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sábado, novembro 23, 2024

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No encalço do “pássaro grande”

Em entrevista especial a este Portal dos Jornalistas, Helle Alves relembra o furo que mudaria para sempre sua vida.

Há 50 anos, a repórter Helle Alves dava as costas a uma cobertura convencional e apostava naquela que seria a grande obra da sua carreira, a comprovação da morte do líder revolucionário Ernesto “Che” Guevara

 

Por Dario Palhares (*), especial para Jornalistas&Cia e Portal dos Jornalistas

Mineira de Itanhandu, Helle Alves é a repórter dos sonhos de todo e qualquer editor e pauteiro que se preze. Inquieta e fuçadora, ela sempre apresentava saborosas histórias para seus chefes no Diário da Noite, publicado em São Paulo pelos Diários Associados.

Entre outros trabalhos, produziu algumas das primeiras reportagens do País a tratar a prostituição pelo viés social, denunciou a opressão às mulheres casadas, que só puderam trabalhar fora de casa sem a autorização por escrito dos maridos a partir de 1962, e desmascarou o líder de uma quadrilha de pedófilos endinheirados da Pauliceia, que acabou se atirando de um prédio. “Eu gostava da editoria de geral, onde não havia rotina. Cheguei até a chefiar a equipe durante um ano, mas fiquei feliz quando retornei para a reportagem”, diz ela, às vésperas de comemorar, em 7 de dezembro, seu 91o aniversário.

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Outra de suas preferências eram longas viagens. Com a sua Olivetti portátil a tiracolo, conheceu o Parque Nacional do Xingu, na companhia dos irmãos Cláudio e Orlando Villas-Boas, voou a bordo de aviões do Correio Aéreo Nacional (CAN), que prestavam assistência a populações isoladas na Amazônia e no Centro-Oeste, e partiu, sem arrumar as malas, para fazer a cobertura, no Ceará, da morte do marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (1897-1967), primeiro chefe de Estado da ditadura militar, episódio que ela considera misterioso.

“Em nosso trabalho levantamos sérias suspeitas de que o acidente aéreo que matou Castelo Branco tinha sido tramado. O ex-presidente estava sendo perseguido pela chamada ala ‘linha dura’ do presidente Costa e Silva, a quem não havia apoiado”, escreveu Helle em Eu vi (Editora Nhambiquara, 2012).

O faro apurado para notícias, o texto preciso e o gosto por cair na estrada pesaram a favor da repórter na escolha da equipe dos Associados encarregada de acompanhar, em outubro de 1967, um acontecimento internacional: o julgamento, na Bolívia, do filósofo francês Regis Debray, preso seis meses antes sob a acusação de participar do movimento guerrilheiro comandado pelo argentino Ernesto “Che” Guevara de la Serna, que tinha por grande meta semear a revolução socialista em toda a América do Sul.

No início daquele mês, Helle, o fotógrafo Antonio Moura e o cinegrafista Walter Gianello, da TV Tupi, foram enviados a Santa Cruz de la Sierra, na planície do leste boliviano. De lá, o trio teria de seguir viagem rumo a Camiri, situada 300 quilômetros ao sul, onde Debray responderia ao tribunal. “O julgamento atraiu cerca de 200 jornalistas de vários países. Para mim, no entanto, era um trabalho mais ou menos comum”, comenta ela.

Helle Alves, Walter Gianello e Antonio Moura

Não demorou muito para que a repórter percebesse que a grande notícia não estava em Camiri, e sim nos arredores de Vallegrande, 240 quilômetros a sudoeste, onde os guerilheiros trocavam balas com o exército local. Logo após a sua chegada a Santa Cruz de La Sierra, Helle constatou, em contatos com militares bolivianos, que a guerrilha e Che Guevara estavam com os dias contados. O trio dos Diários Associados pôde, inclusive, conferir isso com seus próprios olhos, durante uma breve visita a Vallegrande para apurar o caso de dois insurgentes presos e executados pelas forças armadas.

“Nesse meio tempo, tive de ir a La Paz, em busca das credenciais para que a nossa equipe pudesse acompanhar o julgamento de Debray. Lá conversei por telégrafo com meu chefe, Wilson Gomes, e disse-lhe que o assunto era o fim da guerrilha, era ‘Che’ Guevara, e não Debray”, lembra Helle. “Ele respondeu: ‘Se você tem tanta certeza, vá, pode ir. Mas saiba que, se não der certo, vocês vão perder o emprego, assim como eu’”.

Ao ouvir de um oficial boliviano, em tom de brincadeira, de que estaria caçando passarinhos, Helle retrucou: “Deve se tratar de um pássaro grande”. Ele só riu.

O palpite da jornalista revelar-se-ia 100% certeiro logo a seguir. De volta a Santa Cruz de La Sierra, ela encontrou, em 8 de outubro, um alto oficial do exército boliviano que conhecera na capital do país, poucos dias antes.

