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sexta-feira, novembro 22, 2024

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Especial empresa cidadã: Fake news

Por Sérgio Lüdtke (*)

 

Fake news e o mal-estar da comunicação

 

O termo fake news causa mal-estar na comunicação, pois traz em si uma contradição indigesta para os profissionais da área. Porque, para ser considerada notícia, seu conteúdo deveria ser verdadeiro. Essa, no entanto, parece ser uma luta perdida.

Desde sua posse em janeiro do ano passado, o presidente americano Donald Trump tem usado a expressão para se referir a conteúdos publicados por uma imprensa que lhe é crítica. Trump venceu a guerra por essa narrativa e o que chamávamos antes de boato ou informação falsa em pouco tempo se transformou em fake news.

Gráfico do Google Trends mostrando a curva de crescimento do interesse pelo termo fake news desde a posse de Trump, em 20 de janeiro de 2017

Para fazer valer sua narrativa e ganhar, por sua privilegiada posição, um alcance imediato e instantâneo, Trump usou um grande instrumento: as redes sociais. Nos seus perfis de redes sociais, ele é mídia, mas não deixa de ser fonte. Por isso, a própria imprensa tratou de contribuir para a incômoda fixação do termo.

Suspeitas, surgidas posteriormente, de interferência de fake news nas próprias eleições americanas e na decisão dos britânicos de abandonar a comunidade europeia (Brexit), por exemplo, acenderam alertas pelo mundo. Já nas eleições francesas do ano passado, uma coalizão de veículos coordenada pela First Draft, organização ligada ao Shorenstein Center dos Estados Unidos, criou o projeto de checagem de informações CrossCheck. Os organismos de checagem, os fact-checkers, então ganharam evidência e as plataformas sociais passaram a ser foco de críticas por darem espaço à disseminação de fake news.

Mais recentemente, novos estudos sobre o que é evidentemente um fenômeno foram divulgados.

Um deles, da consultoria Gartner (Gartner Top Strategic Predictions for 2018 and Beyond), aponta o incremento de notícias falsas entre dez tendências para o futuro próximo. Em 2022, segundo a Gartner, a maioria dos indivíduos em economias maduras consumirá mais informações falsas do que informações verdadeiras. O estudo conclui que, com uma quantidade crescente de notícias falsas, as empresas precisam monitorar de perto o que está sendo dito sobre sua marca e o contexto em que ela está sendo falada. As marcas precisarão cultivar padrões de comportamento e valores que reduzam a capacidade dos outros de prejudicar a marca.

Em outro estudo mais recente, The spread of true and false news online, três pesquisadores do MIT descobriram que as notícias falsas espalham-se mais rapidamente nas redes sociais do que as notícias verdadeiras. As fake news são 70% mais propensas a serem retuitadas do que as verdadeiras e têm um alcance mais profundo, vão cerca de seis vezes mais além, num caminho que os pesquisadores chamam de “cascatas de rumores”. Cada retuíte constitui uma nova etapa dessa cascata e as notícias falsas atingem uma profundidade de cascata dez a 20 vezes mais rápido do que fatos.

Essas diferentes trajetórias mostram que deveríamos estar mais preocupados com a atratividade das narrativas. A mentira parece ser mais sexy do que a verdade. No Washington Post, Megan McArdle questiona como a mídia poderia competir com as informações falsas. A realidade, diz ela, é muito chata, muito confusa e raramente há um único vilão maléfico ou evidência que inequivocamente aponte em uma única direção. Jornalistas parecem ansiosos por essa história perfeita, enquanto escritores acabam nas listas de best-sellers precisamente porque podem criar narrativas cinematográficas que o resto de nós deseja, mas não consegue. A diferença entre mídia social e “mídia”, conclui McArdle, é que o modelo gatekeeper se importa mais com a verdade do que com a narrativa.

Outra conclusão do estudo do MIT é que os processos automatizados, ou bots, não são os principais responsáveis ​​pela disseminação da falsidade. Os pesquisadores descobriram que são os humanos.

Essa descoberta ajuda a definir as prioridades no combate às fake news. A educação midiática surge como um caminho amplo e inadiável para formação das pessoas, tanto na escola como fora dela; entender a mente por trás de quem dissemina notícias falsas é necessário; melhorar as narrativas para concorrer com as notícias falsas pela atenção dos públicos é inevitável; e aumentar os sistemas de controle, reforçar as verificações, valorizar o papel do jornalista e monitorar as conversações nas redes sociais é urgente.

No âmbito das empresas, a transparência, a clareza de propósitos, o zelo pela reputação, o engajamento dos colaboradores são temas que emergem como obrigatórios.

Essas são algumas conclusões do conjunto de entrevistas que publicamos nesta segunda reportagem da série especial Empresas Cidadãs.

Num ambiente em que todos são ao mesmo tempo mídia e público e no qual prospera a desinformação, uma velha regra jornalística, que embute uma aparente contradição, mas sobretudo um dilema, torna-se mais atual do que nunca: devemos duvidar sempre e acreditar sempre. Um motivo para acreditar nos é dado também pelo Google Trends. O mapa de interesse dos brasileiros está pintado com as cores da verdade.

Comparativo do interesse pelos três termos extraído do Google Trends

 

* Veja também: Especial empresa cidadã: Diversidade e inclusão social

Como o fenômeno das fake news afeta o ambiente de negócios

 

As empresas estão habituadas a lidar com boatos e informações falsas que podem causar danos à reputação e à imagem de suas marcas e produtos. Mas isso ganhou outra dimensão. O que é diferente agora, diz Leandro Modé, superintendente de Comunicação Corporativa do Itaú Unibanco, é a capacidade de reverberação das informações falsas: “Novas tecnologias aceleram a disseminação para um público enorme em um período de tempo muito curto. As notícias falsas podem afetar qualquer negócio, não apenas o sistema financeiro, que é potencialmente delicado, mas também reputações pessoais, além de empresas ou de autoridades.”

Jorge Görgen: “Media training da CNH orienta executivos a identificarem e não levarem adiante informações suspeitas”

A vulnerabilidade é uma preocupação de empresas como a CNH Industrial, que tem ações negociadas em bolsas de valores e segue regras rígidas de compliance. Embora opere num segmento não tão competitivo e, teoricamente, menos suscetível a ataques baseados em informações falsas – fabricação de equipamentos de construção, agrícolas , veículos comerciais, equipamentos marítimos e motores –, o gerente de Relações com a Imprensa para a América Latina Jorge Görgen conta que a comunicação da empresa está atenta aos riscos e se cerca de muitos instrumentos de controle. A divulgação de informações, apresentações em palestras, participação em feiras e qualquer manifestação pública passam por um código de conduta. No media training, por exemplo, a CNH já vem incluindo temas como fake news e mídias sociais. É importante, diz Görgen, “que nossos executivos tenham formação para saber identificar e não levar adiante informações suspeitas”.

Para o sócio-diretor da FSB Comunicação Flávio Castro, todas as empresas devem dar atenção às fake news, não apenas as que operam atendendo consumidores. Ele entende que informações falsas são um fenômeno muito complexo para as organizações, pois elas aparecem muito rápida e inesperadamente e com uma grande capacidade de viralização, fenômeno com capacidade de multiplicação muito maior por causa das redes. Hoje, alerta Castro, qualquer marca, empresa ou órgão público precisa permanentemente monitorar a sua reputação e avaliar, quando é o caso de agir.

 

As vacinas para evitar os efeitos da desinformação

 

O primeiro passo para evitar ou mitigar os efeitos de uma informação falsa que surja na rede é o monitoramento. A FSB, conta Flávio Castro, usa tecnologia para monitorar e inteligência para o que é relevante e que tenha potencial de repercussão. Ele diz que as ferramentas tecnológicas permitem varrer a rede, mas que na sua organização o olho do analista faz os filtros e depois avalia com o pessoal de atendimento o que representa risco para a marca.

Para Flávio, o monitoramento é fundamental mesmo para empresas com pouca ação nas redes. Uma reação rápida ajuda a conter um boato no início. Mas ele vê outros dois fatores que, combinados com a monitoração, podem produzir vacinas eficientes para controlar as fake news. Primeiro, a organização deve investir na criação e na construção de reputação. Quem cuida da reputação não está blindado, mas protegido, ele diz. Não importa o ramo, toda empresa precisa hoje investir na sua reputação. O outro fator, completa, é a presença nas redes. Perfis atuantes e um site com conteúdo relevante são peças importantes para garantir uma boa capacidade de multiplicação da comunicação nas redes.

Rogério Artoni: “Para combater a proliferação de informações falsas é preciso antes conhecer as suas origens”

Monitoramento de toda a informação que circula nas redes sobre a empresa é um passo sem volta, acredita Rogério Artoni, diretor executivo da Race Comunicação. Caso alguma informação falsa sobre temas relacionados à organização apareça, a empresa precisa saber. Ele sugere, como antídoto, combater de forma aberta os boatos ou mentiras sobre a companhia ou a sua área de atuação aproveitando a oportunidade para gerar conteúdo confiável.

Artoni diz que para combater a proliferação de informações falsas é preciso antes conhecer as suas origens. Ele fala em três fontes principais. A primeira são sites remunerados por volume de acessos, que se transformam em faturamento pela exibição de anúncios. Para esses sites importa menos a qualidade ou a veracidade dos conteúdos do que a capacidade de atração de cliques. A segunda é a intenção de gerar algum prejuízo, seja ele político ou econômico, ou causar algum tipo de dano a alguém ou a alguma organização. A terceira fonte é a que usa fake news para fisgar dados pessoais de quem interage com elas.

O resultado disso tudo, conclui Artoni, é que, se há muito conteúdo que pode denegrir a imagem das empresas estas vão precisar, cada vez mais, de comunicação efetiva e de qualidade. Trabalhar o lado oposto das fake news, ou seja, a informação verdadeira não será opção, mas uma necessidade ainda mais constante. E isso, para ele, pode ser positivo para o mercado de agências que souberem trabalhar o tema.

 

O papel da comunicação

 

Flávio Castro: “A definição da estratégia de reação tem papel fundamental no processo de combate às informações falsas”

Quando as vacinas não conseguem evitar o surgimento de informações falsas, a reação deve ser imediata e precisa. Flávio Castro crê que a definição da estratégia de reação tem papel fundamental no processo de combate às informações falsas. Uma experiência com comunicação e em como lidar com repercussões negativas ajuda muito na orientação aos clientes. Para ele, a ação do cliente pode ser gasolina na fogueira. Uma gestão de crise precisa colocar água e não gasolina nessa fogueira. A ação Inicial deve evitar o estopim, deve avaliar a relevância e identificar a melhor linha de ação.

Rogério Artoni concorda. Para ele, uma comunicação errônea ou com intuito de ser mentirosa só se combate com comunicação verdadeira e com muita informação. Assim sendo, as agências de comunicação são essenciais para o combate às fake news. Elas podem propor soluções simples ou mais complexas, mas a atuação delas será essencial nesse cenário. Artoni diz que a própria imprensa deveria se posicionar melhor e de forma mais incisiva sobre o assunto: “Não há uma campanha integrada entre todos os veículos de massa para tratar do tema, mas já deveria haver.”

