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domingo, novembro 10, 2024

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Memórias da Redação ? Mensageiro do ar

A história desta semana é novamente uma colaboração de Plínio Vicente da Silva ([email protected]), ex-Estadão, atualmente professor universitário e assessor especial na Prefeitura de Boa Vista, em Roraima. Mensageiro do ar Vivo e trabalho há quase 30 anos numa das regiões mais isoladas do Brasil, o extremo-norte da Amazônia. Quase toda coberta por floresta fechada, dividindo-se entre os alagados ao sul, savana no centro e montanhas ao norte, nas fronteiras com a Guiana e a Venezuela, essa área é tão extensa que há lugares, como as centenas de pequenas vilas e aldeias indígenas, aonde só se chega pelo céu, pelos rios ou por raras trilhas que arremedam estradas. Nos meados de 1987 a grande invasão de garimpeiros em Roraima trouxe ao ex-território federal mais de 50 mil pessoas, que vieram se aventurar nas incontáveis corrutelas abertas no coração da terra dos ianomâmi. Tanta gente vindo e indo fez o espaço aéreo de Boa Vista se transformar num cenário de guerra, pontilhado por centenas de avionetas, como dizem os venezuelanos, cruzando o céu da cidade. Os registros da época apontavam o aeroporto local como um dos três mais movimentados do Brasil, só perdendo para o Galeão e Congonhas. Eram mais de 400 aeronaves estacionadas no pátio e nas manhãs e tardes o intervalo entre decolagens e aterrissagens chegava a ser de pouco mais de dois minutos. Certo dia, num final de setembro, recebi ligação do Centro de Produção, responsável pela coordenação do tráfego entre as redações de Estadão, JT e Agência Estado e as sucursais e correspondentes. Não me lembro de quem era a voz do outro lado que me passou a seguinte mensagem: “Chegou a informação de que garimpeiros mataram índios num lugar chamado Novo Cruzado, aí em Roraima. Mande matéria de 30 linhas, se possível com fotos”. E então veio o pedido, marcado pela falta de conhecimento que muitos brasileiros ainda têm sobre a Amazônia: “Dá pra você pegar o carro, ir até lá e mandar o texto pela escuta até o meio da tarde? Tem algum jeito de transmitir fotos?”. Minha primeira reação foi de riso, mas me contive. Expliquei didaticamente que o local do conflito ficava no vale do rio Paapiú, uma imensa área que abriga várias aldeias indígenas da etnia ianomâmi, a cerca de 450 km de Boa Vista e aonde se chega de avião depois de hora e meia de voo. Cumprir pauta naquelas paragens implica passar por lá um bom tempo, pelo menos uma semana. Então, não bastava descer na pista do Paapiú. Em terra, era preciso depois caminhar ainda por cerca de um dia inteiro por trilhas semiabertas na floresta até chegar a Novo Cruzado, que já nem existe mais. Dependendo de situações como aquela – as notícias davam conta de que estava em curso uma guerra entre índios e garimpeiros – matéria com fotos só depois de uns dez dias, já de volta a Boa Vista. Menos que isso a viagem não compensava. No meio da tarde a Produção voltou a ligar. A Nacional autorizara a viagem de avião e queria matéria especial não só sobre o conflito, mas também mostrando o clima de beligerância que se espalhara pelos garimpos roraimenses nas terras ianomâmi. A recomendação era de que eu viajasse o mais rápido possível. Havia, entretanto, um problema: com a demanda em alta, uma “perna” de avião, como se diz por aqui, estava custando os olhos da cara e eu não tinha dinheiro para bancá-la à vista e depois receber o reembolso. Por isso, só viajaria no dia seguinte, assim que a remessa bancária caísse na minha conta. Minha ideia era me estabelecer na corrutela, ouvir pilotos e garimpeiros e fazer a matéria em cima desses depoimentos. Junto, levaria uma velha Yashica 35 mm, que dava pro gasto. Ainda no meio da tarde um táxi parou em frente à minha casa. Dele desceram um rapaz loiro, olhos azuis, e outro amorenado, cabelos crespos, máquina fotográfica ao ombro. Com sotaque bastante carregado o loiro se apresentou: Paul Murally, inglês, correspondente no Brasil da agência de noticias Reuters; seu companheiro era Wanderley Rodrigues, o fotógrafo. Haviam me localizado por meio da sucursal do Estadão no Rio e vieram me procurar para ajudá-los na cobertura do conflito do Novo Cruzado. A proposta era me levar junto, com todas as despesas pagas. Claro que topei, mas foi aí que cometi um erro: não avisei São Paulo que viajaria com eles naquele mesmo dia. A corrutela do Paapiú parecia uma daquelas cidades do velho oeste americano. A pista servia de rua principal, com oficinas, depósitos de combustíveis e pátio de aeronaves de um lado; armazéns, cantinas e moradias do outro. Atrás desse lado, seguindo