A história desta semana é sobre um episódio que Nereu Leme ([email protected]), presidente da agência de comunicação Casa da Notícia, viveu na redação da Folha de S.Paulo na década de 1970. Uma bomba caiu no meu colo Na Geral da Folha de S.Paulo, na década de 1970, era difícil fugir das greves, do spray com pimenta da polícia e até mesmo das bombas. Bombas de gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, sem contar a pressão psicológica dos agentes federais. À época, trabalhei muitas vezes de paletó e gravata porque meu chefe dizia que eu precisava estar apresentável quando fosse entrevistar um prefeito ou governador, o que realmente aconteceu muitas vezes. Reunião do sindicato na redação, eu era o único de gravata, sentado bem no meio do grupo. Também cobri muito buraco de rua, polícia, favela e enchentes. Em uma delas, no Vale do Ribeira, estraguei um sapato novinho de camurça, mesmo fazendo muita entrevista de dentro do carro amarelinho da Folha, para não pisar no barro e na água. Fiz matérias marcantes – para mim – de primeira página, página inteira, duas e até de quatro paginas, coisa inimaginável hoje em dia. Lembro-me bem de uma cobertura de greve, chamada de Manifestação da Panela Vazia, na qual donas de casa protestavam na praça da Sé, em frente à Catedral, contra a carestia. Deu-me muita dor de cabeça! No começo foi uma grande curtição. Durante algum tempo, usei uma bolsa tiracolo (oh moda sem graça). A Ana Maria Leopoldo e Silva me lembrou outro dia, que era uma Fiorucci vermelha, argh… Como nas bolsas femininas, nela também cabia de tudo. Na minha primeira cobertura de greve, e era greve pra todo lado, achei uma bomba de gás lacrimogêneo vermelha, bonitinha, da cor da minha bolsa. Guardei a primeira na minha gaveta da redação. Como um verdadeiro estopim, estava aí o início de uma coleção bizarra. Fui juntando. Vermelha, verde, branca, azul, muitas cinzentas na cor e nas manchas da explosão e do gás que emanavam. Bóris Casoy, editor do jornal, se divertia. Quando eu chegava da rua, após mais uma cobertura de greve, perguntava: “Qual é a bomba da coleção de hoje?” Até que um belo dia, na greve das Panelas Vazias, com muitas donas de casa, encontrei uma amarelinha, a mais bonita de todas. Parecia rara e faltava na minha coleção. Ocupado com a cobertura do corre-corre das mulheres, dos policiais e dos jornalistas que – como eu – tentavam fugir das bombas e da fumaça, joguei a bomba dentro da Fiorucci vermelha. Já na redação, a primeira providência foi mostrar o novo troféu ao Bóris. “Nossa Senhora”, disse ele. “Esta bomba está com o prazo de validade vencido”. Pronto! Estava aceso o estopim da bomba que caiu no meu colo. O editor do jornal não teve dúvida. Mandou fotografar a bomba e colocou a foto, com uma legenda, no alto da primeira página: “Polícia Federal usa bombas com prazo vencido, contra mulheres indefesas na praça da Sé”. Jornalisticamente foi ótimo para mim e para o jornal. Abordamos um ângulo diferente das greves. Pessoalmente, foi como se uma bomba – a própria com seu prazo de validade vencido e efeitos inesperados – tivesse caído no meu colo. Logo, a Polícia Federal me convocou para saber onde, como, quando e porque eu conseguira a bomba amarela. Foi uma sucessão de depoimentos na PF de Higienópolis. Primeiro queriam que eu admitisse que algum grevista havia jogado a tal bomba. Depois de vários depoimentos, tentaram me forçar a confessar que eu é que plantara a bomba. Foi uma tortura sem fim. Em todas as “visitas” à PF, Bóris Casoy me acompanhou até a antessala. Ele não podia assistir aos depoimentos. Passado algum tempo, o assunto foi esfriando, as greves diminuindo e pararam de me convocar. Até a nossa própria greve, em 1979. Comecei fazendo piquete na porta da Folha de S.Paulo e depois – sabiamente, como outros colegas – promovemos a troca. Nós, da Folha faríamos piquete na porta do Estadão e vice-versa. Lembro-me de que tentei convencer o agora ex-ministro Miguel Jorge (que foi meu primeiro chefe de Reportagem no Jornal da Tarde e era – então – diretor de Redação de O Estado de S. Paulo) a não entrar para trabalhar. Ele havia sido chamado às pressas de uma viagem que fazia ao Exterior. Argumentou que seu cargo era de confiança e por isso deveria ajudar a colocar o jornal nas bancas. Durante nossa greve, um agente da PF – fazendo-se passar por amigo de um companheiro de profissão – me chamou para um café no bar e me confidenciou – ou tentou me intimidar – dizendo que a minha ficha na PF era quilométrica. Bom, nossa greve não durou, foi infrutífera e a PF finalmente me esqueceu. Joguei as bombas na última gaveta da minha mesa (um arquivo morto), até o dia em que a deputada Ruth Escobar, então presidente de uma associação dos direitos humanos, visitou a redação da Folha. Bóris contou a ela sobre a minha coleção de bombas. Ruth Escobar levou todas para uma apresentação nessa associação e nunca mais as devolveu.