Muitas vezes, os próprios jornalistas caem na armadilha criada pelas notícias falsas. Leandro Modé conta que recentemente um setor da empresa compartilhou com ele a carta enviada por um jornalista que manifestava seu desejo de fechar sua conta no banco depois de ler uma notícia que relacionava a instituição a um movimento político. Leandro escreveu ao jornalista informando que ele havia sido vítima de uma notícia falsa. O jornalista respondeu lamentando ter acreditado na informação falsa e que manteria sua conta no Itaú.

Essas oportunidades de conversas também são monitoradas pela Petrobras. A escuta dinâmica, diz o gerente executivo de Comunicação e Marcas Bruno Guimarães Motta, permite a produção de conteúdos como repertório para esclarecer dúvidas das pessoas e refutar notícias falsas, quando elas são recorrentes.

Uma ação que exemplifica essa política de comunicação da Petrobras foi a criação em 2015 do site ‘Daqui pra frente’. Ele surgiu a partir do acompanhamento das redes sociais e da percepção de que a companhia recebia muitas dúvidas a respeito da Operação Lava Jato. O canal se propunha a comunicar de forma clara, usando vídeos e textos curtos, o que vinha sendo feito para combater a corrupção. No site, as dúvidas eram respondidas por executivos da empresa, elucidando questões como, por exemplo, o que a Petrobras estava fazendo para melhorar a gestão ou como a empresa colaborava com as investigações.

 

Fake news e o interesse do público

 

O interesse por entender melhor o tema da desinformação é crescente entre profissionais de comunicação, mas também entre cidadãos e profissionais de outros setores da sociedade. Tanto que a SG Comunicação, uma jovem assessoria de São Paulo, vem transformando esse interesse em um modelo de negócio. Desde agosto de 2017, as sócias Suzy Gasparini e Rosa Symanski já apresentaram a cerca de 200 profissionais o universo das notícias falsas.

O interesse vem crescendo com a chegada das eleições. Rosa conta que boa parte dos profissionais que atuam na comunicação de políticos e candidatos não é formada em jornalismo e, portanto, não está familiarizada com as técnicas de verificação. Também por isso, além das noções de como lidar com fake news e gestão de crises causadas pela disseminação de notícias falsas, elas tentam incutir nas plateias de suas apresentações a necessidade de se tratar a informação com muita responsabilidade.

 

Fake news: desafios das organizações

 

Entre fevereiro e abril deste ano, a Aberje conduziu uma pesquisa com 52 organizações que atuam no Brasil para conhecer a dimensão do problema e os mecanismos que podem contribuir para mitigar a propagação das fake news.

Hamilton dos Santos

Dois motivos principais levaram a entidade a realizar a pesquisa, segundo o diretor-geral Hamilton dos Santos. O primeiro é o zelo com a reputação. A Aberje, diz Hamilton, teve a preocupação de entender e apurar como as empresas estavam se preparando para lidar com algo que tanto ameaça esse grande ativo que é a reputação. Nesse aspecto, a pesquisa confirmou a percepção da Aberje. Dos participantes, 91% acreditam que o principal impacto provocado pelas fake news são danos à reputação de suas marcas e 77% entendem que as informações falsas têm capacidade de produzir danos à imagem das companhias. Mesmo assim, a maioria (67%) das organizações participantes não tem fake news como um de seus temas estratégicos.

O segundo motivo foi apurar como as organizações estão lidando com a imprensa, uma relação que é muito impactada pelas fake news. Santos vê grande importância em mostrar aos diversos públicos como a verificação é feita pelos profissionais de imprensa. E, portanto, exibir mais os bastidores da notícia seria muito educativo. Ele diz que “saber como uma notícia verdadeira é construída é muito útil porque ajuda a ensinar a distinguir uma notícia falsa de uma verdadeira.”

Para Hamilton dos Santos, há duas conclusões muito importantes na pesquisa. Primeiro, que as empresas reconhecem que fake news são de fato um assunto estratégico e que pode afetar as organizações a qualquer momento, mas, no entanto, elas não se preparam de forma estruturada para enfrentar a questão. Somente 24% das organizações ouvidas têm uma área para lidar com monitoramento de fake news. É importante, acredita o diretor da Aberje, que ao menos alguém na equipe de comunicação tenha a atribuição de monitorar internamente ou com ajuda de terceiros a profusão de informações falsas relacionadas à organização.

A segunda conclusão é que as empresas ainda não fazem uma relação direta do impacto das fake news no seu desempenho econômico. O diretor da Aberje acredita que alguns setores, como alimentação e farmacêutico, por exemplo, são mais vulneráveis à disseminação de boatos e notícias falsas e deveriam estar preparados para essa situação.

A Aberje entende que o combate às fake news é prioritariamente uma atribuição das áreas de comunicação. É essa área que tradicionalmente costuma lidar com a emissão e a recepção de mensagens relacionadas à organização, com a disseminação das informações dentro da empresa e para os seus diversos públicos. E como uma falsa informação pode chegar por todos os poros da organização – alguns desses poros são os celulares que estão nas mãos dos funcionários –, cabe à área de comunicação inclusive o esclarecimento dos funcionários para buscar o seu engajamento e prepará-los para também lidar com a questão. Isso envolve o cuidado com mensagens de consumo interno que ultrapassam o ambiente da empresa e que, mesmo verdadeiras na sua origem, uma vez descontextualizadas podem originar desinformação.

