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sábado, novembro 23, 2024

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Memórias da redação ? Desbaratino

A história desta semana é de outro estreante no espaço: Ubirajara (Moreira da Silva) Júnior ([email protected]), que teve passagens por Folha de S.Paulo, Diário Popular, TV Globo, SBT, TV e Rádio Gazeta, Assessoria de Comunicação da Autolatina e Secretaria de Esportes e Turismo de São Paulo; também foi professor da Universidade Braz Cubas, em Mogi das Cruzes. Atua no jornalismo científico em Brasília há 17 anos; hoje, é coordenador de Comunicação Social da Agência Espacial Brasileira (AEB).  Desbaratino (*) Por mais que reflita sobre o assunto, até hoje não cheguei à conclusão se minha atitude, passados mais de 35 anos, deve ser classificada como audaciosa ou insana. Também, por mais que puxe pela memória, não consigo recordar se o fato ocorreu em 1978 ou 79. A verdade é que não havia completado meu primeiro quinquênio como jornalista profissional, portanto, ainda enquadrado na categoria foca. No meu tempo de Universidade ainda era recorrente nos cursos de Comunicação Social a recomendação de que “se não passar pela editoria de Polícia o repórter não será completo”. Então, estava, por assim dizer, fazendo a complementação do bacharelado, integrando a equipe de repórteres da editoria de Polícia da Agência Folhas. O chefe era o saudoso Hely Vanini de Araújo, que comandava, quando cheguei, um grupo formado por algumas das feras da época: Afanásio Jazadji (que depois se elegeu deputado estadual), Celso Sávio (Paçoca), Zaqueu Sofia, Roberto Moschela, o também saudoso José Luis Ribeiro (Zé do Caixão) e Sílvio Lincoln, a quem mantenho grata reverência pelo muito que me ensinou. Sob o comando do Hely passaram depois também Koichiro Matsuo (hoje empresário), Marco Antônio Zanfra, atualmente em Florianópolis, Fleury Tavares (Peninha), Assis Ângelo, Leiva Filho (já falecido), Valmir Salaro e Oswaldo Faustino, que são os de que me recordo. Na época, atravessávamos uma fase cinzentíssima da ditadura militar e não era nada fácil trabalhar. A pancadaria corria solta nas dependências policiais, corrupção nadava de braçada, denunciar falcatruas, deslize de conduta, era bastante temerário e complicado, até porque a relação entre repórteres do setor e policiais não era a recomendada para um convento, e a tensão entre PM e Polícia Civil andava à beira do abismo com os olhos vendados. Era uma fase de fartura para o noticiário policial. Foi um período muito profícuo para minha carreira. Confesso que palmilhava o caminho com as orelhas bem murchas e olhos bem abertos, pois trafegava entre grandes e renomados profissionais, como, por exemplo, Renato Lombardi, Percival de Souza, Sílvio Nunes (Spaghetti), João Bussab, Nelson Cioli, Ari de Moraes Possato (Napoleão), Inajar de Souza, Dirceu Alves, Fausto Macedo, Gil Gomes e Antônio Carlos Fon, meu ídolo até hoje. Certo dia estava na redação garimpando uma pauta para o período da tarde quando o telefonema de um informante avisa que rolava o maior barraco entre PMs e investigadores no 26º Distrito Policial, no bairro do Sacomã, na Zona Sul. Apensada na dica veio à advertência: a delegacia estava cercada, pois a PM não queria nem pensar na possibilidade da imprensa se aproximar ou tomar conhecimento dos fatos. Um PM de folga havia sido flagrado furtando objetos no quintal de uma casa. Preso por policiais civis, recorreu aos companheiros de farda e a situação ficou mais tensa do que troca de prisioneiros entre israelenses e palestinos. Acompanhado de um fotógrafo, que também não me recordo mais quem era, fui para a delegacia. Como naquele tempo os fuscas (amarelinhos) da Folha eram identificados facilmente até por deficientes visuais, paramos um quarteirão antes e combinei com o colega que iria a pé e sozinho. Tentaria entrar na delegacia e caso não retornasse dentro de uns 40 minutos ele deveria recorrer à chefia na redação, pois era bem provável que não tinha me dado bem. Assim que avistei o distrito percebi que seria complicadíssimo entrar. Era um mar de PMs portando lurdinhas (mestralhadoras) e calibres 12, misturados a tiras (investigadores) com rifles, 38s e pistolas automáticas na mão. Como atravessar aquela praça de guerra na qual alguns populares se arriscavam a perambular com cara de curiosidade? Parei num bar e pedi um café enquanto pensava em alguma estratégia. Jamais poderia tentar varar aquele cerco com o maço de laudas para anotação à vista. Então, fiz um canudo grosso com as folhas e enfiei na cinta por baixo da camisa, deixando à mostra um volume, como se estivesse portando uma arma na cintura. Fui me aproximando da delegacia. Quando estava a uma distância que já dava para distinguir bem o semblante dos PMs meu coração acelerou, pois os olhares que me eram dirigidos fariam gelar urso polar. Todos, sem exceção, olhavam para o volume na minha cintura e me encaravam, afinal seria mais um tira chegando. Sem encarar ninguém fui passando entre fardados e civis, cumprimentando a estes com leve balançar de cabeça. Os “colegas” também olhavam para a “arma” debaixo da camisa e retribuíam a discreta saudação. Entrei no distrito e vi que o angu de caroço não estava sendo cozido no plantão, mas no primeiro andar, na chefia dos investigadores. Na subida da escada tive que passar por outro corredor polonês formado por PMs, que rosnavam deixando escapar ameaças contra os tiras. Ali, confesso, fiquei temeroso e me perguntando se não havia feito a maior burrada da carreira até então. No corredor estreito do primeiro andar era difícil se locomover, tal a quantidade de paisanos e fardados. Fui me esgueirando entre o burburinho até faltar meia dúzia de passos para alcançar a porta da sala onde se decidia se haveria ou não lavratura de flagrante. Nesse ponto havia um paredão fardado e avaliei que seria suicídio tentar mais um passo, até porque os olhares a mim dirigidos aniquilaram os últimos vestígios de audácia que ainda pudesse ter. Do interior da sala vazava para o corredor um falatório do qual procurei gravar mentalmente o máximo de informações. Depois, me aproximei de um grupo de investigadores e comecei a indagar sobre os fatos. O que foi mesmo que aconteceu? Sabiam o local exato? O que o PM havia furtado? Quem chamou os tiras? O mais complicado era memorizar tudo sem poder fazer uma única anotação. Acho que exagerei nos questionamentos e detalhes, porque, em dado momento, um investigador me olhou desconfiado e perguntou. – De que delegacia você é? – Não sou de nenhuma –, respondi, o mais discreto que pude. – De onde é então? Corregedoria? – Não. Sou repórter da Folha –, respondi, o mais baixo possível. Todos os olhares do grupo se voltaram na minha direção e fiz a cara de paisagem mais boçal que consegui até hoje. Os policiais, embora avaliando que estava ali como um aliado e que minha presença era positiva para o interesse deles, me aconselharam a sair o mais rápido e discreto que pudesse. Se algum “adversário” apenas sonhasse que eu era jornalista seria muito difícil me proteger, porque o caldo já tinha atingido o máximo de fervura. Nem me despedi. Olhei o relógio e vi que os meus 40 minutos estavam praticamente se esgotando. Sai da delegacia procurando aparentar o mais calmo “não estou nem ai” possível, apesar do quadro de zoopsia reinante na portaria. Só após virar na primeira esquina, que me pareceu estar a quilômetros, é que retirei a “arma” da cintura, respirei ultra-aliviado e fiz ligeiras anotações. O fotógrafo ainda perguntou se dava para tirar umas fotos à distância. Achei mais prudente esquecer a proposta, pois já havia esgotado todo o meu estoque de sorte do semestre ou do ano. No dia seguinte, o Grupo Folhas foi o único a dar a notícia com detalhes, fato que desagradou bastante a Comunicação Social da PM, que ligou para o chefe Hely para reclamar e indagar quem era o solerte repórter que apurara os fatos. Ele, lógico, nunca contou a ninguém. E eu só o faço agora. (*) Gíria que nos anos 1970 significava, entre outras coisas, fazer-se de bobo, agir como João sem braço, fazer de conta que não é consigo etc.

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