Iara Lemos, atualmente na Folha de S.Paulo em Brasília, lança seu primeiro livro, A Cruz Haitiana − Como a Igreja Católica usou de seu poder para esconder religiosos pedófilos no Haiti, que sai pela Tagore Editora e chega às livrarias em 18 de setembro. Já em pré-venda, o livro-reportagem trata da violência sofrida por crianças haitianas, vítimas de religiosos da Igreja Católica que atuam ou atuaram no país. Foram mais de dez anos de pesquisas, em três países, nos quais Iara contou inclusive com o apoio de Mitchell Garabedian, celebridade mundial quando o assunto envolve denúncias de abusos ligados ao catolicismo, no resgate de documentos do Vaticano e das cortes canadenses e americanas. Ele é o advogado responsável pelas ações que fortaleceram a investigação do caso Spotlight, no início dos anos 2002, que descortinou as violações consumadas por padres na região de Boston, com a conivência, ao longo de 20 anos, do cardeal Bernard Francis Law.
Iara traz, na obra, entrevistas com vítimas e jornalistas do Haiti, como Cyrus Sibert. Para ele, como a escravidão, a exploração sexual de crianças e sua escravidão (restavek,em crioulo) são práticas inaceitáveis: “Neste livro, Iara conta a história das vítimas e dos fracos. Permite que pessoas ‘sem voz’ contem sua história, sua dor. Tive o privilégio de compartilhar com ela minhas experiências, meu testemunho e minhas opiniões sobre uma realidade complexa, às vezes impensável, mas que causa muito sofrimento”. Sibert corajosamente expôs o americano Douglas Perlitz (condenado a quase 20 anos de prisão por ter abusado sexualmente de crianças no Haiti) em seus blogs e ex-programa de rádio em Cap-Haitien.
Apesar de ser um livro que apresenta realidades duríssimas, Iara consegue costurar a narrativa sem perder o olhar nas coisas boas do país, mostrando equilíbrio e amor pelo povo e pela brava forma como convive com suas mazelas. “É um livro indispensável!”, ressalta na contracapa Ricardo Seitenfus, doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, ex-representante da OEA no Haiti. Matheus Leitão Netto assina o prefácio. O lançamento, em 18/9, será com uma live no Instagram (@iarablemos), às 19h, quando Iara será entrevistada por Marcos Linhares, seu assessor de imprensa e agente literário.
Gaúcha de Alegrete radicada em Brasília, Iara é graduada pela UFSM e especialista em História Política. Com mais de 18 anos de experiência em TV, impresso, internet e rádio, atuou ainda em assessorias de imprensa, com foco em gerenciamento de crise. Atualmente, é repórter de Política na Folha de S.Paulo na Capital Federal. Foi editora-chefe do jornal Destak no Brasil, repórter do G1 e do Grupo RBS. Ganhou, entre outros, o Esso, categoria Interior, e menção honrosa no Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo.
Ela conversou sobre o livro com Kátia Morais, editora de J&Cia em Brasília:
Jornalistas&Cia − Que tipo de violência sofriam as crianças haitianas? Elas também envolviam freiras brasileiras? E desde quando ocorriam?
Iara Lemos − Eram de abuso sexual, em troca de cuidados básicos como comida, banho e remédios. Datam desde os anos 1990, segundo documentos a que tive acesso, mas é possível que haja casos antes disso. Mas jamais envolveram religiosas brasileiras. Elas desenvolvem um trabalho social de proporção incrível, que serve de base para as crianças haitianas atendidas.
J&Cia − Como foi a reação da Igreja Católica diante das denúncias?
Iara − A Igreja Católica tem uma sistemática de esconder religiosos pedófilos. Um dos casos, de Douglas Perlitz, teve inclusive o apoio de um padre para que os crimes fossem cometidos. Ele jamais foi punido. Dos casos que relato no livro, em apenas um há documentos no Vaticano sobre os crimes cometidos pelo ex-núncio da Igreja para Haiti, República Dominicana e Porto Rico. Mesmo assim, ele não foi punido. Morreu sob a guarda do Vaticano, depois de ter fugido da região caribenha. O padre Bruno Eugener, que violentou meninas na escola que ele coordenava no interior do Haiti, jamais foi punido, assim como os demais. Uma de suas vítimas narrou-me ter sido violentada sob a ameaça de uma arma. Ela tem uma filha dele e vive sob ameaça. Cyrus Sibert, jornalista haitiano que muito me auxiliou nas pesquisas, precisou retirar sua família do Haiti depois de ser ameaçado de morte. É, sem dúvida, uma rede proteção aos crimes que precisa ser rompida.
J&Cia − O que mais a impressionou nessa pesquisa, além das tristes constatações, é claro…
Iara − É difícil chegar a essa resposta, mas creio que a inércia do sistema jurídico, atrelado à imensa teia de proteção criada pela Igreja Católica ao longo dos anos, é algo que impressiona. No caso do estado haitiano, ambas se unem em uma engrenagem azeitada pelas dores de suas vítimas. As crianças entravam nas escolas em busca de educação, alimentos e até mesmo a possibilidade de um banho, e eram violentadas. Era cobrado delas o sigilo, sob pena de perderem o pouco que já tinham. É difícil para as vítimas romperem a barreira do silêncio e buscarem apoio. Foi difícil para mim ouvir tantos relatos, descobrir formas de violência contra crianças que deveriam ser protegidas. Eu agradeço a cada um dos que confiaram em mim suas dores na esperança de que possamos, um dia, mudar essa realidade de dor e violência.
J&Cia − Como o povo haitiano reage diante de tais barbaridades?
Iara −A maior parte do povo haitiano vive na pobreza. O Estado depende da Igreja para suprir responsabilidades que eles não têm estrutura para manter, como saúde e educação. A relação estabelecida entre a Igreja Católica e o Estado haitiano é tão grande que o Vodu chegou a ser considerado crime pelo código penal haitiano. Isso só foi revertido em 2004. A Igreja Católica comanda mais de um quarto das escolas que atendem no Haiti. É um trabalho de suma importância dentro de um território extremamente debilitado, e é por isso que não se pode deixar que crimes como os que narro no livro destruam trabalhos que podem resultar em um futuro melhor para a sociedade local. O Haiti precisa dos trabalhos sociais.
J&Cia − Você pretende lançar o livro também nos EUA e no próprio Haiti?
Iara − Estamos em conversa fora do Brasil, e também já há contatos para que o trabalho se estenda ao Haiti. Lá, contudo, algumas editoras já negaram a publicação devido ao fato de trabalharem com livros da Igreja Católica. Sem dúvida, temos um longo trabalho pela frente. Creio que as conversas nos EUA avancem de forma mais rápida, ainda mais porque contei com o apoio do advogado Garabedian, referência quando se trata de crimes de pedofilia cometidos pela Igreja, que auxiliou também os colegas que revelaram as denúncias no interior dos EUA, conhecido como caso Spotlight. Por meio dele, consegui acesso a documentos da Justiça norte-americana que resultaram em punição de religiosos. Parte das vítimas haitianas, inclusive, já recebeu indenizações pelos crimes de que foram alvo.