Por Dedé Mesquita, correspondente de Jornalistas&Cia em Belém
O jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, de 73 anos, natural de Santarém, município localizado na região oeste do Pará, publicou no último sábado (8/7), no site Agenda Amazônica, escrito e editado por ele, que vai abandonar o jornalismo diário, depois de quase seis décadas dedicadas à profissão. O motivo da decisão é que Lúcio se descobriu portador do Mal de Parkinson, em 2018, uma doença degenerativa e sem cura, e que agora começa a atingir a cognição do jornalista.
Em sua despedida, sob o título Perdão, leitores, escreveu: “Fui alertado pelos médicos: na sua progressão, o Parkinson poderia começar a atingir a minha cognição; e eu seria abalado. Esse dia chegou. Mesmo lendo e relendo o extrato de um contrato, que motivou uma nota, já cancelada, voluntariamente, li errado e só percebi o erro neste momento. Acordei subitamente, assustado, já com a constatação do erro crasso que eu cometera por uma leitura prejudicada”.
“Só cancelar a nota, como fiz, não é o suficiente. Depois de anos de convivência com a doença mental, este foi o primeiro erro desse tipo que cometi, depois de milhares de notas que escrevi neste blog já com o diagnóstico do Mal. Sob o choque da percepção, decidi encerrar a minha atividade jornalística pública diária. Não quero cometer um novo erro desse tipo, por redução ou, em algum momento, perda da capacidade cognitiva”, enfatizou.
Trajetória − Lúcio Flávio de Faria Pinto nasceu em 23 de setembro de 1949, filho de Iraci de Faria Pinto e Elias Ribeiro Pinto, que foi radialista, jornalista, comerciante e político. Aos 15 anos, Lúcio passou a apresentar um programa de rádio, mas o chefe da 2ª Secção da 8ª Região Militar considerou o programa subversivo e o tirou do ar. Aos 16, já em Belém, trabalhou como repórter no jornal A Província do Pará, integrante dos Diários Associados, onde depois ocupou o cargo de secretário de Redação.
Sobre a família, que sempre teve ligação com a imprensa, Lúcio relembra: “Por incrível que pareça, o meu pai influiu pouco sobre a opção que quatro dos seus sete filhos − uma única mulher − fizeram pelo jornalismo. Apenas eu, o mais velho entre os homens, tinha alguma informação sobre o passado dele. Por acaso, aos 16 anos, por curiosidade, em 1966, subi as escadas para conhecer a redação de A Província do Pará, no centro antigo de Belém. Eu circulava em frente à sede do jornal, indo de um sebo para uma livraria, na mesma rua. Foi por minha influência que meus irmãos me seguiram, a partir de 1971. Só alguns anos depois comecei a pesquisar sobre Elias Pinto, jornalista. E foi muito bom saber o que ele fez em dois jornais que circulavam em Santarém. Um dos jornais era dele, no qual ele já defendia a emancipação do Tapajós como o Estado do Baixo-Amazonas”.
Mudança para a região sul − Em 1968, aos 18 anos, Lúcio decidiu mudar-se de Belém para o Rio de Janeiro, onde trabalhou por pouco tempo no Correio da Manhã. Depois foi para São Paulo, atuando em Diário de S.Paulo, Diário da Noite, Veja, IstoÉ, Jornal da República, Jornal da Tarde e O Estado de S.Paulo, onde consolidou sua carreira, atuando como repórter entre os anos de 1971 e 1989. Ao mesmo tempo, trabalhou na imprensa alternativa, nos jornais Opinião e Movimento.
A experiência de trabalhar no Estadão traz ótimas lembranças ao jornalista: “A maior parte do capital de conhecimentos que acumulei, eu o formei ao longo dos 18 anos como repórter do Estadão, entre 1971 e 1989. O jornal sempre bancou as minhas viagens. Nunca rejeitou as minhas pautas. Sabia que eu voltaria com a matéria pautada e ela ocuparia um lugar de destaque no jornal. Além disso, um dos donos da empresa, Júlio Mesquita Neto, aprovou meu projeto de criar uma sucursal da Amazônia, com repórteres em todas as capitais, coordenados por Belém, para fazer uma cobertura de melhor qualidade, como fizemos, até estourar uma crise no jornal, que colocou um fim na experiência daquela que foi a primeira sucursal verdadeiramente amazônica da imprensa. Como o rei Momo, primeira e única”.
Faculdade − Em 1973, formou-se em Sociologia pela Escola de Sociologia e Política da Universidade de São Paulo, chegou a iniciar sua pós-graduação na USP, mas retornou a Belém para montar a rede de sucursais do Estadão na Amazônia.
Volta a Belém − Em Belém, em 1975, editou o suplemento alternativo Bandeira 3, nos moldes do antológico Pasquim. Lúcio Flávio Pinto foi também professor visitante, entre 1981 e 1982, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) e do curso de Jornalismo no Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Pará, até a metade da década de 1990. Entre 1983 e 1984, foi também professor visitante do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade da Flórida, em Gainesville, Estados Unidos.
Jornal Pessoal − Trabalhou em O Liberal, na empresa das Organizações Romulo Maiorana (ORM), e quando se demitiu de O Liberal fundou o Jornal Pessoal, em 1987.
