Por Jorge Antônio de Barros

Hoje (1º/7/2022) faz 41 anos que comecei no jornalismo. Parece que foi “hontem”. E foi mesmo no século passado, quando a redação do Jornal do Brasil foi desenhada para se parecer com as de grandes jornais americanos, como o The New York Times – quando a redação era tomada pela bruma da fumaça dos cigarros e, ao cair da tarde, o tilintar das máquinas Olivetti Lexicon 80, que virou obra de arte do Moma, expressão máxima do design industrial (Léxico é o conjunto de vocábulos de uma língua, pra quem não ligou o nome à pessoa). Esse barulho das máquinas impregna teu cérebro de uma forma tal que fica impresso nas memórias afetivas de qualquer repórter que o vivenciou.

Quando comecei na escuta do Jornal do Brasil, o telefone e um catálogo de endereços da cidade do Rio de Janeiro eram o suficiente para desvendar locais onde o fato pulsava quente, como acontecia com a notícia no chumbo do linotipo. Havia muito menos áreas cinzas como hoje. Polícia era polícia, bandido era bandido e repórter era repórter.  Nesses 41 anos, vi crimes de todo tipo – e os impunes ainda me indignam –, entrevistei criminosos, policiais, políticos, profissionais liberais, pobres de bens e de espírito, mendigos, homens do povo e das ruas. Testemunhei a eleição, posse e queda de presidentes.

Do primeiro emprego guardo a mania de colecionar crachás (quem não tem?). Afinal, o que é o crachá além do que a nossa vã tentativa de desvendar a própria identidade. O mundo corporativo impõe o crachá como única possibilidade de identidade. Ao longo da vida, muitos de nós buscam romper com o crachá em busca do próprio empreendimento. Em tese, o proprietário não precisa de crachá para dizer ao mundo quem é. Pois, aos 40 anos de jornalismo, livre das corporações, fiz questão de fazer o próprio crachá, como fundador e editor do Quarentena News, uma nova forma de produzir informação por meio das redes sociais. Quatro décadas depois, permanece acesa a chama de ser o foca, que fuça e mantém a bola equilibrada na ponta do nariz. E que assim Deus me ajude. #jornalismodigital #carreira #aniversariodeprofissao #quarentenanews

Uma semana na maior favela da América Latina

Em 17 de agosto de 1987, moradores da Rocinha fecharam a autoestrada Lagoa-Barra, em protesto contra a prisão do traficante Dênis. Eu cobri esse episódio pelo extinto Jornal do Brasil. Naquele mesmo ano, cobri também o assassinato da líder comunitária Maria Helena, na favela, em plena luz do dia. Todo dia estava na favela e na Delegacia de Homicídios, então no Centro do Rio, acompanhando os desdobramentos daquele crime.

Certo dia, durante almoço com a equipe de reportagem, perguntei: “Se estamos vindo todo dia na favela, por que não poderíamos morar aqui por um tempo?”. Os colegas riram, como se dissessem que seria uma missão quase impossível. Apresentei a sugestão de pauta ao então editor de cidade, Manoel Francisco Brito, o Kiko, que a aprovou imediatamente. Ele designou a então subeditora Beth Carvalho a me dar orientações para a melhor execução da pauta.

O passo seguinte foi pedir apoio do líder comunitário Jorge Mamão, um PM reformado do 2° BPM (Botafogo), que me abriu as portas para alugar um quartinho, com banheiro coletivo, na Estrada da Gávea, a principal via que atravessa a favela. Logo no início deixei claro que não me disfarçaria de morador. Eu pressenti que a “infiltração” poderia resultar num risco para a segurança da equipe. Foi apenas uma intuição minha, já que naquela época os bandidos de modo geral não tratavam repórteres como adversários. Muitas vezes eram vistos como aliados, sobretudo nas denúncias de violações de direitos humanos por parte dos agentes públicos, os policiais.

Talvez por isso mesmo a operação de cobertura não teve qualquer preocupação com a segurança da equipe. Numa época em que não existia telefone celular, um esquema mínimo poderia ser combinarmos para que eu ligasse de um orelhão todo dia em determinada hora. Mas confesso que não me ocorreu e nem à redação, afinal era uma experiência inédita na imprensa carioca. Até então apenas uma jornalista havia coberto o dia a dia de uma favela – Lilian Newlands, na Nova Holanda, no Complexo da Maré. Mas ela não havia se mudado para a favela.

Decidimos então – eu, o repórter fotográfico Alcyr Cavalcanti e o motorista Osmar Sombra – viver por uma semana na favela, experiência que resultou na reportagem Rocinha Sociedade Anônima – Como se vive e como se morre na maior favela da América Latina, publicada em fevereiro de 1988 no Caderno B Especial do Jornal do Brasil. Foram sete páginas. No Pasquim, Jaguar escreveu que Zózimo (colunista) ficou cercado de Rocinha por todos os lados. O cartunista me elogiou, dizendo que eu desci o morro com um Prêmio Esso, ao estilo de Octavio Ribeiro, o grande repórter de polícia conhecido como Pena Branca.

Na favela, convivi com os moradores, no dia a dia, de várias classes sociais. Já naqueles anos 1980 a favela era muito estratificada socialmente. Conheci pessoas incríveis, excelentes personagens. Um deles foi o chefe do tráfico, Sérgio Bolado, que me deu uma entrevista pingue-pongue de página inteira, na qual se dizia uma vítima, por ser “obrigado” a viver isolado na favela. “Não posso nem pegar uma praia ali em São Conrado”, lamentava o traficante, que havia sido funcionário de uma farmácia local até optar pela venda de droga ilegal. O título da entrevista: “Nascido para drogar”.

Para chegar a Bolado foi difícil. Nenhum dos meus contatos concordava em me apresentar ao traficante e nem explicavam o porquê. Logo entendi que eles temiam que a matéria prejudicasse o tráfico, eu iria embora e eles ficariam na favela para prestar contas ao dono do morro. Sendo assim, eu e o fotógrafo fomos até a boca de fumo na Rua Dois. Calmamente me apresentei aos rapazes da “contenção”, a segurança da boca, que foram surpreendidos pela iniciativa e sequer nos revistaram.

Mas só fui chegar ao chefe do tráfico depois que nosso carro foi metralhado pelos bandidos, no meio da guerra com o jogo do bicho. Sobrevivemos por um milagre e, como retratação, cobrei a entrevista gravada. Bolado concordou desde que fosse fotografado sem portar a sua mini Uzi israelense, uma arma de guerra.

Memórias da Redação: Quarenta e um anos de jornalismo
Brasileirinho, traficante aos 13 anos

Ali no QG do tráfico conheci Brasileirinho (na foto), um menino traficante de 13 anos, com quem joguei pingue-pongue até que ele se cansasse. Com disparo de pistola para o chão, nos expulsou apenas porque eu jogava melhor que ele. Brasileirinho foi morto pela polícia meses depois. No final daquele ano, a matéria me rendeu meu primeiro Prêmio Esso, em 1988.

Em 2011, cobri, já como editor adjunto do Globo, a operação de retomada do território da Rocinha. Circulei livremente pelas ruas da favela, como um “estrangeiro” já não podia fazer desde os anos 1990.


Memórias da Redação: Quarenta e um anos de jornalismo
Jorge Antônio Barros

A história desta semana é de Jorge Antônio de Barros, que atuou em Jornal do Brasil, O Dia e O Globo. Ganhou três prêmios Esso, dois deles sozinho (1988 e 1994) e outro em equipe (1986). Ex-diretor de comunicação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio, ganhou o Dom Quixote, da Justiça, e foi por duas vezes homenageado pelo Disque-Denúncia. É membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e um dos fundadores da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Especializado na cobertura de segurança pública com viés em defesa de direitos humanos, criou o blog Repórter de Crime, um dos mais lidos do site do Globo até 2012. Hoje edita o Quarentena News.

Nosso estoque do Memórias da Redação continua baixo. Se você tem alguma história de redação interessante para contar mande para [email protected].

0 0 votes
Article Rating
Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments