Esta semana voltamos a contar com uma história de Igor Ribeiro, que foi, entre outros, repórter de Folha de S.Paulo e Estadão, editor da revista Imprensa e do Jornalistas&Cia, e atualmente edita Mídia no Meio & Mensagem. Uma pífia carta de vinhos Antes dos aplicativos para smartphones, o Guia da Folha costumava ser uma das principais agendas culturais da capital paulista, rivalizando com a Vejinha. Sem desmerecer, ele ainda é uma baita referência, mas dez anos atrás não havia nenhum conceito parecido com smartphone e mesmo os guias de internet não prestavam muito. Em 2003 tive o privilégio de trabalhar com uma turma muito boa no suplemento semanal (*). Uma redação jovem, talentosa e cheia de vontade. A integração era ótima e ultrapassava os limites do prédio na Barão de Limeira. Como bons amigos que éramos, as pegadinhas corriam soltas, os famosos trotes do Guia. Tratava-se de uma tradição sem vítima específica, embora os novatos atraíssem certa predileção. Claro, eu também caí numa, a do “disque lide”, nos meus primeiros meses de Guia. Feito para usar no bolso ou na bolsa, a revista tem um formato pequeno, no qual não cabe muito texto. A gente tinha que escrever de forma direta, enxuta, e essa prática dificultava, depois de certo tempo, a criação de um lide muito original, algo bacana, que já não tivesse sido feito antes. Às vezes, simplesmente faltava aquele estalo inicial que daria vazão ao texto todo. Ou ainda era só preciosismo demais mesmo, ao querer inventar firulas para cada texto sobre uma nova hamburgueria. Certa vez, compartilhei com os amigos um dos meus brancos de texto. De imediato, Sandro Macedo, então responsável pelos roteiros de cinema e hoje no caderno de esportes, sugeriu que ligasse para certo ramal. Era o Disque-Lide. Achei estranho, mas a Folha sempre foi conhecida por certos traquejos corporativos que não se acham em outros jornais. Liguei e quem atendeu foi Thaís Nicoleti, consultora de língua portuguesa do grupo. “Não, eu não vou te dar ideias, mas posso te ajudar com alguma dúvida de português ou do manual”, ela disse, entre risos. Eu não devia ser o primeiro a cair no trote do Disque-Lide, que depois descobri ser uma armação comum do Sandro com Tereza Novaes, que estava de editora interina quando cheguei ao Guia. Adriana Küchler foi outra vítima das pegadinhas. Hoje ela é uma sagaz repórter da revista Serafina, mas em meados de 2005 era uma caloura de Guia da Folha. Uma rápida análise de perfil a elegeu vítima potencial do trote do “Ataque Hacker”. Consistia em se aproveitar da formatação das baias na redação para fazer a repórter pensar que sua máquina estava sendo invadida por terceiros. Explico: os computadores, aqueles beges com monitores enormes e entrada para disquete, ficavam em bancadas que se encontravam num “X”, com cada terminal numa das quinas. A gente simplesmente trocava os cabos e plugues dos teclados e mouses do computador da vítima com o do lado oposto – o terminal do editor de Arte Rodrigo Buldrini, hoje diretor na Época Negócios. Num primeiro momento, Adri não conseguiu mexer o cursor após ligar o computador. Depois ficou louco, rodopiando pela tela aleatoriamente – controlado, do outro lado, pelo mouse do Buldrini, que se contorcia para segurar a risada. Aflita, a moça pediu ajuda aos colegas que, mui solícitos, foram “examinar” a máquina, enquanto em segredo destrocavam o cabo do mouse; o do teclado continuava invertido. Aconselharam, como hoje ainda se sugere em panes variadas, que ela reiniciasse o computador. PC ressuscitado (o tecnológico, não o tesoureiro), Adri achou que havia reconquistado o controle da máquina, já que o mouse a obedecia. Ao clicar no espaço destinado ao login, porém, nada respondeu às primeiras batidas sobre as teclas. Depois, apareceram no espaço três pontinhos: –… Adri arregalou os olhos e balbuciou “Meu Deus…”. Buldrini passou a digitar, pausada e secretamente, a seguinte mensagem: – a t a q u e h a c k e r E depois disparou a digitar: – ataque hacker ataque hacker ataque hacker ataque hacker ataque hacker ataque hacker ataque hacker ataque… Aproveitou-se da informação de que Adri então aniversariava para finalizar com: – feliz aniversário!!! Adri, branca de susto, desligou o computador, chamou o helpdesk e passou a brandir: “Ele sabe quem eu sou! Ele sabe quem eu sou!”