Por Luciana Gurgel
Muito já se falou sobre tendências que a pandemia acelerou ou aprofundou. A intolerância é uma delas. Discordância sobre isolamento social, uso de máscaras ou risco de tomar a vacina estragam amizades e afastam parentes em todo o mundo.
Em sociedades já divididas antes, como o Brasil e o Reino Unido, os efeitos do coronavírus sobre a paz social encontraram terreno ainda mais fértil para florescer. Com o potencial de modificar − talvez para sempre − o espírito cordial descontraído dos brasileiros e cordial respeitoso dos britânicos.
O Brexit dividiu o Reino Unido ao meio, literalmente. O plebiscito que decidiu pela saída do país da União Europeia, em 2016, teve resultado apertado.
Em 2019 a pressão se elevou, com os descontentes fazendo de tudo para reverter a partida iminente. Mas em janeiro de 2020 ela se deu, como previsto.
E aí veio a pandemia.
O tamanho da discórdia tem sido medido por uma pesquisa atrás da outra. O Financial Times desta terça-feira publicou um gráfico que mostra a extensão da guerra cultural que se instalou no país.
O instituto Ipsos examinou a dificuldade das pessoas em manterem amizade com que têm opiniões diferentes. O isolamento social vem em primeiro, praticamente empatado com o Black Lives Matter.
Isso tem uma explicação: no Reino Unido, a reação ao movimento intensificou o debate sobre colonialismo, desencadeando um movimento para remover estátuas que homenageiam pessoas ligadas à escravidão. Até a Rainha foi “cancelada”, com sua foto retirada de uma sala de convivência em Oxford.
GB News, a “Fox News” britânica
Foi nesse ambiente que nasceu esta semana um projeto que pode sepultar de vez a possibilidade de que as feridas abertas pelo Brexit e pela pandemia cicatrizem. Trata-se da emissora de TV GB News, criada e financiada por expoentes do Partido Conservador.
Ela estreou domingo com seus jornalistas e executivos debatendo-se contra a alcunha de “Fox News britânica”.
A holding que detém o canal foi criada em setembro de 2019, quando o primeiro-ministro Boris Johnson havia assumido o lugar de sua antecessora,Theresa May, que caíra desgastada pela dificuldade em negociar um acordo com Bruxelas.
Em janeiro, depois das eleições gerais que o confirmaram no cargo, a emissora ganhou concessão para operar. E assumiu algumas bandeiras: o nacionalismo, o combate ao “politicamente correto”, a voz para excluídos de fora da capital e o combate à BBC.
As promessas se confirmaram. Quem acompanha o canal americano pode até achar o tom da GB News normal. Mas aqui não era até domingo passado, pelo menos no jornalismo.
Não quer dizer que os jornalistas britânicos sejam benevolentes com o governo. BBC e Sky têm programas dominicais que “imprensam”, sem trocadilho, os poderosos contra a parede.
Mas é com elegância, sem exasperação, sem discordar do convidado como se estivesse numa mesa de bar depois de cinco chopes. E este foi o tom que a GB News adotou. Chega a ser angustiante assistir alguns programas da nova rede.
No primeiro dia, a audiência bateu as de BBC, ITV e Sky. Mas nas redes sociais muitos comentaram que seria por curiosidade, com gente sintonizando para conhecer ou confirmar a má impressão que já tinha antes de assistir.
No entanto, esta é uma sociedade dividida. Dar voz a figuras da extrema direita radical que estavam no ostracismo político, como o controvertido Nigel Farage, ou promover a desobediência ao isolamento social chega a ser perigoso, mas encontra seguidores.
A TV já não é a principal formadora de opinião. Mas no Reino Unido, graças ao hábito criado pela BBC, resiste como influência importante.
E o que sai nas TVs é amplificado nas redes sociais, sobretudo o que é polêmico. Como a pauta da GB News.
Ela chegou jogando gasolina numa fogueira que já ardia. E pode acabar sendo o instrumento que vai colocar fim ao império da gentileza britânica.
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