 

Patrícia Blanco: “Educação midiática é o que pode fazer diferença”

 

Patrícia Blanco

Existem hoje na Câmara Federal 16 projetos que tratam diretamente do tema das notícias falsas, criados com a justificativa de criminalizar quem produz e dissemina desinformação. O Instituto Palavra Aberta promove debates e monitora a tramitação desses projetos tentando lançar luz sobre o impacto que uma regulação possa ter na liberdade de expressão. Patrícia Blanco, que preside o instituto, é categórica: “Não há necessidade de uma lei específica”. Ela diz que a sociedade tem meios de combater a disseminação da desinformação e que o mais efetivo deles será a educação midiática.

Jornalistas&Cia – Por que você é contrária a uma lei específica que puna as fake news?
Patrícia Blanco – O grande problema dos projetos de lei é que eles abrem uma absurda possibilidade de censura. São muito subjetivos. Os problemas começam já no uso da nomenclatura “notícias falsas” e prosseguem quando os projetos tentam definir o que é uma notícia falsa. Um deles, por exemplo, define notícia falsa como uma informação produzida para ludibriar. O que abre espaço para que alguém que tenha um entendimento de que determinada notícia o ludibriou possa tentar enquadrar na lei essa notícia. O risco é que uma legislação dê margem a diversas interpretações, que considere aspectos de opinião, de pontos de vista ou que abra espaço para o autoritarismo. Afinal, quem vai determinar o que é falso e o que é verdadeiro?

J&Cia – Mas não é necessário regular esse ambiente?
Patrícia – O próprio Marco Civil da Internet já prevê punições e há um aparato legal para todos os crimes de difamação e calúnia. No caso da internet, com uma ordem judicial, já é possível retirar algum conteúdo que seja calunioso ou difamatório. O Marco Legal já está posto. O que é necessário é que os juízes conheçam como funciona o processo, entendam que uma tomada de decisão tem que ser rápida e que a internet tem uma dinâmica diferente da do mundo real.

J&Cia – O que motivou o surgimento de tantos projetos no Parlamento?
Patrícia – Primeiro, há realmente uma preocupação. Quando você vê toda a divulgação que foi feita em relação ao impacto das notícias falsas no resultado da eleição americana, isso chama a atenção. É evidente que temos um problema e precisamos enfrentá-lo. Mas o legislador brasileiro acredita que deve combater tudo com uma nova lei. O segundo é o medo de o próprio legislador ser atingido por uma notícia falsa e ter a sua eleição impactada por causa disso. O deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) diz que precisamos falar sobre o assunto e a forma de chamar a atenção para o assunto é apresentando um projeto de lei e, a partir daí, fazer uma discussão aberta, democrática e plural, convocando todos os segmentos da sociedade para discutir.

J&Cia – Qual é o melhor projeto dos 16?
Patrícia – Não há um melhor projeto; no nosso ponto de vista, o melhor é não ter. Ele sempre vai chegar atrasado, não terá a eficácia desejada, o aparato legal já é suficiente. Talvez o principal motivo para não se ter uma lei específica seja uma questão jurisdicional. Não adianta fazer um projeto de lei fantástico que criminalize, crie regras que sejam feitas para diminuir a ação das notícias falsas, se você tem uma questão de fronteira. A legislação brasileira não serve para outro país.

J&Cia – Então, como combater as fake news?
Patrícia – Para nós, a premissa básica é a manutenção da liberdade. Dito isso, vejo quatro frentes de combate:

  • A questão da legislação existente, usar a estrutura legal que já temos disponível;
  • A checagem e a verificação de todo conteúdo. Para isso, as agências de fact-checking são fundamentais. As coalizões de veículos e o uso de expertises desenvolvidas em outros momentos, como nas eleições francesas (ela se refere ao projeto CrossCheck), são fundamentais. Devemos tentar combater o boato no seu início. E é preciso contar com a inteligência artificial, com o apoio das plataformas. Twitter, Facebook e Google têm ferramentas que podem ajudar a identificar notícias falsas já no surgimento;
  • O jornalismo profissional. Melhorar o jornalismo profissional e fazer com que os cidadãos aprendam a diferenciar o que é feito por um cidadão comum e o que é feito de forma profissional por um jornalista. Com isso, você dá um pouco mais de luz para essa questão. Vai fazer com que o jornalismo profissional se sobressaia em relação a esse mar de desinformação que circula nas redes;
  • O quarto ponto é o que realmente vai fazer diferença: a educação midiática. Nos últimos anos houve uma mudança completa na forma como se consomem bens e serviços e a informação está incluída nisso. A comunicação agora é multidirecional. Essa mudança na forma de consumir informação jogou todo mundo em um ambiente, em um mar de desinformação em que você é afetado por todos os lados. Agora você tem notícias e todo tipo de conteúdo, seja patrocinado, publicado por influenciadores, de ativistas, tudo junto ao mesmo tempo na palma da mão. Como diferenciar esses conteúdos? Como desenvolver a análise crítica? Como trazer de volta o que antigamente se chamava de “desenvolver o hábito de leitura crítica da mídia”? Esse mote principal não mudou. O que é necessário agora é dar ferramentas para que as crianças e os adolescentes saibam interpretar o conteúdo da mídia onde quer que ela esteja e em que plataforma ela esteja. É a educação midiática.

J&Cia – E qual é o lugar dessa educação midiática?
Patrícia – O lugar dessa educação midiática é o Ensino Fundamental. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) abriu a possibilidade de você incluir competências diferentes e, com isso, desenvolver habilidades de comunicação de forma transversal, ou seja, em todas as matérias. A leitura crítica da mídia ajuda inclusive na alfabetização e na interpretação de texto. Você começa, então, a dar ferramentas para a criança para que ela desenvolva a análise crítica de uma informação e consiga interpretar melhor o ambiente. A ideia é que essa criança, ao ser impactada pela educação midiática e informacional, possa desenvolver habilidades para saber diferenciar conteúdos e ser um cidadão mais ativo. Isso impacta em cidadania, no desenvolvimento de cidadãos mais participativos. O grande desafio é a formação de professores. Precisamos começar a treinar professores para formar essas competências.