. Se não me engano, Luciano Arnold, também da Arte, ficou impassível e segurou o trote mesmo na presença do técnico que, inicialmente, achou tudo estranho, não entendeu, disse que tinha de trocar o teclado. Naquela altura, Buldrini estava na varanda do oitavo andar recuperando o fôlego… Outro trote foi ideia minha e envolveu um veterano da casa. Às 2as.feiras, eu tinha costume de levar dezenas de Dadinhos para reunião de pauta. (Observação às novas gerações: Dadinho, aqui, tem nada a ver com aquele objeto de jogo de sorte ou com algum toy art em homenagem ao personagem de Cidade de Deus; era um docinho clássico, feito à base de amendoim.) Geralmente os comprava no Péssimo, apelido carinhoso que dávamos ao restaurante do décimo andar da Folha. Durante as reuniões, Rogério Canella, editor de Fotografia do Núcleo de Revistas, costumava detonar as balas em prazo recorde, restando poucas para adoçar o encontro, que demorava um pouco. Apesar do alerta reincidente para que Canella não fosse à forra com os Dadinhos e deixasse um pouco para a geral, raramente ele levava a gente a sério. Um dia notei que o Dadinho era muito parecido, em cor e consistência, com um tablete de caldo de galinha. Com a ajuda de Buldrini e Sandro, substituímos uns três pacotinhos por tabletes e os deixamos estrategicamente próximos à posição do Canella na mesa de reuniões. Exceto o editor de foto, todo mundo foi devidamente avisado que havia balas “batizadas” e que esperasse o bote do Canella. Não foi no primeiro, no segundo, nem no terceiro docinho… Estava difícil se concentrar na reunião enquanto se disfarçava a ansiedade pela reação do Canella que, inadvertidamente, continuava a ouvir as pautas, atento a quais poderiam render boas fotos. Foi só na quarta bala que Canella, com uma careta, falou: – Que merda é isso aqui? Todo mundo gargalhou e eu, entre engasgos, disse que era para ele aprender a deixar os Dadinhos para os amigos. Canella não viu graça e ficou chateado uma semana comigo. A terceira pegadinha era mais elaborada e foi capitaneada por Sandro Macedo e Rodrigo Buldrini, envolvendo colaborações de diversas partes, incluindo Adriana Ferreira Silva (atual Veja São Paulo) e Beatriz Peres (hoje no Fantástico). Tratava-se de um golpe sofisticado, gestado havia muitos meses, a espera das férias de Giuliana Bastos, atual editora da revista Espresso, que à época era crítica gastronômica e responsável pelo roteiro de restaurantes do Guia. Mais que isso, Giu era uma feroz guardiã da seção. Ela não só visitava restaurantes para tecer análises rigorosas (ainda que muito justas), mas também cuidava para que se publicasse só as casas merecedoras de bons gourmets – como eram muitas, havia uma escala de listas cuja engenhosidade era de provocar inveja em plantonista de hospital. Giu repartia seu zelo com o crítico oficial da Folha, Josimar Melo, que assinava uma coluna no Guia. Muitas vezes Giu coincidia seu almoço com alguma avaliação, mas quando o ritmo apertava, ela almoçava com a plebe no famoso Transa, apelido do restaurante pé-sujo que ficava (fica?) atrás da Folha, cujo nome oficial era (é?) Leão da Barão. A gente costumava brincar que ela deveria resenhar o Transa no Guia, avaliando seu criativo estrogonofe, que substituía champignon por palmito, ou o fornido bife a parmegiana, que bem alimentava dois padecentes de cirurgia bariátrica. Cada vez que a gente levantava aquela bola, Giu ria e emendava um “não viaja”. Naturalmente, o Transa não era digno do Guia, apesar de merecer a nossa visita semanal. Mas bastou que Giu pisasse fora da redação para seu mês de férias para começarmos a articular um aguardado plano de produzir uma crítica falsa do Transa assinada por Josimar Melo. Nos esforçamos com primor na missão. Tiramos uma foto do ambiente do restaurante com gente no salão, como mandava a cartilha de nossas visitas. Analisamos duas entradas, três pratos principais e duas sobremesas. Cometemos, propositadamente, alguns erros localizados, como os faria qualquer jornalista apressado, devidamente destacados por uma revisão fictícia. No texto, aliás, abusamos do rococó estilístico do gênero, que encontrava palavras ainda mais peculiares no vocabulário do Josimar (e aqui vai uma lista meramente ilustrativa, pois não guardei cópia daquela página): “o prato, pasmem, não estava quente”, “o recheio do bolinho era imaginativo, porém confuso”, “a carta de vinhos era pífia”, “o pudim saboroso e vaporoso” etc.. Claro, demos bola preta para o Transa, a pior avaliação possível. Avisamos a todos sobre a farsa e deixamos o print falso sobre o teclado da Giu em meio a outros “reais”, com anotações de revisão e edição. Quando ela voltou, Bia, então editora do Guia, logo pediu que ela dessa uma olhada nas páginas da próxima edição e batesse as emendas com a Arte. Assim que viu a página enganosa, Giuliana fez uma cara de desgosto, mas não esboçou comentário sobre o fato de o crítico da Folha avaliar o pé-sujo da rua de trás. Olhou mais atentamente e, desconsolada, só conseguiu dizer uma coisa: – Não bastasse o Josimar resenhar o Transa, você ainda tinha que sair na foto, Igor? A redação veio abaixo. (*) Folha de S.Paulo, dezembro de 2003: Naief Haddad, Tereza Novaes, Adriana Ferreira Silva (hoje em Veja SP), Beatriz Peres (O Globo), Giuliana Bastos (Café Editora), Rodrigo Buldrini (Época Negócios), Emiliano Urbim (editor da Superinteressante), Rogério Canella e Suzana Singer.