A história desta semana é uma nova colaboração de Ubirajara (Moreira da Silva) Júnior ([email protected]), que teve passagens por Folha de S.Paulo, Diário Popular, TV Globo, SBT, TV e Rádio Gazeta, Assessoria de Comunicação da Autolatina e Secretaria de Esportes e Turismo de São Paulo; também foi professor da Universidade Braz Cubas, em Mogi das Cruzes. Atua no jornalismo científico em Brasília há 17 anos; hoje, é coordenador de Comunicação Social da Agência Espacial Brasileira (AEB). Efeito colateral Nos anos 80 do milênio passado estava na TV Globo de São Paulo, funcionando à época num carcomido sobrado cinza na praça Marechal Deodoro, bem em frente da atual estação do metrô, cujo nome não poderia ser outro que não o do velho marechal republicano. Era um local insalubre, situação infausta, que a reunião de uma boa quantidade de pessoas sangue bom ajudava a suportar. Entre elas estava o Herivelto, um caboclão que trabalhava no setor de reprografia. Muito prestativo, praticamente desconhecia a palavra não. Sempre que sobrava um tempinho ia até seu setor para jogar um pouco de conversa fora. Gostava de conversar com ele, que sempre tinha interesse em absorver o conhecimento e a experiência de vida dos mais velhos. Ele também tinha curiosidade de saber dos colegas, principalmente dos casados, de quais estratégias lançavam mão para driblar suas companheiras para puladas de cerca. Era pura curiosidade, pois confessava ser incapaz de adotar qualquer dos estratagemas apresentados, não por santa fidelidade, mas por “puro medo da patroa”. Segundo ele, sua mulher era uma fera. Tal qual um inquisidor do Santo Ofício, tinha tolerância zero diante da menor desconfiança de infidelidade. Por mais banal que fosse a suspeita, apresentava uma coleção de ameaças, começando pela famosa “coloco você no olho da rua com a mala de roupa e aqui você não entra nunca mais”. Levava tão a sério as advertências que as via como a Espada de Dâmocles, que morria de preocupação em se meter em qualquer situação que pudesse suscitar o mais leve malentendido por parte da esposa. Assim, não adiantava convidá-lo para uma simples amenidade que significasse chegar em casa fora do horário habitual. Se surgia um imprevisto que exigisse esticar o trabalho além do horário, sua primeira preocupação era ligar para casa. Além de informar sobre o fato ainda fornecia o telefone do superior ou de quem estivesse na Chefia de Redação para que a esposa checasse a informação caso quisesse. Que me lembre, a mulher nunca checou, aceitando os contatos como garantia e confiando em suas reiteradas advertências. Mas, algumas vezes, ligou para conferir se ele ainda estava no trabalho, ou apareceu sem avisar para se certificar da tal necessidade da hora extra. Na época eu tinha amizade com um dos sócios do Motel Fantasy, que ficava na região de Interlagos, Zona Sul da cidade. Certo dia o amigo me perguntou se poderia levar sua mulher para conhecer as dependências da Globo, pois ela tinha curiosidade em conhecer as instalações de uma emissora de televisão e ver o estúdio do programa TV Mulher. No dia combinado o casal compareceu e lhes mostrei praticamente o prédio todo. Como cortesia, meu amigo deixou uma dúzia de kits que eram dados aos clientes do motel contendo aquelas coisas que praticamente são as mesmas até hoje: pente, escova de dente, creme dental, toca de banho, sampo, condicionador etc.. Um dos kits ofereci para o Herivelto, que recusou com a mesma ênfase que Drácula recusaria um crucifixo de presente. Insisti, alegando não ter nada de mais e que poderia usar em casa, além de aproveitar o estojo para carregar pequenos acessórios, uma vez que era feito de material resistente e sem identificação do estabelecimento. Não consegui convencê-lo, mas resolvi guardar um exemplar do brinde. Dias depois voltei a insistir para que ficasse com o kit, pois percebi que, apesar da ferrenha recusa, ele ficara interessado. Foram necessárias mais do que as duas investidas para que finalmente aceitasse o kit, pois o convenci a repassá-lo para outra pessoa. Durante um bom tempo ele guardou o kit em sua gaveta de trabalho até que um dia me contou que já tinha para quem dar. Era um amigo que trabalhava em outra emissora com quem tinha conseguido junto à esposa um alvará-permissão para participar de uma pelada de fim de semana. Foi ai que a Lei de Murphy se fez valer mais uma vez. Empolgados com a conquista do time deles no minitorneio disputado, que rendeu uma boa cervejada aos atletas, Herivelto e o amigo se esqueceram do kit, que ficou no porta-luvas do carro até que foi encontrado pela esposa dias depois. “Quando dobrei a esquina de casa avistei minha mulher no portão com a cara mais fechada que já tinha visto desde que a conhecera”, contou ele. Tinha tanta fúria nos olhos que, “mesmo distante dava para sentir a agulhada das chispas que soltava”. Sabia que tinha ocorrido alguma merda, que a situação era gravíssima, sendo o único consolo não ver sua mala na calçada. Naquele tempo não existiam computadores, mas Herivelto passou a rodar o disco rígido do cérebro em busca de qualquer vestígio de informação que pudesse ajudar a identificar qual deslize tinha cometido. A barafunda de pensamentos a serem esmiuçados era muito superior ao espaço que tinha entre a esquina e sua casa. “Meu coração quase saiu pela boca quando cheguei perto e ela retirou as mãos das costas segurando o kit do motel”. A mulher estava possessa, contou ele. “Estava com tanta raiva que fazia duas, três perguntas de uma vez e não aceitava nem a introdução das respostas”, me contou relembrando a situação de pânico. Segundo sua mulher, sua mala só não estava prontinha ali no portão porque a descoberta fatídica havia ocorrido havia menos de meia hora, quando ela retornava de carro de uma pequena compra no supermercado. Quando finalmente Herivelto conseguiu emitir um argumento com princípio, meio e fim, disse que o kit fora um presente meu, que por sua vez havia recebido de um dos donos do motel em visita à tevê. Herivelto me disse que não obteve permissão para entrar em casa e teve que voltar ao trabalho para que a mulher tirasse a limpo aquela história. “Pelo caminho”, me disse ele, “rezava para que você não tivesse ido embora, caso contrário teria que procurá-lo em casa, pois só o seu testemunho garantiria que eu voltaria a dormir na minha cama”. Quando o casal entrou em minha sala de trabalho com a mulher segurando o pomo de discórdia só não cai na gargalhada em consideração ao colega, ainda lívido e com expressão de socorro no olhar. Esclareci a situação detalhadamente e para dissipar totalmente a menor sobra de dúvida e chancelar a argumentação mostrei uns dois kits que ainda tinha guardado. Para afastar todo e qualquer resquício de um cartão vermelho ainda reforcei que o Herivelto havia recusado veementemente o brinde e que só estava com ele porque eu havia pedido que o repassasse ao colega em comum, que eu só conhecia por telefone. Pensei que perderia a amizade do Herivelto, afinal tinha parte da culpa no quase rompimento de seu casamento. Mas para minha surpresa, no dia seguinte me chamou para conversar e segredou que o ocorrido tivera até um efeito colateral. “Voltei para casa falando mais grosso e dizendo que não aceitaria mais a situação de viver sob eterna desconfiança, afinal tinha comprovado minha total fidelidade”. Como diz o surrado adágio popular: há males que vêm para o bem.