 

Empresas devem ser transparentes e velozes

 

Cristina Tardáguila

Cristina Tardáguila, diretora da Agência Lupa, fala sobre o trabalho de verificação das organizações de fact-checking e diz que as empresas e as instituições devem estar permanentemente atentas à proliferação de notícias falsas que possam atentar contra sua reputação, marcas e produtos e que devem ser transparente e velozes.

Jornalistas&Cia – Como você define fake news?
Cristina Tardáguila Nós não gostamos de usar a expressão fake news. Primeiro, porque nos parece um paradoxo. Se é fake, não pode ser news; segundo, porque é uma expressão que vem sendo usada por políticos para atacar uma imprensa que lhes é crítica; e, terceiro, porque entendemos que a expressão fake news não abarca todos os formatos, os modos de iludir e a falta de contexto que se vê por aí. Não podemos pensar que o problema está só nas informações em formato de texto.

J&Cia – Qual a abordagem da Agência Lupa para este tema?
Cristina – A Lupa funciona como uma agência de notícias desde 2015. É a primeira do Brasil a se dedicar exclusivamente à produção de artigos checados e à revenda desse material para outros meios de comunicação. Nós temos um braço de fact-checking, o mais forte, que é a checagem do que estão dizendo as fontes oficiais. E temos também um braço de observação de notícias duvidosas vindas de fontes não oficiais, muitas vezes sequer conhecidas. Nós monitoramos diariamente o que está sendo muito compartilhado nas redes sociais usando ferramentas como CrowdTangle e Buzzsumo, às quais nós temos acesso graças ao Facebook e à International Fact-Checking Network, rede de checadores que audita a Lupa anualmente.

Quando alguma coisa nos chama a atenção, nós nos dedicamos a uma apuração. Temos feito muitas verificações de fotografias e de legendas de fotos fora de contexto. Essa tem sido nossa principal abordagem. A Agência Lupa foi contratada pelo Facebook para participar do projeto de verificação de notícias deles. Assim como já acontece nos Estados Unidos, na França, na Índia, nas Filipinas, no México, na Colômbia, na Argentina e na Itália, nós agora temos acesso a uma plataforma especial em que o Facebook reúne notícias duvidosas que circulam na rede. São posts denunciados pelos usuários ou considerados pelo Facebook como duvidosos.

Para denunciar um conteúdo que pode ser falso, basta os usuários da plataforma clicarem nas reticências que aparecem no canto superior direito do post e depois em “notícia falsa”. Esse material aparece para os checadores verificados da IFCN que foram contratados para fazer essa verificação e nós aplicamos nossa metodologia de sempre para avaliar o conteúdo. Ou seja, efetivamente fazemos uma checagem, publicamos no nosso site e entregamos esse material ao Facebook.

J&Cia Fake news se transformaram no principal tema do jornalismo neste ano, mas no que elas se diferenciam dos antigos rumores e boatos?
Cristina – Notícia falsa virou o tema deste ano por uma mistura de medo que se repita no Brasil o que foi visto nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Colômbia. Isso, misturado a uma polarização política intensa no País. O Brasil tem um dos maiores contingentes de usuários de Facebook no mundo, uma enorme participação no WhatsApp – diariamente são 120 milhões de usuários ativos – e facilidade de produção de conteúdos. Qualquer um pode produzir um texto, uma imagem que se pareça com notícia e colocar isso na rede, angariando cliques. Isso não acontecia antes. Havia rumores e boatos, é claro. Mas dava mais trabalho produzir e distribuir os conteúdos do que hoje em dia. Os caminhos são mais curtos entre emissor e receptor.

Antes, o jornalismo fazia o filtro daquilo que era dito pelos poderosos e depois recebido pela população. Hoje, isso não existe mais. Acho que essas são as grandes diferenças entre o que existe hoje e os rumores e boatos do passado. Também temos uma lei eleitoral que permite impulsionamento de conteúdo nas plataformas, o que indica que as campanhas investirão pesado nas redes sociais

J&Cia – Que riscos correm as empresas com a ascendência das fake news e o que elas podem fazer a respeito?
Cristina – Todas as empresas e todas as instituições correm o risco óbvio e evidente de serem atacadas, de serem alvo de notícias falsas. O que elas podem fazer a respeito? Primeiro, levar isso a sério e entender que as notícias falsas podem ter impacto na venda de um produto, no posicionamento de uma marca, na sua credibilidade e assim por diante. E, no momento em que se leva a sério, efetivamente criar um monitoramento de redes frequente, saber o que está sendo dito sobre a empresa e ter já uma vacina pronta.

Conseguir pensar em quais são os pontos frágeis da marca, do produto, e ter esse material na manga. Transparência é vital. Além disso, acho que é bem importante que CEOs e a alta cúpula das empresas façam treinamentos para enfrentar esse tipo de informação. Eu entendo que empresas e instituições têm em seus quadros o pessoal de PR, o pessoal de comunicação, que consegue enxergar com facilidade o problema, mas isso não chega necessariamente à alta cúpula. É importante que as empresas pensem em mobilizar os gestores mais altos da hierarquia para situações como essa, que façam uma espécie de media trainning, entendam sobre comunicação não violenta e estejam preparados. E nisso a Lupa deve investir no próximo ano.

