* Por Tão Gomes Pinto ([email protected])
Já era madrugada do dia 31 de março quando o jovem repórter do Notícias Populares chegou à rua Conselheiro Crispiniano, onde ficava o QG do II Exército. Na redação do extinto NP ele fazia matérias para a editoria de Esportes. Ou seja, sobre futebol, assunto que podia atrair leitores de um jornal cujo público-alvo era o chamado “povão”.
A partir do momento em que o redator-chefe Narciso Kalili reuniu toda a redação – cerca de 30 pessoas, era a chamada redação enxuta – e comunicou que todos, a partir daquele momento, estavam cobrindo o golpe de 64, e que a ele caberia a cobertura da área sindical, o jovem repórter ficara excitadíssimo.
Começou fazendo uma checagem no Sindicato dos Gráficos, cuja sede ficava a menos de um quilômetro do pardieiro onde funcionava o NP, no largo do Gasômetro. No sindicato ocorreria um episódio digno de risos. Contarei em outra oportunidade, para não alongar demais este post.
O fato é que, ao tentar falar com a chefia dando conta dos acontecimentos – pelo telefone do chaveiro Zumbano, ali na rua Marconi, pois o celular ainda não fora inventado –, o jovem repórter foi informado por um vigia de que não havia mais ninguém na redação. Kalili decidira fechar mais cedo, com a manchete sobre o golpe em andamento.
Assim, ficamos eu, uma kombi e o motorista sem saber o que fazer. Depois de consultado, o motorista topou continuarmos na cobertura do tal golpe, que àquela altura já provocava tímidas reações na cidade.
Como o episódio da tomada da Telefônica pelo jornalista Nelson Gatto e mais um ou dois parceiros, outro episódio digno de risadas. Depois de um cerco que mobilizou (ou imobilizou) mais de três mil homens, Gatto e cia. saíram do prédio por uma porta dos fundos, que dava para a Galeria Metrópole.
Uma vez acertado que passaríamos a noite atrás de possíveis reações ao tal golpe, o motorista lembrou-se que, à tarde, vira uma movimentação estranha num quartel da Lapa, exatamente onde ficava o Hospital do Exército. Lá eu descobriria que, num golpe, deve ser muito importante a logística. Do ponto onde estávamos, barrados por dois soldadinhos, dava para ver uns 20 ou 30 ônibus da Breda Turismo, em fila, diante do quartel.
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Saímos dali e decidi que devíamos voltar para o centro, onde ficava o QG do II Exército. No caminho, subindo a Abilio Soares, outro bloqueio. Na rua Tutóia ficava o quartel da PE. Aproveitei. Perguntei a um soldadinho:
– O que está acontecendo?
– Não sei –, respondeu. Apenas mandaram que eu viesse para cá.
Finalmente chegamos ao QG. A Conselheiro Crispiniano, também bloqueada por uma corda. Junto dela, um tenente do Exército andava de um lado para outro. Reparei. Estava de capacete e tinha no coldre uma pistola 45.
Aos poucos juntava-se um grupinho de pessoas, gente que saíra dos cinemas ou apenas os notívagos habituais. O tenente aproveitava o pequeno auditório para explicar, gentil e didaticamente:
– No Brasil existem três poderes. O Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Quando um deles extrapola, tenta anular o outro, o Exército tem a obrigação de intervir.
Depois de escutar duas ou três vezes essas “explicações” – e de cogitar em vão tentando descobrir qual poder extrapolara (como eu disse, minha área era o futebol e não a política) –, aproveitei uma distração do tenente, envolvido em algum questionamento por parte de um assim chamado “popular”.
Passei por baixo da corda (que temeridade, meu Deus) e fui me esgueirando junto à parede em direção a um grupo de cavalheiros, todos de terno, que conversavam diante do portão do QG.
Hoje, gato escaldado, jamais cometeria tamanha ousadia. Mas eu era um jovem repórter, deslumbrado por estar cobrindo um golpe…
Aproximei-me, sorrateiro, do grupo. Mas claro, fui detectado no ato:
– Rapaz, o que você tá fazendo aqui?
Antes que eu pudesse responder, o cidadão ordenou:
– Dá o fora ! Paisano aqui não tem vez…
P.S.: Lembro bem da frase… Ele não disse “civil” ou qualquer coisa do gênero. Ele disse “paisano”.
* Tão Gomes Pinto ([email protected]) começou a carreira há mais de 50 anos na Última Hora, integrou as equipes fundadoras de Notícias Populares, Jornal da Tarde, Veja, IstoÉ e Jornal da República, foi articulista de Folha e Estadão, editor-chefe de Manchete e Executive News, diretor da Revista Imprensa, passou pela Comunicação do Governo do Estado de São Paulo e do Ministério da Indústria e Comércio, além de ter sido auditor adjunto da EBC.