Há exatos 39 anos, coincidentemente também um sábado, a ditadura civil-militar que se instalou no Brasil em 1964 matava em seus porões, sob tortura, o jornalista Vladimir Herzog, então diretor de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo.
O episódio, embora sobejamente conhecido, principalmente por quem é do meio, ficou registrado na história do País tanto como mancha indelével quanto como marca do início do fim do regime que subjugou os brasileiros por mais de duas décadas.
E, como bem lembra Ricardo Kotscho, comentarista da Record News e repórter da revista Brasileiros, “é sempre importante lembrar esta data, para que a tragédia de 39 anos atrás nunca mais se repita na nossa história. E é importante também sempre lembrar o papel que os jornalistas dedo-duros tiveram na morte do Vlado. Alguns deles ainda andam impunes por aí”.
Pela importância e simbologia da data, o Portal dos Jornalistas abre espaço para uma singela lembrança, por meio dos depoimentos de três personagens que viveram intensamente aquele episódio, ainda que de maneiras totalmente distintas: Ivo Herzog, filho mais velho de Vladimir, na época um menino de apenas oito anos, hoje diretor do instituto que leva o nome de seu pai; Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, que encabeçou o movimento da sociedade para não deixar impune aquele crime; e Paulo Markun, que, também preso, foi uma das testemunhas do suplício de Herzog.
Mais do que uma lembrança, esses depoimentos marcam o início das homenagens que começam a ser feitas a Vlado pelo transcurso dos 40 anos de sua morte, em 2015.
Vale registrar também que se realiza na próxima 4ª.feira (29/10), às 20h, no Teatro da Universidade Católica de São Paulo – Tuca (rua Monte Alegre, 1.024), a cerimônia de entrega do 36º Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.
Antes, pela manhã (9h às 12h), os premiados participam da Roda de Conversa com estudantes promovida por Instituto Vladimir Herzog, Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão e Oboré/Projeto Repórter do Futuro para revelar os bastidores das reportagens contempladas, Será no TucArena (entrada pela rua Bartira, esquina com a rua Monte Alegre, 1.024), com mediação de Aldo Quiroga (apresentador da TV Cultura e professor de Jornalismo na PUC) e Angelina Nunes (editora de O Globo e diretora da Abraji).
Segundo Sérgio Gomes, diretor da Oboré e também ele preso e torturado na época da morte de Herzog, “o propósito principal da iniciativa é oferecer aos estudantes que querem ser jornalistas de verdade uma visão realista sobre o imenso trabalho que está por trás, por baixo de cada matéria dessas”.
Agora, os depoimentos: Ivo Herzog “São 39 anos anos desde a última vez que vi meu pai. E as lembranças continuam vivas. Recordo que até bem recentemente as minhas memórias mais antigas sobre diversos fatos tinham incríveis dez anos. Passou-se mais um tempo e esse número subiu para vinte anos. Quase 40 anos!!! Mais tempo mesmo do que meu pai teve para viver. E por que sua memória continua viva, não somente entre aqueles que conviveram com ele, mas também junto a muita gente que naquele 25 de outubro de 1975 ficou indignada com a barbaridade que acontecia com Vladimir Herzog? Assim como muitas outras na vida, essa pergunta também tem várias respostas. Eu acho que uma somatória de fatos tornou eterna a lembrança sobre meu pai. Ele era um cidadão comum. Escolhido pelo governo para cuidar de uma organização do governo e assassinado por esse mesmo governo. A tentativa criminosa do governo em criar uma farsa. Uma farsa que ofendia os familiares e amigos. A reação IMEDIATA da família, amigos e Henry Sobel contra a farsa do suicídio e gritando a plenos pulmões: ASSASSINATO! A luta sem descanso, tendo à frente minha mãe, Clarice, com o apoio de várias entidades e pessoas, como o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, James Wright e muitos outros, para que a verdade se tornasse pública e para que o crime fosse investigado. O governo daquela época se achava todo-poderoso, podendo fazer dos fatos a versão que quisesse. O governo de agora não tem coragem para enfrentar os restos tiranos e apodrecidos das lideranças daquele tempo e investigar e punir os responsáveis pelo sofrimento por que a nossa e muitas outras famílias passam. Uma história que adquiriu uma dimensão acima de todas as expectativas. Uma história que só acabará quando for totalmente contada. Enquanto isso, continua viva na nossa memória e na memória das novas gerações. Como viva continua para mim a lembrança de meu pai.” Audálio Dantas Trecho de As duas guerras de Vlado Herzog (Editora Civilização Brasileira). É do começo da Segunda Guerra, quando Vlado volta ao Brasil depois de trabalhar na BBC de Londres. “Vladimir Herzog criou raízes no Brasil. Tanto que, durante a temporada que passou na Inglaterra, contratado pela BBC, muitas vezes manifestou o desejo de voltar, mesmo que o país estivesse submetido a um regime militar. Misturava o interesse pelo trabalho, que fazia com apuro e gosto, com a saudade da terra que adotara como sua. Voltou num momento difícil, no fim de dezembro de 1968, nos primeiros dias de vigência do Ato Institucional nº 5, decretado no dia 13 pelos militares. O país mergulhara de vez na escuridão do arbítrio. (…) Na manhã de sábado, 25 de outubro de 1975, às 8 horas em ponto, Vladimir Herzog estava diante do grande portão de ferro cinzento da rua Tomás Carvalhal, 1.030, no Paraíso, um bairro de classe média alta de São Paulo. Minutos depois ele foi conduzido a uma dependência no