J&Cia – Em que momento as empresas passam a necessitar de ajuda externa especializada para tratar desse tema? Dá para prevenir ou conter boatos somente em situações de crise?
Cristina – Acho que todas as empresas precisam ter um gabinete contra notícia falsa o tempo todo, ou seja, ter ferramentas capazes de monitorar assuntos relevantes para a empresa, constituir buscas nas redes sociais com nome de produtos, da empresa, dos principais porta-vozes, dos garotos-propaganda para ver como está sendo a reação a todos eles nas redes, se são positivas, negativas ou neutras. Esse é o momento prévio, saber o que está sendo falado sobre você nas redes. Isso muitas empresas já fazem, sobretudo as grandes. As médias e pequenas fazem pouco ou não fazem. Essa é uma prática que precisa se alastrar.

Com relação à prevenção, tenho certeza absoluta de que as empresas precisam cada dia ser mais transparentes quanto a seus produtos e marcas. A mentira não se sustenta mais nas redes sociais. Se aparecer em uma foto um rato em uma garrafa de refrigerante é praticamente impossível que isso não viralize. As pessoas têm acesso às redes. As empresas e instituições devem estar preparadas para ser transparentes e velozes.

Com relação ao momento de crise, acho que tanto a alta gestão quantos os profissionais de comunicação na empresa precisam ter conexão com sistemas de checagem para fazer frente a um eventual problema. Esses são problemas em que as agências de checagem podem ajudar e é um serviço que a Lupa pretende oferecer em breve.

J&Cia – Qual é o melhor remédio para combater as fake news? A sociedade consegue criar vacinas?
Cristina – O melhor remédio e talvez o único é a educação. Enquanto as pessoas não entenderem que não podem compartilhar conteúdos sobre cuja veracidade não têm certeza, enquanto não entenderem que esse tipo de ação pode causar muito dano e levar inclusive à morte, enquanto não houver uma campanha nos moldes da que foi feita com a reforma da Previdência, por exemplo, ensinando maneiras de identificar as informações falsas, enquanto isso não estiver na ponta da língua as notícias falsas vão continuar rolando por aí.

A Lupa vem fazendo isso em parceria com o Canal Futura para treinamento mínimo de professores e jovens eleitores para que eles saibam identificar informações truncadas. Em agosto vamos fazer um treinamento em duas escolas no Rio de Janeiro, uma pública e outra particular, e ensinar umas técnicas de checagem básica. Nossa proposta é ampliar isso para muito mais escolas e que se transforme em políticas públicas de educação e de comunicação. Se somarmos todos os checadores profissionais da IFCN no Brasil hoje não chegamos a 50 pessoas. O cidadão brasileiro não pode esperar que apenas esse time trabalhe contra a notícia falsa. O engajamento deve ser de todos. E há técnicas relativamente simples para colocar em prática todos os dias. A primeira é: na dúvida, não compartilhe.

 

Albert Moukheiber: “A maioria das pessoas que compartilham fake news acha que são notícias verdadeiras”

 

Albert Moukheiber

Albert Moukheiber é doutor em neurociências e psicólogo clínico do Departamento de Psiquiatria do Hospital Henri Mondor em Créteil, na França. Ele tem estudado o que está nas mentes das pessoas que compartilham notícias falsas e participa do grupo Chiasma, que organiza conferências e debates sobre temas associados à neurociência. Moukheiber diz nesta entrevista a J&Cia que não é a ignorância, mas a ilusão da verdade que faz com que grande parte das pessoas alimente as redes compartilhando notícias falsas.

Jornalistas&Cia – Até que ponto a ignorância e a falta de conhecimento estão relacionados à disseminação de notícias falsas?
Albert Moukheiber – A disseminação de notícias falsas não está explicitamente ligada a ignorância ou falta de conhecimento, mesmo que esses elementos desempenhem um papel. Uma das principais razões é antes a ilusão do conhecimento: acreditar que sabe. Quando somos “ignorantes”, tendemos a ter uma posição para querer “aprender” e, portanto, nossa flexibilidade mental é mantida e concordamos em “reavaliar” nosso conhecimento e duvidar do que lemos, especialmente se é seguido por uma “checagem de fatos”.

Mas quando estamos na ilusão de conhecimento pensamos que estamos bem-informados sobre um assunto e, por isso, a informação que confirma esse conhecimento prévio não estará sujeita a “vigilância intelectual”; acreditaremos nela sem nos perguntarmos se é uma notícia falsa ou real. É, portanto, essa superestimação de quanto alguém domina um assunto que diminui nossa vigilância em relação a uma notícia e, portanto, não nos permite avaliar se é uma verdadeira ou falsa.

J&Cia – Isso explica por que as pessoas compartilham informações sem a certeza da veracidade de seu conteúdo?
Albert – As pessoas acham que têm certeza da veracidade do conteúdo que compartilham. Este é o drama das fake news. As pessoas que compartilham essa notícia acham que são apenas “notícias”. Quando não têm certeza, as pessoas frequentemente checam. Seria interessante estudar os mecanismos e fatores que contribuem para o grau de confiança que as pessoas têm nas notícias. Isso pode estar ligado à fonte: algumas pessoas confiam em algumas fontes e não em outras; também está ligado a nossos preconceitos: vou verificar menos as coisas que estão alinhadas com minhas crenças a priori, por exemplo.

J&Cia – Quais mecanismos o cérebro usa para duvidar de ou aceitar notícias falsas?
Albert – Vários mecanismos estão em jogo na forma como avaliamos a relevância das informações a que somos expostos: gostaríamos de reduzir nossa dissonância cognitiva – preferimos as informações que confirmam nossas ideias ou nossos comportamentos e rejeitamos aquelas que os contradigam; tendemos a pensar de forma “motivada” – não pensamos no mundo como se fôssemos um detetive buscando encontrar a “verdade”.

