. Nos dias que antecederam a fumaça branca que anunciou Francisco, Clóvis e todos os demais colegas foram reféns das informações do porta-voz do Vaticano e dos pitacos dos vaticanistas. “Esses erram mais do que colunista. Todos erraram. Ninguém acertou. Nem sei se é verdade que o Papa foi segundo com mais votos no conclave anterior. Ninguém viola o sigilo”. De volta ao Brasil, o colunista da Folha retomou a sua rotina. Desde 1987, quando assumiu a coluna na página 2, ele não fica mais redação do 4° andar do prédio do jornal, na rua Barão de Limeira. Subiu para uma salinha no 9° andar mas não dá expediente regular: “Nós últimos anos tenho trabalhado em casa. Parto do principio de que vivo de notícia. E a notícia não está aqui, ela está na rua”. Nos últimos tempos, Clóvis tem viajado menos. Mas isso não o incomoda. ”Nasci em redação e a rotina dentro dela nunca me incomodou. O que me incomoda é o trânsito. É perder uma hora para chegar ao jornal e outra para voltar. São duas horas da vida jogadas fora por dia. Isso quando não chove. É um crime”, diz, emendando uma pergunta em seguida. “O que você faz dentro de um carro além de ouvir rádio? Nada. Essa mudança me desestressou de maneira fantástica”. Como mora a dez quilômetros da Folha, perto do aeroporto de Congonhas, ele concentra sua agenda de compromissos na Folha de S.Paulo sempre no mesmo dia e fora do horário de pico. Esta entrevista aconteceu em uma 3ª.feira ao meio-dia. Com dois de seus três netos crescidos e na faculdade, seu xodó atualmente é a pequena Alice, de quatro anos, que é muito agarrada com o avô. Clóvis conta que gasta o restante de seu tempo basicamente assistindo futebol. E faz uma confissão: “Tenho um projeto que nunca vai se realizar: ser setorista da Champions League. Eu pagaria para ver 99% dos jogos. Se alguém me pagasse o que eu pagaria para ver, não existiria melhor profissão do mundo”. Se um gênio da lâmpada surgisse do nada e realizasse o pedido, as pautas já estariam todas na ponta da língua. “Tem jogador brasileiro em pencas na Europa. São 66 ao todo na Champions. Daria para montar seis times. E mais: como vive, por exemplo, o Wagner Love em Moscou? Deve ser uma pauta fantástica. O cara sai de Bangu e vai parar na Rússia. Como ele se comunica com o treinador? Como organiza pagode? Como aguenta o frio? Que negócios giram em torno disso além do jogo em si? E ainda por cima trabalharia seis meses por ano, que seria outra grande vantagem”, brinca. Apesar de ser oficialmente palmeirense, o colunista se diz hoje um torcedor fanático do Barcelona: “Fiz uma coluna dizendo isso, coluna que rendeu muito xingamento. Disseram que eu tinha traído o Palmeiras e trocado o time pelo Barcelona”. Clóvis não se abalou e seguiu dando preferência ao time catalão. “Assisti a alguns jogos do Palmeiras nessas últimas semanas. Não dá, não dá… Aquilo não é futebol. É muito ruim. Não sou masoquista. Sou de uma época que o Palmeiras disputava o título, sempre. Meu sentimento todo hoje está com o Barcelona”. Falou e disse, sem medo de enfrentar a ira da Mancha Verde, temida torcida uniformizada do time – como, aliás, são todas as demais. Pudera. Ser alvo faz parte da rotina desde sempre. Seja nos tempos da ditadura, de FHC ou na era Lula, ele recebeu bombardeio de todos os lados: “Se eu fosse levar a sério os indigentes mentais dos dois lados (PSDB e PT) já teria desistido da profissão há muito tempo. Os tucanos me rotularam como petista e os petistas como tucano”. Clóvis conta que até na cobertura da renúncia e sucessão do Papa sua caixa de e-mail foi tomada de petardos. “Eu critiquei a omissão (do Papa Francisco) na época da ditadura argentina, o que considero uma coisa imperdoável. Me chamaram de ateu, anticlerical e disseram que não gosto do Papa por ser argentino. Que bobagem! Eu vivi na Argentina, onde fui correspondente. Adoro aquele país e os portenhos”. A propósito, sua atual leitura é justamente Os Argentinos, de Ariel Palacios. Antes, leu Outro Israel, de Uri Avnery. A lista de autores favoritos é extensa e ecumênica, de Shakespeare a Machado de Assis, passando por livros de jornalismo: “Todos ajudaram na minha formação”. Antes de encerrar a entrevista, insisto em saber o que ele seria caso não fosse jornalista. A primeira resposta é diplomata, carreira que só não seguiu porque não tinha idade para prestar o vestibular do Rio Branco e acabou indo mesmo de Jornalismo, na Cásper Líbero. A outra opção era jogador de basquete, esporte que praticava até há pouco tempo com os veteranos da ACM de Pinheiros: “Fui campeão sul-americano jogando pelo Sírio juvenil. Quando estava indo para a equipe principal, arrumei emprego em jornal e tive que escolher”. Escolheu o jornalismo por uma razão banal: o basquete conseguia pagar menos do que a redação. Deu no que deu.