Finalista do Prêmio Jabuti, Discursos de ódio contra negros nas redes sociais propõe soluções na luta contra ataques e crimes digitais
Eleita pela ONU como uma das 100 pessoas negras mais influentes do mundo em 2021, Luciana Barreto, âncora da TV Brasil e ex-CNN, foi convidada em 2016 pelo Departamento de Estado dos EUA para visitar um projeto que tinha como objetivo conscientizar sobre a importância da tolerância em escolas do Alabama.
Impressionada com a iniciativa e seus resultados, ela retornou com um desafio: estudar e entender as motivações dos discursos de ódio contra negros nas redes sociais, para no futuro implementar algo similar no Brasil.
Como resultado, transformou sua dissertação de mestrado no livro Discursos de ódio contra negros nas redes sociais (Pallas), que neste ano foi selecionado entre os finalistas do 1º Prêmio Jabuti Acadêmico, na categoria Divulgação Científica.
Em entrevista a este Portal dos Jornalistas e para a coluna J&Cia Livros, de Jornalistas&Cia, ela falou, entre outros assuntos, sobre sua relação com o tema, como lidar com pessoas que fazem ataques e cometem crimes nas redes sociais, a surpresa pela indicação ao Jabuti, o sonho de replicar no Brasil o projeto estadunidense de sucesso e a importância da pressão nas big techs para barrar ataques criminosos digitais.
Portal dos Jornalistas/J&Cia Livros – De onde veio a inspiração para escrever ‘Discursos de ódio’?
Luciana Barreto – Pelo trabalho que realizo, de vez em quando sou convidada por alguns governos para visitá-los e conhecer movimentos sociais em seus países. Este foi o caso em 2016, quando o Departamento de Estado dos Estados Unidos me convidou para ir ao Alabama conhecer o Teaching Tolerance (ensinando tolerância, em português), programa que acabou sendo motivador da minha dissertação de mestrado. O Alabama, vale lembrar, é berço dos direitos civis nos Estados Unidos. Um lugar onde teve muito conflito racial e mortes, e eles tinham essa preocupação com a escalada do ódio. E eu achei incrível a iniciativa, pois ela dava orientação aos professores e alunos, oferecia apoio jurídico e contava inclusive com um museu físico para as pessoas visitarem e conhecerem os momentos de ódio vividos no passado. Então, voltei para o Brasil pensando que a gente deveria ter algo semelhante, mas para isso seria preciso estudar a nossa própria história, até para entender o conceito do discurso de ódio.
PJ/J&Cia Livros – Como foi abordar um tema do qual você certamente também já foi vítima?
Luciana – É claro que para um pesquisador é sempre complicado, pois a gente precisa de um certo distanciamento. Mas, por outro lado, justamente por estar inserida nesse contexto, eu conseguia entender os meandros do discurso de ódio contra negros. Além disso, o que mais me incomodava não eram os ataques que eu sofria, mas sim o que amigas minhas sofriam, principalmente aquelas com a pele mais retinta ou que estavam mais perto do poder, porque estas tendem a ser ainda mais atacadas. Me incomodava ver pessoas que eu admirava, em posição de poder, de repente frágeis por causa de ataques, a maioria deles coordenados. Tudo o que eu queria era entender o objetivo dessas pessoas e que tipo de recurso elas utilizavam para fragilizar as vítimas e assim ajudar minhas amigas a entenderem que eles estavam buscando algo que elas não deveriam entregar.
PJ/J&Cia Livros – Você pretende ampliar esse projeto de alguma forma?
Luciana – Eu gostaria de implantar algo similar ao Teaching Tolerance no Brasil, mantendo as bases de apoio e combate ao ódio. Enquanto a gente não se aprofundar e trabalhar em conjunto com as plataformas digitais, os discursos de ódio tenderão a ficar entre nós, que sofremos com ele, e isso é um problema, porque ele faz muitas vítimas. O discurso de ódio mata. Então, eu tenho muita preocupação com isso. Não desisti de influenciar empresas, grupos, governos, ou seja, alguém que possa fazer algo consistente no combate ao ódio no País.
