Por Luciana Gurgel, especial para o J&Cia
No momento em que a tecnologia elevou à estratosfera o volume de notícias disponíveis e democratizou a forma de acesso a elas, um dos riscos para o jornalismo pode ser justamente a saturação. Essa é uma das ameaças apontadas pela relatório anual Journalism, Media and Technology Trends and Predictions 2020, elaborado pelo Instituto Reuters, sediado na Universidade de Oxford.
O estudo consolida a opinião de 233 profissionais que ocupam posições de comando em redações de 32 países, colhidas por meio de um questionário fechado e comentários livres. O fenômeno da “fadiga de notícias” não é o único paradoxo. Os entrevistados sinalizaram confiança no negócio, mas ao mesmo tempo expressaram incertezas quanto à qualidade da produção jornalística.
Quase 3/4 dos participantes disseram-se otimistas ou muito otimistas com as perspectivas de sustentabilidade financeira das organizações em que trabalham, o que o Reuters atribui ao sucesso de novos modelos de geração de receita que começam a frutificar. Por outro lado, 46% estão menos confiantes com o futuro do jornalismo. E menos ainda com o jornalismo de interesse público, salientando o declínio da imprensa regional e pressões para travar a atuação de profissionais que denunciam ricos e poderosos.
Karyn Fleeting, do conglomerado de mídia britânico Reach, classificou de “deprimentes e preocupantes” os ataques à mídia feitos por chefes de estado, que se tornaram rotina aqui. A despeito de o primeiro-ministro Boris Johnson ter sido jornalista, a relação de sua administração com a imprensa é tensa, com ameaças de suspender a taxa obrigatória que sustenta a BBC e a licença do Channel 4.
O estudo revelou que 85% dos consultados acham que a mídia deve fazer mais para esclarecer inverdades na política, mas parte deles se ressente do baixo reconhecimento de iniciativas nesse sentido pela audiência. E muitos observaram que tais iniciativas podem ser em vão em um quadro em que líderes seguem a fórmula do presidente Donald Trump, esvaziando a grande imprensa e dialogando com o público sem filtros por redes sociais.
Os movimentos para regular as plataformas tecnológicas, crescentes no Reino Unido e em outros países da Europa, não são vistos como resposta para elevar a confiança geral. Mais da metade (56%) dos editores que participaram da pesquisa acha que não haverá impacto sobre o jornalismo. Mas 25% temem consequências negativas. O universo pesquisado inclui representantes de mídias digitais, o que explica em parte esse temor.
Inteligência artificial, a próxima onda – