Por Luciana Gurgel
O atentado de 11 de setembro de 2001 deixou como legado uma intolerância contra os muçulmanos nos Estados Unidos e na Europa, sentimento agravado por outros atos terroristas praticados por seguidores do Islã.
No Reino Unido essa animosidade foi exacerbada pelo Brexit, que tinha como uma das bandeiras a defesa dos valores tradicionais do país e a aversão a imigrantes.
Não é fácil mensurar discriminação. Mas uma pesquisa que saiu esta semana afirma que o preconceito contra muçulmanos é generalizado na cobertura da imprensa no país.
O trabalho foi feito pelo Centro de Monitoramento de Mídia do Conselho Muçulmano da Grã-Bretanha. Os pesquisadores analisaram mais de 48 mil matérias online e 5,5 mil reportagens em vídeo veiculadas entre outubro de 2018 e setembro de 2019.
Os números são assustadores: quase 60% dos textos e 47% dos vídeos associavam o Islã ou os muçulmanos a comportamentos negativos.
O período de coleta dos dados foi especialmente tenso. A saída da União Europeia se aproximava sem um acordo negociado, e o movimento para tentar uma nova votação era forte.
Isso despertou a ira dos que tinham votado a favor do Brexit, muitos deles nacionalistas ao extremo − justamente aqueles que não aceitam imigrantes e pessoas de outras culturas.
O problema é que as tensões sociais e políticas acabaram refletidas pelo jornalismo, o que pode ter ajudado a alimentar preconceitos anteriores.
Os autores do estudo observaram que as publicações religiosas e de direita − The Spectator é uma das citadas − tinham um percentual maior de matérias preconceituosas, ou que deturpavam a crença ou o comportamento de muçulmanos.
O relatório apresenta dez estudos de caso que mostraram como os islâmicos foram tratados de forma pejorativa em veículos importantes, em alguns casos levando o pagamento de indenização e pedidos de desculpas.
O mais surpreendente é que esse tratamento negativo não veio somente dos agressivos tabloides, alguns deles com pauta nacionalista e abertamente anti-imigração, cultuando o estilo de vida tipicamente inglês.
Um dos casos destacados é o de uma reportagem equivocada sobre uma família muçulmana publicada pelo jornal The Times.
O The Times apoiou o relatório, assim como o Daily Mirror. Alison Philips, editora-chefe do jornal, disse que o estudo mostra o quanto jornalistas devem questionar a si próprios e repensar a forma de reportar sobre muçulmanos e o Islã.
Na pandemia, mulçulmanos “bons” e “maus”
Este não é o primeiro trabalho a apontar preconceitos na mídia britânica, cujas redações são dominadas por não-brancos, como demonstram os relatórios de diversidade do Instituto Reuters.
As pesquisadoras Elizabeth Poole e Milly Willinsonc também trataram da delicada questão em uma pesquisa desenvolvida durante a primeira onda da pandemia.
Em artigo sobre a pesquisa no blog da London School of Economics, elas concordam que historicamente a imprensa do país representa os muçulmanos de forma amplamente negativa. E dizem que isso se acentuou na crise do coronavírus, que levou a um número alto de mortes entre minorias étnicas.
O estudo aponta traços comuns nas matérias sobre a Covid. Um deles foi a construção da imagem de que os islâmicos recusavam-se a seguir o isolamento social, sobretudo nas festas religiosas.
Outro foi a divisão entre muçulmanos “bons” e “maus”. Os heróis do NHS (sistema público de saúde) eram os bons. Mas os demais continuaram sendo muitas vezes tratados como não-britânicos, constataram as pesquisadoras.
Preconceito inconsciente
Ao ler jornais britânicos regularmente, é possível observar como o preconceito está presente, ainda que de forma inconsciente.
É muito mais comum um personagem de matéria ser descrito como “nascido no Reino Unido de família paquistanesa” do que “nascido no Reino Unido de família italiana” − a não ser que seja para elogiar.
Rizwana Hamid, diretora do Centro de Monitoramento da Mídia, destacou que o estudo não teve a finalidade de culpar determinados veículos ou profissionais. Mas observou que os resultados mostram que, quando se trata de muçulmanos, é hora de a indústria admitir que tem errado. E colocar em prática as recomendações para melhorar o padrão jornalístico feitas pelos pesquisadores.
O estudo faz refletir sobre o racismo de forma mais ampla na mídia britânica.
Meghan Markle virou símbolo de discriminação contra negros no país − embora nem todos concordem que o tratamento negativo de alguns veículos a ela tenha sido só decorrente da cor da pele, mas também pelo fato de ser americana.
Seja qual for o motivo, a imprensa do Reino Unido tem um dever de casa a fazer se quiser ajudar a reduzir a polarização do país.
Veja o relatório completo em MediaTalks.
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