PJ/J&Cia Livros – Nas primeiras linhas do seu livro você alerta o leitor que, apesar do título, se trata de uma obra de esperança. Passados oito anos desde o início dos seus estudos sobre o tema, período em que houve uma clara escalada de intolerância nas redes sociais, inclusive racial, como anda a sua esperança?
Luciana – Estou com a esperança muito em alta ainda. Acho que a gente atravessou um período muito obscuro na história recente do Brasil. Um período em que as pessoas achavam que, em nome da liberdade de expressão, você poderia cometer crimes, utilizar fake news, matar a reputação das pessoas e levar pessoas a se matarem. A gente viu que foi extremo, mas também viu que temos recursos e uma democracia e instituições fortes para combater esse tipo de atitude, e isso me trouxe muita esperança. Tenho muita esperança nas instituições brasileiras.
PJ/J&Cia Livros – Em que momento você acredita que estamos na abordagem sobre o tema?
Luciana – Eu acho que no da autoproteção, com dois vieses importantes. O primeiro, de como se proteger do odiador, conhecer que tipo de recursos ele utiliza e entender a cabeça dele para nos protegermos. Este ponto, eu acho que está ok. Mas temos o outro lado, muito importante, que é a pressão sobre as big techs, que são muito coniventes com esses odiadores. E neste caso a gente ainda vai ter muita luta pela frente.
PJ/J&Cia Livros – Você aprofunda a discussão sobre a diferença de liberdade de expressão e discurso de ódio. Na sua opinião, a maioria dos casos acontece por ignorância legal ou simplesmente falha de caráter? Dá para separar uma coisa da outra?
Luciana – Há uma forte tentativa de burlar os conceitos e misturar tudo. Liberdade de expressão não te dá o direito de cometer crime de racismo, de homofobia, de ser misógino, de matar a reputação de pessoas, enfim, de cometer fake news. A gente ainda precisa de legislação para tudo isso. Sobre a motivação dos crimes, vejo que ela é estrutural, econômica e social. Crimes que a gente viu, por exemplo, contra a Miss Brasil(*), que eu cito no livro, onde encontramos ataques dizendo “cara de empregadinha. Não era para estar aí”, mostram onde esse odiador acredita que a mulher negra tenha que estar, que é na cozinha, limpando. Por outro lado, também há uma questão econômica, em que ela não pode estar em espaços de poder ou da beleza. Mas eu acho muito ingênuo a gente falar em caráter nessa história, pois muitas dessas pessoas sabem exatamente o que estão fazendo.
PJ/J&Cia Livros – No seu livro, você também apresenta um acompanhamento profundo sobre o crescimento do discurso de ódio contra negros em um âmbito geral. E contra jornalistas negros, qual sua percepção?
Luciana – Já existem pesquisas que mostram que jornalistas mulheres são mais atacadas, seja de maneira misógina, ou atrelando com outros problemas, como gordofobia e racismo. E nessa escalada, as mulheres jornalistas negras são muito mais atacadas. A questão é que quando a gente tenta quantificar isso, há tão poucas mulheres negras no jornalismo que os números gerais acabam não sendo tão significativos. Mas tenho certeza de que, se você relativizar, vai ver que as mulheres negras são muito atacadas, porque aí mistura misoginia e racismo. Tem essa intersecção.
PJ/J&Cia Livros – Você também mostra em ‘Discursos de ódio’ como as políticas de ação afirmativa acabaram resultando em uma escalada nos ataques contra negros nas redes sociais. Traçando um paralelo com o Jornalismo, em que a representação de profissionais negros nas redações é bem inferior ao da população em geral, passamos a ver nos últimos anos uma cobrança por perfis mais diversos no setor. Você acha que esse movimento também gerou ou pode gerar algum tipo de reação negativa entre profissionais do setor?
Luciana – Essa pergunta é bem sensível, porque estamos falando de colegas de trabalho e de profissão. O que eu posso dizer é que somos brasileiros e como brasileiros crescemos nessa estrutura racista. Então, é normal que a gente ainda tenha essa mentalidade, mesmo entre jornalistas, bastante racista, ou talvez com vieses inconscientes. Um exemplo é que ainda hoje a gente tem muito machismo nas redações brasileiras; então, porque não teríamos racismo?