as margens do igarapé, ficavam o cabaré e os quartinhos abafados, úmidos e emporcalhados onde mulheres vendiam o corpo nas noites quentes da floresta. Aliás, tudo lá era pago a peso de ouro. Nessa época o grama estava cotado, lá no garimpo, a cerca de 90 cruzados novos. Assim, a noite com uma “prima” custava 10 gramas; churrasco a 5 gramas; prato feito, 2 gramas; latinha de cerveja ou refrigerante, 1 grama. Para minha sorte Paul nos abrigou nas barracas de um acampamento bem montado, construído na cabeceira da pista. Algumas comodidades impensáveis num garimpo faziam a diferença: energia elétrica fornecida por gerador, banheiro com chuveiro quente (uma motobomba puxava a água do igarapé e abastecia o depósito suspenso de dois mil litros), cozinheira, garçonete e refeitório. A estrutura toda pertencia a um nissei, Roberto Nakamura, que também alugava helicópteros. Foi assim que pude fazer belas matérias, indo a vários lugares em voos pelos quais meu amigo inglês pagou US$ 2.000 a hora. Ou seja, no final de uma semana ele já havia bancado cerca de 20 mil dólares em hospedagem e em voos para vários garimpos: Novo Cruzado, Raimundo Nenê, Caveira, Constituição etc., todos na fronteira com a Venezuela. Uma das precauções que se deve tomar ao fazer uma viagem dessas é tentar suprir a total falta de comunicação, pois em muitos lugares o sujeito acaba isolado no meio da selva por vários dias. Assim, já escolado por viagens anteriores, não abri mão de levar na bagagem um radio de pilhas, desses com várias faixas de ondas. Esse tipo de aparelho é companheiro inseparável não só dos garimpeiros, mas também de quem mora nas localidades mais remotas da região amazônica. Certa noite, depois do jantar, enquanto jogávamos cartas entre uma dose e outra de um escocês puro sangue, liguei o radinho para ouvir o Mensageiro do Ar, lendário programa transmitido em ondas curtas pela extinta Rádio Nacional de Roraima, integrante da rede de emissoras oficiais do Governo Federal. Benjamim Monteiro, radialista roraimense tão lendário quanto o programa, começou a ler os bilhetes com as mensagens que recebera naquele dia e num deles pediu: “Atenção jornalista Plínio Vicente, lá na pista do Paapiu. Sua esposa Salete manda dizer que o pessoal do Estadão está ligando de hora em hora atrás da matéria que você prometeu. É pra você voltar imediatamente, pois estão todos preocupados com o seu desaparecimento”. Coincidência ou não, nossa volta estava programada para o dia seguinte. Assim que cheguei em casa, e depois de alguns momentos com a mulher e os filhos, escrevi a matéria, coloquei num envelope junto com alguns fotogramas devidamente identificados que o Wanderley me deu com a recomendação de o jornal não lhe dar crédito. Explicou-me que as fotos da Reuters não podiam ser vendidas dentro do Brasil devido a restrições contratuais. Voltei ao aeroporto e despachei o material. Nessa época não havia em Boa Vista nem telex nem aparelho de telefoto. Exceção aos pequenos textos, transmitidos por telefone, o material mais elaborado era mandado via aérea, em envelopes especiais levados pelos pilotos e deixados nos balcões da Varig ou da Cruzeiro do Sul. Voltei para casa e só então liguei para o Estadão. Disseram-me que Rodrigo Mesquita, diretor da Agência Estado, queria falar comigo. Assim que atendeu ele me deu a maior bronca: “Como você me faz uma coisas dessas? Você lá tem condições físicas para ir embora pro meio da selva fazer matéria de garimpo? Ficou maluco?”. Depois, mais calmo, perguntou: “Afinal, fez as matérias? Conseguiu as fotos?”. Ficou satisfeito com a resposta, elogiou meu profissionalismo, pediu-me que não me arriscasse mais e por fim fez uma última pergunta: “Afinal, como soube, lá no fim do mundo, que estávamos preocupados com o seu sumiço?”. Foi nesse dia que o Mensageiro do Ar mostrou o seu valor e a importância que tem para quem vive isolado no interior da Amazônia. Ainda hoje, nos sete dias da semana, o velho Benja continua anunciando às 10 da noite: “Começa agora o Mensageiro do Ar, voz e ouvidos da Amazônia”. Durante uma hora e meia ele manda seus recados pelas ondas médias, curtas e longas agora da Rádio Roraima, sucessora da Nacional. Nota da Redação – Histórias como essa, que Plínio tem contado neste espaço nos últimos anos, levaram Rosana Zaidan, responsável pelo jornal A Cidade, de Ribeirão Preto (interior de São Paulo, onde ele foi criado), a considerá-lo “boa pauta” para uma entrevista, tarefa que entregou a Sidnei Quartier, contemporâneo de Plínio no Estadão. O resultado, publicado em três páginas na edição do jornal no domingo passado (5/5), você confere no http://migre.me/erVDW. 

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