Cumprimentou-o e perguntou-lhe o que estava fazendo por lá. “Ele respondeu que viera caçar passarinhos. Disse-lhe, então, que devia se tratar de um pássaro grande. Ele só riu, confirmando as minhas suspeitas de que ‘Che’ Guevara estava prestes a ser capturado ou até já caíra nas mãos dos militares”, conta Helle. “Naquela noite, alugamos um veículo com um motorista que já conhecíamos e fomos para Vallegrande acompanhados pelo repórter José Stacchini, do Estadão”.

A viagem consumiu a madrugada inteira, devido às más condições da estrada de terra. Chegando ao destino, os profissionais brasileiros se dirigiram ao único hotel da cidade, que estava repleto de oficiais do exército. Lá souberam que o “pássaro grande” fora morto em La Higuera, 61 quilômetros ao sul, e que seu corpo seria trazido para Vallegrande naquela manhã amarrado ao trem de aterrissagem de um helicóptero.

A caminho do campo de pouso, Helle instruiu o motorista da equipe: pediu-lhe que grudasse na traseira do veículo que iria transportar o cadáver do guerrilheiro sabe-se lá para onde, pois os militares não davam pistas a respeito. “Foi o que fizemos. Conseguimos, dessa forma, entrar na lavanderia do hospital municipal logo depois deles”, lembra ela.

O corpo de um dos maiores mitos do século 20 foi colocado sobre uma mesa de alvenaria. Vestido com trapos e sujo de terra e sangue, “Che” apresentava um semblante sereno, com os olhos semiabertos e um sorriso fixado no rosto. Após observá-lo durante alguns minutos, Helle, Moura, Gianello e Stacchini começaram a fazer o seu trabalho. Ganharam, depois, a companhia de alguns repórteres bolivianos e de um fotógrafo da United Press International (UPI), que chegou e partiu de helicóptero rapidamente.

Amarrado ao trem de aterrissagem de um helicóptero, corpo de Che Guevara chega a Vallegrande, na Bolívia

“Che Guevara apresentava um semblante sereno, com os olhos semiabertos e um sorriso fixado no rosto”, lembra Helle Alves

Àquela altura, ninguém seria capaz de imaginar, mas um “milagre” estava prestes a ocorrer.  O episódio teve início com a ruidosa chegada ao portão da lavanderia do hospital de um grupo de cerca de cem pessoas que, meia hora antes, havia acompanhado atentamente a chegada do cadáver do guerrilheiro a Vallegrande. “Eles vieram caminhando desde o campo de pouso e estavam furiosos. Gritavam: ‘Tenemos derechos, somos bolivianos! Queremos ver al asesino de nuestros soldaditos!’”, lembra Helle.

O pesado portão de madeira não foi páreo para aquela turma. Caiu ao solo após alguns vigorosos chacoalhões, liberando o acesso dos manifestantes, que avançaram para acertar as contas com o defunto ilustre. Helle ficou apavorada e apertou a mão de Moura, que a encorajou. A animosidade, contudo, sumiu de cena quando os invasores avistaram os restos mortais em questão. Os que corriam à frente do grupo estancaram imediatamente, barrando a evolução dos que vinham atrás. “Eles ficaram surpresos, admirados”, conta a repórter. “Diziam que ‘Che’ era lindo, que parecia com Cristo”.

Até mesmo os militares, verdugos do líder revolucionário, se comoveram com o episódio. Tanto que trataram de organizar, logo em seguida, uma fila para que os visitantes inesperados pudessem contemplar, com total respeito e em silêncio, o corpo que, pouco antes, pretendiam destroçar. “Todos nós nos sentimos menores, muitíssimo menores, do que ‘Che’ Guevara, inclusive os oficiais do exército”, diz Helle. “Os espíritas dizem que a alma só deixa o corpo algumas horas após a morte. Não sei se foi isso o que presenciamos naquele dia, mas a experiência me marcou. Eu me emocionei muito”.

* As legendas são reproduções das publicadas em 1967

Nas entrevistas realizadas no hospital, a jornalista colheu informações preciosas sobre as últimas horas de vida do guerrilheiro. Os militares lhe contaram que ‘Che’ ficou preso numa escola em La Higuera. Ele sabia que seria executado e, sem demonstrar temor, ficou discutindo com seus captores. Helle descobriu até quem foi o carrasco voluntário, que apertou o gatilho. “Este homem ficou meio ruim da cabeça e foi se tratar no Rio de Janeiro. Eu queria entrevistá-lo, mas os Diários Associados não permitiram”, diz ela. “Fiquei, assim, sem saber se seus problemas haviam sido causados pelo assassinato”.

Encerrada a apuração, a equipe brasileira retornou ao hotel. Depois do almoço, Hellle e Stacchini começaram a batucar as teclas de suas máquinas. Seus planos, no entanto, sofreram um contratempo: naquela segunda-feira, o posto de telégrafo de Vallegrande estava atendendo única e exclusivamente às forças armadas bolivianas. Só às seis da tarde a dupla recebeu a notícia de que um dos dois telegrafistas da cidade fora colocado à disposição do público. “Fui correndo para lá, levando também o material do Stacchini, para transmitir os textos. Dei de cara com uma baita fila na porta”, relata a repórter.