PJ/J&Cia Livros – Qual foi a sensação de ver seu livro entre os finalistas do Jabuti Acadêmico − Divulgação Científica?
Luciana – Curioso que só descobri que a editora havia inscrito meu livro depois que ele foi listado entre os dez semifinalistas. Eu me lembro de que fiquei muito chocada, parada e sem entender o que estava acontecendo. Sei que minha dissertação é boa, é consistente, e pelo fato de ser jornalista eu também tenho facilidade para escrever bem, mas fiquei muito surpresa mesmo assim. E depois, quando ele foi classificado entre os cinco finalistas, ao lado da Marilena Chauí, que depois conquistou o prêmio, fiquei impressionada, me questionando se aquilo estava mesmo acontecendo. Fiquei muito feliz pois deu visibilidade para um tema que é extremamente atual e urgente.
PJ/J&Cia Livros – No final de outubro aconteceu a cerimônia da Bola de Ouro, que para muitos não foi entregue ao Vini Jr. por causa de sua posição firme contra o racismo. Na sua opinião, apesar de necessária, essa é uma luta que ainda traz mais dores e reveses do que resultados positivos?
Luciana – A luta contra o racismo sempre vai ser muito dura pra vítima, especialmente para aquela que ousa falar, se posicionar e constranger o racista. Eu acho que o Vini Jr. é uma pessoa que tem muito poder, muita visibilidade e que não se furta de denunciar e de falar, e isso constrangeu inclusive o continente europeu, especialmente os espanhóis, trazendo muitas mudanças, inclusive de protocolos da Fifa. Ele é gigante. Sim, ele vai sofrer muito, porque assim como esse racista que mira mulheres negras e faz ataques coordenados para tentar paralisar essa vítima, para que ela não tenha avanços profissionais, econômicos e em áreas de poder, acho que é o mesmo objetivo contra o Vini Jr., o de paralisar essa figura competentíssima dentro de campo. Para mim, pessoalmente, também acho que foi um recado que contraria a narrativa constante no esporte, de que ele está lá para jogar futebol e não para denunciar nada. A gente sabe que grandes atletas, atletas que entraram pra história, além das questões técnicas, eram pessoas que se posicionavam em prol dos Direitos Humanos, da democracia e de causas importantes para humanidade.
PJ/J&Cia Livros – Na próxima segunda-feira (11/11) teremos a cerimônia de premiação da segunda edição da eleição dos +Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira, em que você novamente figura entre os homenageados. Qual importância desse tipo de iniciativa para os jornalistas do setor?
Luciana – Esse prêmio, sinceramente, é um golaço. Primeiro, porque é um grande encontro que a gente faz nesse dia. Na edição do ano passado fiquei tão extasiada por estar naquele mesmo espaço com tantas pessoas que lutam bravamente por direitos humanos e contra o racismo no Brasil. Não são profissionais mudos, são profissionais extremamente posicionados e que recebem diariamente todo o tipo de discurso de ódio, lutando as vezes dentro dos próprios setores, enfrentando pautas muito sensíveis sem o menor apoio. Eu conheço algumas dessas histórias, então para mim esse encontro também é um aquilombamento, onde a gente se fortalece mutuamente. Por isso foi um golaço, não só por dar visibilidade ao nosso trabalho, mas, mais que isso, por fortalecer internamente esse grupo e isso pra mim é muito importante.
Sobre Luciana Barreto – Formada em Jornalismo pela PUC-RJ e com mestrado em Relações Étnico-Raciais pelo Cefet-RJ, Luciana Barreto está em sua segunda passagem pela TV Brasil, onde já havia atuado como editora executiva e atualmente é âncora e apresentadora.
Em 25 anos de carreira, passou por GNT, Rádio e TV Bandeirantes, e fez parte do time que lançou em 2020 a CNN Brasil. Com a reportagem Negros no Brasil: brilho e invisibilidade, venceu em 2012 o Prêmio Abdias Nascimento na categoria Televisão. Em 2021 foi eleita pela ONU como uma das 100 pessoas negras mais influentes do mundo, e em 2023 e 2024 foi eleita entre os TOP 50 +Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira.