A história desta semana é uma colaboração de Flávio Tiné, ex-Abril, Estadão e Diário do Grande ABC, assessor de imprensa do Hospital das Clínicas de São Paulo durante 21 anos, que hoje atua como escritor e cronista de Jornal do Commercio do Recife e revista Medicina Social de São Paulo. Solidão experimental Um dos maiores problemas das cidades grandes é a solidão. Quanto maior a cidade, maior o isolamento das pessoas de todas as idades, principalmente as idosas, cujos filhos ou parentes partiram em busca de suas próprias vidas. Os filhos casam, os parceiros viajam antes do tempo normal, ocorrem divórcios e separações pelo desgaste dos relacionamentos, e assim por diante. Percebendo ou não, sofrendo ou não, um dia a gente se surpreende morando só. Todos conhecem as vantagens e desvantagens da solidão. A liberdade, o direito de escolher o livro, o programa de televisão, o filme, o que fazer nas horas vagas, sem o inconveniente de outras pessoas exercendo também o mesmo direito, num mesmo ambiente, atrapalhando nosso desfrute. As desvantagens são incontáveis, talvez em maior número. Não ter com quem dividir os sentimentos é o mais premente. Tenho uma vizinha mais solitária do que eu. Não tem carro, não vai ao cinema, não discute futebol, não vai sequer à missa, como eu. Identifico-me com ela quando abro ou fecho a janela, ligo ou desligo a televisão, acendo ou apago a luz do banheiro, abro ou fecho a janela para espiar os que desfilam no passeio que divide os prédios. Quando percebo, é um horror. Sinto-me a mais infeliz das criaturas, tendo que repetir gestos de uma idosa de oitenta anos, tão solitária quanto eu. Certa vez ela me contou que passou o dia inteiro preparando uma sopa especial que uma das filhas apreciava. Foi ao mercadinho, comprou todos os ingredientes, caprichou no tempero, e ela não veio. Teve de tomar a sopa no jantar e no almoço e ainda me trouxe uma porção, para não jogar fora, e dividiu com os gatos, que proliferam entre os prédios em notívagos miados. Eu, pelo menos, ainda dirijo e quando quero vou à casa dos filhos, ao cinema, às livrarias e até ao Sesc, onde ocorre a maior concentração de idosos no exercício de um lazer programado. Só me recuso a ir às praças onde alguns homens jogam dama ou baralho. Prefiro os cafés, onde além de saborear uma iguaria, pode-se jogar conversa fora com alguma classe, dependendo do interlocutor. Minha vizinha solitária não reclama de quase nada, exceto do calor, quando faz, ou do frio, quando incomoda. Nunca está mal-humorada. Sempre que o telefone toca lembro-me do personagem de Gabriel Garcia Marquez em Ninguém escreve ao coronel, que li e reli tentando buscar similitudes. Não achei nenhuma, ainda. Ele se queixava da falta de cartas. Ia aos Correios diariamente perguntar se não chegou alguma. Quase todo dia recebo holerites, multas de trânsito, pedidos de ajuda, cobranças indevidas e folhetos de pizzas as mais variadas. Daria pra viver o resto da vida sem sair de casa, só comprando por telefone e pagando com cheque ou cartão. Uma colega de trabalho me relatou que o maior sonho de sua vida seria alugar alguns filmes e passar uns três dias em casa. Marido e filha não permitem. Fiz a experiência, ou melhor, tentei. Uma coisa é ver um filme no cinema, em casa não tem graça. E quando tentei a solidão experimental, permanecendo um fim de semana em casa, foi também a pior experiência. Caiu de vez a tese que tentava defender de que a gente pode viver bem, sem depender de ninguém. Na verdade, a solidão é boa em algumas circunstâncias, ruim em outras. Num determinado momento pode ser conveniente, mas já me convenci de que não deve ser adotada como estilo de vida.