A jornalista logo encontrou uma solução. Distribuiu notas de cinco e dez dólares às pessoas que aguardavam na fila e, em troca, passou à frente destas. A seguir, entregou valores maiores para os três ou quatro funcionários administrativos do posto. Teve acesso, então, aos dois telegrafistas, que receberam, cada um, cem dólares. Apesar da gorjeta generosa, o operador que atendia aos civis reclamou ao perceber que os textos entregues estavam redigidos em português. Helle o acalmou. “Disse que iria esperar o fim da transmissão e que ele ganharia, em seguida, mais cem dólares”, conta ela. “Tive também o cuidado de recomendar-lhe que desse prioridade à minha reportagem”.

A farta distribuição de cédulas norte-americanas praticamente esgotou os recursos da equipe dos Associados. Stacchini bancou as despesas no hotel e o grupo seguiu viagem naquela mesma noite. Ao chegar a Santa Cruz, na manhã seguinte, Helle despediu-se de Moura e Gianello, que iriam cobrir o julgamento de Debray em Camiri, e embarcou para São Paulo, levando fotos e filmes. Assim que desceu do avião, foi para a redação do Diário da Noite, na rua Sete de Abril. “Estava muito cansada, pois não conseguira dormir nas duas noites anteriores, já que o trajeto entre Santa Cruz de La Sierra e Vallegrande era muito acidentado. Tanto que dei algumas ‘pescadas’ durante a entrevista para o Saulo Gomes, na noite de 10 de outubro, nos estúdios da TV Tupi”, recorda a repórter.

Autópsia atestou que tiro na nuca vitimou o líder guerrilheiro

As informações apuradas na Bolívia garantiram suítes sobre a execução de “Che” Guevara por cerca de dez dias. Helle guarda uma reportagem, em particular, na memória. Intitulada Mosca azul picou Guevara, abordava um erro que custou caro ao líder argentino. “Ele entregou fotos da guerrilha a Debray”, diz ela. “Quando o francês foi preso, os militares bolivianos ficaram sabendo da presença de ‘Che’ e deram início à perseguição”.

A satisfação da jornalista durou pouco. Muitos de seus colegas nos Associados ficaram com inveja do seu trabalho marcante e passaram a tratá-la de maneira fria. Helle acredita, inclusive, que alguns desses desafetos foram responsáveis pela abertura de um processo do Exército Brasileiro contra ela em plena ditadura militar. “Enviaram recortes das minhas reportagens sobre o “Che” para comandantes militares”, revela. “Não cheguei a ser interrogada, só tive de responder a algumas perguntas por escrito. Ficou só nisso”.

O endurecimento da ditadura a partir do Ato Institucional no 5, de 13 dezembro de 1968, tornou o ambiente ainda mais pesado. Censores passaram a marcar presença no Diário da Noite, intimidando a tudo e a todos. No início dos anos 1970, Helle desistiu do jornal. Pediu as contas e foi ganhar o pão como freelance e assessora de imprensa. Prestava serviços, entre outros clientes, à sua irmã famosa, a atriz Vida Alves (1928-2017), coprotagonista, ao lado de Walter Forster (1917-1996), do primeiro beijo da TV brasileira, exibido em fevereiro de 1952 no último capítulo da novela Sua vida me pertence.

A notável farejadora de grandes notícias nunca mais voltou a trabalhar em redações. Aposentou-se pela Assembleia Legislativa, onde ingressara na década de 1940, e trocou São Paulo por Santos. Mora há 23 anos no litoral e continua na ativa. Envolveu-se a fundo no Conselho Municipal do Idoso santista, criado na década de 1990, e segue a participar de movimentos culturais na cidade, caso da Festa do Livro, e a escrever obras, hábito herdado do pai, o engenheiro, professor e poeta modernista Heitor Aves (1898-1935), que editou, entre 1927 e 1929, a revista literária Electrica.

Depois de Eu vi, em 2012, Helle lançou, no ano passado, Momentos mágicos, cômicos e trágicos, em comemoração ao seu 90o aniversário. Mais recentemente, aproveitou que teve de ficar de “molho” durante alguns meses, devido a uma fratura no pé, e produziu um pequeno romance, Beco das calêndulas, prestes a ser impresso. A inspiração se estende às pautas jornalísticas, que continuam a surgir na sua mente.

“Gostaria, por exemplo, de fazer uma série de reportagens sobre os custos do poder Legislativo. Hoje, ser parlamentar virou uma profissão extremamente onerosa ao Pais e, em muitos casos, nada honrosa”, cutuca ela, que lamenta o estágio atual da imprensa nacional, marcado pela mesmice. “Dá a impressão até de que todos os veículos de comunicação se abastecem de pautas em uma mesma fonte na internet. Está faltando aos repórteres um maior contato com as ruas, com a realidade”.

 

(*) Jornalista há mais de 30 anos, Dario Palhares ([email protected]) atuou em diversos veículos – casos de O Globo, Exame, Folha de S.Paulo, Brasil Online, Diário do Povo (Campinas) e A Tribuna (Santos) –, na maioria em cargos de chefia. Autor de livros, atualmente dedica-se à produção de textos e ao desenvolvimento de projetos de memória corporativa e esportiva.

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