Sobre a experiência com o Jornal Pessoal, Lúcio destaca que o jornal durou 32 anos, com três interrupções menores, que não lhe devem ter tirado nem dois anos. “Jornal escrito por uma única pessoa, com as ilustrações e a diagramação do meu irmão, o Luís Pinto, que não aceitava publicidade, vivia da venda avulsa, tinha tiragem de 2 mil exemplares, vendendo em bancas e livrarias, me causou 34 processos judiciais, propostos por pessoas poderosas, mas jamais foi desmentido. Firmou-se como referência da história contemporânea”, conta, orgulhoso.
Amazônia − Fazer jornalismo na Amazônia foi muito marcante para Lúcio Flávio: “Se alguma coisa foi marcante na minha trajetória foi a oportunidade que tive de percorrer intensamente a Amazônia, entre 1966 e 2002. Em quase todos os lugares nos quais houve algum episódio importante da história da Amazônia nesse período eu estive. Vi os acontecimentos com meus próprios olhos. Esse conhecimento foi decisivo para me proporcionar uma visão tanto global − o que inclui fatos externos − como detalhada, factual e personalizada, com fontes em todos os Estados da região”.
“Sempre me senti como um correspondente de guerra ao atuar nas frentes pioneiras na Amazônia, que são extremamente violentas. Além disso, o repórter também costuma estar muito próximo dos personagens que critica ou denuncia. Pode sofrer violência mais frequentemente”.
“Hoje, a insegurança dos jornalistas é visível e estou certo de que, se fosse repetir o que fiz entre 1970 e 1990, não estaria vivo”.
Lúcio Flávio é autor de 21 livros individuais publicados, todos sobre a Amazônia.
Prêmios − Ao longo da carreira, Lúcio colecionou premiações. São dele quatro prêmios Esso: “Todas as [premiações] que recebi foram importantes para mim, sobretudo porque foram, em geral, inscritas por outras pessoas e não por mim, que desisti delas depois das primeiras iniciativas. Foi assim que recebi três premiações internacionais. Fui o primeiro não europeu premiado com a Colombe d’Oro per la Pace, a mais importante premiação da imprensa italiana; o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection, dos Estados Unidos; e como um dos 100 heróis do jornalismo pelos Repórteres Sem Fronteiras, de Paris”, relembra.
Doença − Em 2018, Lúcio recebeu o diagnóstico do Mal de Parkinson, depois de apresentar sintomas anteriormente: “Foi um golpe duro saber que eu estava com uma doença degenerativa e sem cura. De imediato, quis desistir e me retirar da vida pública para tentar ter uma vida mais tranquila, retardando o avanço da doença. Mas logo estava de novo na linha de frente”.
A decisão de parar com o jornalismo diário − o que foi, de pronto, recomendado pelos médicos − só viria cinco anos depois.
Futuro − Sobre o que vai acontecer de agora em diante, Lúcio já tem ideias definidas: “O blog será dedicado, a partir de agora, à divulgação do que já escrevi e à imensa quantidade de documentos do meu arquivo, que possam ter utilidade pública. Além de prosseguir no tema mais relevante neste contexto, que é a Cabanagem [revolta popular e social que ocorreu na então Província do Grão-Pará, entre 1835 e 1840]”.
“Continuarei a acompanhar o dia a dia do Pará, da Amazônia, do Brasil e do mundo. Agora, como espectador, um espectador ainda comprometido com o meu tempo, mesmo que este já não seja exatamente meu”.
“Tentei várias vezes sair do tiroteio diário. Ele não é causado apenas pela desgastante vigilância diária para saber o que está acontecendo e o que significa. Há também a reação dos que são contrariados e me atacam de várias maneiras, tentando me fazer desistir. Agora a minha condição física ficou pior e tenho que sair do front. Mas espero continuar a contribuir, na retaguarda, para o entendimento do drama da Amazônia, que nunca se atenuou”.
Lúcio não lamenta o passado e diz que “o que está feito está também acabado” e se pudesse mudar alguma coisa evitaria ou corrigiria alguns erros, “mas tudo coisa secundária”. “No mais, repetiria a essência do que fiz: um jornalismo independente, crítico e baseado em matéria-prima que mais se aproxima da verdade”.
Não à aposentadoria – Lúcio Flávio não considera essa parada forçada pela doença como uma aposentadoria: “Provavelmente, só a morte ou − o que passou a me preocupar mais intensamente agora − a invalidez física e/ou mental me aposentará”.
No mais, ele vai tentar estar, cada vez mais, ficar perto da imensa biblioteca que construiu nesse mais de meio século de jornalismo e literatura: “Eu jamais darei conta de todos os livros que possuo. Mas colocá-los na minha companhia foi uma das maiores realizações da minha vida. Espero que continuem a ser meus queridos companheiros de viagem”.
Lúcio Flávio Pinto encerrou assim o texto de despedida do jornalismo diário: “Muito obrigado a todos os meus leitores, de acordo ou em divergência comigo, sem os quais eu não estaria aqui, com a maior gratidão que há em mim. Espero que este blog e os demais, que procurarei continuar a alimentar, ainda mereçam a sua visita, para mim sempre honrosa, estimulante e reconfortadora. E la nave va. Porque navegar é preciso”.