fim de um grande pátio que, àquela hora, estava ensolarado. Ordenaram-lhe que se despisse e entregasse valores e objetos que trazia. Em seguida, deram-lhe um macacão verde-oliva, a mesma cor usada pelos militares do Exército Brasileiro. Vlado estava entregue ao DOI-Codi. Era um departamento do II Exército, um órgão oficial, mas funcionava como se fosse uma organização clandestina, nos fundos de uma delegacia de polícia. (…) Vladimir não podia ver o rosto do homem que lhe desferia golpes cada vez mais pesados com um pedaço de madeira. Tinham-lhe enfiado um capuz na cabeça, era impossível ver de que lado viria o próximo golpe. Mas sentia na carne a fúria e ouvia os gritos do torturador, que se misturavam aos seus. (…) Herzog estava na ‘cadeira do dragão’, à mercê do torturador. Ao capuz ele adicionara amoníaco que penetrava nas narinas, tornando a respiração quase impossível. As horas se passavam sem que a tortura cessasse. Um rádio foi ligado e aos gritos se misturavam os sons de música e de notícias, uma das quais – um dos prisioneiros ouviu nitidamente na sala ao lado – anunciava que o ditador Francisco Franco, da Espanha, estava agonizante e acabara de receber a extrema-unção. De repente, os gritos de Vlado diminuíram de intensidade, sua voz tornou-se abafada. Era como se lhe tivessem colocado uma mordaça. Seguiu-se um longo, pesado silêncio. Passado algum tempo, os gritos recomeçaram e em dado momento, a tarde já avançada, cessaram de vez. Vladimir Herzog estava morto.” Paulo Markun “Trinta e nove anos. O tempo, muitas vezes, esfumaça a memória de fatos e pessoas. O caso de Vladimir Herzog é diferente. Por várias razões. Cada dia mais, seu nome é referência em termos de jornalismo, direitos humanos, democracia, liberdade. Ele aproximou-se do jornalismo graças a seu professor de Literatura no colégio, Mario Leônidas Casanova. Divertido e grande conhecedor de modinhas de carnaval, ele apresentou os rapazes para a filosofia e o jornalismo. Além de estimulá-los a prestar o vestibular para Filosofia, levou-os a Perseu Abramo, chefe de Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. Vlado e seu colega de classe, Luis Weiss, fizeram duas semanas de testes e foram aprovados, mas como não havia vagas o jornal ficou de chamá-los mais adiante. Enquanto isso não acontecia, Vlado arrumou emprego como tradutor e redator da agência de notícias italiana Ansa. Em março, ingressou na Faculdade Filosofia. Mais um mês, estava no Estadão. A redação do jornalão dos Mesquita era um centro cultural independente e agitado. Vlado cobriu a inauguração de Brasília, a visita de Jean Paul Sartre ao Brasil, alguns festivais de cinema, sua grande paixão. Num desses conheceu Fernando Birri, documentarista e cineasta argentino cujo engajamento entusiasmou o jovem repórter. Em 1963, foi parar na televisão, como coordenador de produção do Show de Notícias, um telejornal que Fernando Pacheco Jordão dirigia na então poderosa TV Excelsior, nos moldes do já extinto Jornal de Vanguarda do Fernando Barbosa Lima. O golpe de 1964 o fez cogitar viver no Chile, onde esteve ao lado de João Baptista Lemos. Desistiu, mas logo adiante foi para a BBC de Londres, onde nasceram seus dois filhos (Ivo e André), com Clarice, que conhecera nos tempos de faculdade. Suas colaborações com a revista Visão lhe renderam menções em relatórios dos arapongas brasileiros, que já o tinham na alça de mira. Em agosto de 1968, quando terminou o contrato com a BBC, Clarice e as crianças voltaram para o Brasil, enquanto ele e Fernando Jordão ficaram mais três meses estudando no Centro de Televisão da BBC, com bolsas de estudo fornecidas pelo governo inglês, graças às cartas de apresentação em que a TV Cultura manifestava a disposição de contratá-los, quando voltassem ao Brasil. Ao retornar, Vlado ficou sem trabalho: a Cultura, que havia contratado Jordão, não cumpriu a promessa em relação a Herzog, que fora denunciado como comunista. Trabalhou por um ano como produtor de comerciais na tradicional agência de propaganda J.W. Thompson, mas retornou ao jornalismo como freelancer da revista Visão, onde acabou contratado. Produziu matérias importantes e ousadas para uma imprensa sob censura até ser chamado por Fernando Jordão para ser editor do Jornal da Cidade, comandando uma equipe de 30 pessoas que tinha entre outros, o reforço de Narciso Kalili, Mylton Severiano da Silva, o Miltainho, e Palmério Dória Vasconcellos. A experiência foi curta: Jordão acabou demitido e sua equipe foi dispersada. Era independência demais para uma TV chapa branca. Vlado também passou pela sucursal do Opinião em São Paulo, mas ficou poucas semanas – deixou a redação que pouco antes trocara de comando na crise que resultou no surgimento do Movimento e resolveu escrever o roteiro de um filme baseado em Doramundo, romance de Geraldo Ferraz. Não terminou o projeto: o secretário da Cultura do novo governo de São Paulo, José Mindlin, o convidou para dirigir o Departamento de Jornalismo da TV Cultura. O resto da história é conhecida. Vlado sempre foi perfeccionista. Crítico, radical, quase impiedoso. Mas, que eu me lembre, jamais foi intransigente ou arrogante. Para ele o jornalismo tinha uma missão. A TV pública também. A cultura deveria ser um caminho para o progresso da humanidade (sim, naquela época essa expressão não nos envergonhava e essa utopia fazia sentido). Para sorte do Brasil, as ideias e sonhos de Vlado têm hoje uma instituição que os preservam e impulsionam. Obra de Clarice, Ivo e um time que continua acreditando nos mesmos sonhos e utopias.”