A história desta semana é uma colaboração de José Maria dos Santos ([email protected]), que atuou, entre outros, nos Diários Associados e no Jornal da Tarde e hoje é colunista de Cidades e pauteiro de Nacional no Diário do Comércio, de São Paulo. Momentos de Murilo Felisberto O recente sepultamento do Jornal da Tarde inspirou a recordação de três momentos de Murilo Felisberto na sua direção, entre 2000 e 2003. Ele fora convocado pela família Mesquita para tentar reerguer da cama um moribundo. Todas as manhãs, por volta das 11h, Murilo comandava a reunião de abertura do jornal, do qual faziam parte Ruyzito Mesquita, eu, Luiz Rufatto e representantes das variadas editorias, cada um com suas respectivas pautas. Havia uma gigantesca mesa redonda sobre cujo tampo Murilinho passava o tempo desenhando charges dos presentes ? guardo várias delas ? enquanto ouvia, na maioria das vezes com muxoxos de desagrado, as propostas do dia. Antes, porém, de iniciar essa etapa, ele fazia uma espécie de critica da edição, carregada de comentários ácidos, fruto do seu perfeccionismo, felizmente ditos em voz baixa, quase inaudível, como era o jeito dele, o que reduzia seu impacto. Mas houve uma ocasião em que Murilinho fugiu dessa rotina. Entrou por último na sala, que ficava à margem da Redação, ao lado do gabinete de Fernão Mesquita, dobrou a edição em quatro partes, jogou-a de lado, sinalizando seu desprezo, afundou na cadeira e disse num fio de voz, quase num sussurro: ? Hoje eu não vou comentar a edição porque me faltam forças. Com certa freqüência, nós convidávamos figuras representativas das variadas áreas de conhecimento e poder para almoçar com editores no restaurante da diretoria, no sétimo andar. (Uma digressão: eram duas alas e em uma delas havia uma mesa trabalhada, com um magnífico tampo em mosaico de lápis-lazúli, que impressionava vivamente os convidados. O secretário Saulo de Castro, por exemplo, não perdia oportunidade de elogiá-la. A propósito, nela se evitava o uso de toalha, de modo a não esconder sua imponência). Murilo jamais participava desses encontros, e a cada vez que era solicitado, gesto para se cumprir formalidades, respondia com um esgar de horror. Contudo, certa vez, aceitou fazer parte da mesa com surpreendente entusiasmo ao saber que se tratava de Marco Aurélio Garcia, futuro assessor presidencial de Lula e Dilma, então da cúpula do PT e, salvo engano, membro da gestão Marta Suplicy na Prefeitura paulistana. Viemos compreender o motivo da sua excitação durante a refeição: ópera. Marco Aurélio Garcia é grande conhecedor do assunto e lá ficaram os dois, falando de Escamillo, Rodolfo & Mimi, Don Giovanni, Almaviva, O Anel de Nibelungo e por ai afora. Como era de praxe, a redação do JT tinha várias televisões, permanentemente ligadas em canais diferentes. Murilo, embora odiasse tudo o que se referisse a tevê, interrompia o que estivesse fazendo quando o senador Heráclito Fortes (DEM-PI) aparecia em uma das telas, apenas para poder mirá-lo intensamente. Às vezes, desafiando seu mau preparo físico, cruzava a redação em passos apressados. Depois de assistir por várias vezes a essa performance, perguntei-lhe a razão do fascínio obsessivo. Ele respondeu que o rosto do senador era extraordinário. Aquelas bochechas gordas e salientes, que comprimiam a boca pequena, estufando os lábios carnudos para a frente, indicavam como seria o rosto adulto de um anjinho barroco, caso viesse a crescer, que ele tanto se habituara a ver nas igrejas de Minas. Também o fazia lembrar as clássicas ilustrações medievais simbolizando a figura do vento soprando entre as nuvens e, principalmente, a máscara esculpida em pedra-sabão, vertendo água pela boca gorducha, incrustada no conhecido chafariz colonial da cidade de Tiradentes.