Tendemos, isto sim, a pensar como um advogado que quer defender seu cliente, especialmente no que diz respeito a tópicos sensíveis. E assim como um advogado prestamos mais atenção à informação que vem “para defender nosso cliente” e varreremos a informação que possa desfavorecê-lo. Outros mecanismos também estão em jogo, mas a dissonância cognitiva e o raciocínio motivacional são os dois conceitos centrais em nossa avaliação das informações que recebemos do mundo.

J&Cia – A busca pela coerência nos leva, então, a acreditar em falsas notícias?
Albert – Nosso cérebro está sempre organizando o mundo para dar a ele um “sentido” e uma “coerência”, e isso não se limita de forma alguma às fake news. Fazemos com tudo. É por isso que se meu filho faz algo ruim, é menos “sério” do que se o filho do vizinho fizer a mesma coisa. Não percebemos o mundo de maneira objetiva; nós o colorimos permanentemente com quem somos, muitas vezes para sermos coerentes com nossas ideias, nossos comportamentos e nossas crenças.

Se sou um ativista antiglobalização e participo sempre de protestos, não vou reagir “positivamente” a um artigo que diz que os organismos geneticamente modificados (OGMs) não representam um risco para a saúde. Mas se eu acredito que a Terra é oval, não irei gastar meu tempo explorando os argumentos de uma pessoa que acredita que a Terra é plana. Estamos sempre tentando reduzir a lacuna da incoerência, mesmo que isso signifique negar a realidade. E reitero: a maioria das pessoas que compartilham fake news acha que são notícias verdadeiras.

J&Cia – Como então podemos fazer para orientar as pessoas na luta contra a disseminação de notícias falsas? Como promover o ceticismo?
Albert – Infelizmente, não existe uma solução mágica para promover o raciocínio crítico e a flexibilidade intelectual, mas algumas dicas parecem mais promissoras do que outras:

  • Pesar nossas opiniões: atribuir uma pontuação de confiança às nossas opiniões e ponderá-las. O conhecimento é muitas vezes dimensional (num continuum) e não dicotômico (verdadeiro / falso), e atribuir um fator de confiança à nossa opinião pode nos proteger de ilusões do conhecimento: por exemplo, acho que Bitcoin é uma boa alternativa monetária e tenho 40% de confiança nessa opinião porque não sou especialista em criptomoedas.
  • Tentar explicar por que tenho uma determinada opinião: sou capaz de explicar por que acredito que os organismos geneticamente modificados são ruins? Entendo como funcionam? A biologia que há por trás? Se não, eu deveria desconfiar das minhas próprias opiniões.
  • Ler fontes de opinião contrária: entender como alguém chegou a uma opinião tão diferente da minha, não para julgá-lo, mas para ver quais informações utilizou, colocando-me em seu lugar.
  • Valorizar a razão pela qual temos determinada opinião, em vez de valorizar a opinião em si: quando se está ligado à opinião, tendemos a querer defendê-la, ela se torna “identitária”, ao passo que se a valorizamos porque temos uma determinada opinião, retiramos nosso orgulho do nosso raciocínio, e portanto ficamos menos na defensiva quando novas informações contradizem nossa opinião e teremos mais chance de mudar.
  • Controle metacognitivo: pensar sobre nossos pensamentos, não acreditar em todo e qualquer pensamento que me ocorra e passá-los por filtro que o avalie antes de acreditar nele imediatamente. Leio um artigo e imediatamente digo para mim mesmo: “é bobagem”; fazer uma pausa e perguntar por que, em vez de acreditar imediatamente no meu pensamento “automático”.

E, acima de tudo, devemos fazer esforços na educação e começar a dar cursos de pensamento crítico e promover a flexibilidade intelectual na escola.

Este vídeo publicado no YouTube resume a teoria de Moukheiber sobre fake news.

A notícia tem que ser mais eficaz do que as histórias falsas

 

A verificação de fatos é uma velha prática jornalística que ganhou novos atores e extrapolou os limites das redações com a chegada da internet. Ainda na década de 1990, surgiram as primeiras iniciativas independentes criadas para checagem de informações, as organizações de fact-checking.

Em 2014, essas organizações reuniram-se em Londres em uma conferência organizada pelo Poynter Institute e entenderam que era necessário maior intercâmbio e compartilhamento das melhores práticas entre os verificadores de fatos do mundo. No final do segundo Global Fact-Checking Summit, em 2015, a Poynter anunciou que conseguira apoio financeiro para formar a International Fact-Checking Network. Desde então, o jornalista Alexios Mantzarlis dirige a rede.

Alexios Mantzarlis

Ele acredita que enfrentar a disseminação de notícias falsas será uma tarefa duradoura: “Acho que o paradigma mudou. Creio que provavelmente seremos capazes de enfrentar o desafio técnico da disseminação, um pouco como lidar com spam, mas a polarização e a escala continuam sendo grandes desafios”.

Os desafios não param por aí. O diretor da IFCN entende que é necessário criar defesas para enfrentar os rumores e as notícias falsas que destroem reputações. Ele diz que precisamos acompanhar o que é popular em todas as mídias que são importantes para nós e que essa é uma tarefa especialmente vital em epidemias ou outras instâncias onde a ação rápida dos governos pode salvar vidas. Mantzarlis também adverte que apenas publicar informações precisas não será suficiente: “É preciso ter certeza de que o público está sendo alcançado e que o conteúdo publicado é mais eficaz do que as histórias falsas”.

Esses desafios são da sociedade mas também das organizações. E as empresas provavelmente venham a necessitar de verificadores externos para garantir precisão e confiabilidade às informações que dividem com seus vários públicos de interesse. Alexios Mantzarlis concorda que há um potencial crescimento nessa atividade e que ela pode vir a ser um atrativo modelo de negócios para verificadores, mas vê conflitos de interesse para que a IFCN venha a adotar também essas organizações.

 

A notícia falsa é uma oportunidade para dar visibilidade a uma agenda positiva

 

Marina Peixoto

Marina Peixoto, diretora de Comunicação Corporativa da Coca-Cola Brasil, conta com detalhes como a empresa tratou um boato que prosperou nas mídias sociais no início deste ano, relacionando a empresa a uma hipotética compra do Aquífero Guarani, uma das maiores reservas de água subterrânea do mundo. Nesse caso, a comunicação aproveitou o surgimento da notícia falsa como oportunidade para falar sobre suas iniciativas na área de sustentabilidade e dar visibilidade à agenda positiva da companhia.

Jornalistas&Cia – Quando e como vocês perceberam que o boato da concessão do Aquífero Guarani para a empresa estava prosperando nas mídias sociais?
Marina Peixoto – Historicamente temos lidado com boatos em diversas plataformas. Mesmo antes das redes sociais, no fim da década de 1990, por exemplo, boatos já circulavam por e-mail. O aspecto que mais mudou de lá para cá é o alcance e a velocidade com que os boatos podem se propagar. Temos uma equipe que se reúne para monitorar e analisar em tempo real os temas de maior repercussão na internet. A maioria dos boatos vai mudando de roupagem com o tempo. Foi o caso do Aquífero Guarani, que rondava a internet desde 2016 e, com a aproximação do Fórum Mundial da Água, foi ganhando novas roupagens e, inclusive, começou a circular também na América Latina.

J&Cia – Como vocês abordaram a situação?
Marina – Na Coca-Cola Brasil temos diretrizes claras para reagir às fake news. De acordo com a análise em tempo real, podemos usar diversas ferramentas, que vão desde preparar a resposta e disponibilizar nos nossos canais, até impulsionar posicionamento via Facebook, Google ou ainda pautar a imprensa. Transparência e agilidade são prioridades ao lidar com fake news. Precisamos agir com velocidade para cortar o boato na origem e estamos trabalhando em várias frentes para combater a desinformação na internet. Novos boatos são avaliados por uma equipe multidisciplinar, que conta com um grupo de WhatsApp próprio, que tem no máximo 24 horas para preparar o conteúdo da resposta. Nosso site, o Journey Brasil, que segue os moldes internacionais da empresa, foi o primeiro a criar uma aba #éboato, que é uma das mais acessadas.

O CRC (Central de Relacionamento com o Consumidor) atua para captar os boatos que chegam a partir dos nossos consumidores, por telefone e na internet. Contamos ainda com um número de WhatsApp interno. O objetivo é que qualquer funcionário que se depare com um boato envolvendo a companhia ou uma de nossas marcas possa encaminhar e ter, em tempo real, a resposta que pode ser compartilhada com amigos e familiares. Nosso trabalho é para que as respostas sejam na mesma linguagem da fake news: cards visuais com informações simplificadas e de fácil compartilhamento. No caso do Aquífero, lançamos mão de toda a estratégia. É o mais importante para derrubarmos, de uma vez por todas.

Nosso presidente, Henrique Braun, em sua palestra durante painel no Fórum Mundial da Água, tratou de desconstruir as notícias que circulam nas mídias sociais e relacionam negativamente Nestlé e Coca-Cola ao Aquífero Guarani, a imensa reserva de água sob o solo de Paraguai, Uruguai, Argentina e, principalmente, Brasil. De forma bem objetiva e contundente, ele respondeu:

“Saiu uma fake news dizendo que a Coca-Cola estava em processo de aquisição do Aquífero Guarani. A resposta é não. Não é nem constitucional. A água é pública e nós pagamos outorga para usar”.

Por meio da imprensa, aproveitamos o ganho do Fórum Mundial da Água para, além de desmentir o boato, mostrar o que estávamos fazendo na questão hídrica. O trabalho para garantir acesso à água em comunidades rurais e isoladas, a abertura de fontes que operamos para as comunidades no entorno e a conservação de bacias hidrográficas.

Com esse trabalho, conseguimos mitigar possíveis danos reputacionais e dar visibilidade à agenda positiva da companhia.

J&Cia – Esse boato trouxe prejuízos para a empresa?
Marina Fake news gera um impacto negativo para empresas, mas também para as pessoas, para eleições, para toda a sociedade. Precisamos combater, com ajuda da imprensa, só assim podemos impedir que se alastre. Essas informações não são propagadas pela grande imprensa, mas os veículos têm grande poder para colaborar. E contamos muito com eles no caso do Aquífero, que repercutiu positivamente em toda a grande imprensa.

J&Cia – Depois desse episódio, a empresa modificou alguma coisa nos seus processos para se proteger de futuros ataques?
Marina – Estamos em um momento em que o desafio é cada vez maior. Por isso, é necessário o envolvimento de todos os setores da sociedade para tratar dessa questão. Cada um de nós deve tomar para si a responsabilidade de não disseminar conteúdos sem antes checar a veracidade. Sites como o e-farsas e o boatos.org, além da imprensa tradicional, são importantes ferramentas nessa busca.

 

 

(*) Sérgio Lüdtke é ex-editor executivo nos grupos RBS e Globo, publisher da Artes e Ofícios Editora e coordenador do Master em Jornalismo Digital no IICS. Desenvolveu o curso Modelos de Negócios e Financiamento do Jornalismo Digital baseado em sua pesquisa sobre modelos de negócios de mídia digital. Recentemente produziu a parte brasileira da pesquisa Ponto de inflexão, mais completo estudo já realizado sobre o crescimento e o impacto da mídia digital independente na América Latina, bem como as ameaças ao setor. Dirige a empresa de consultoria em comunicação digital Interatores e a Escola de Interatores.

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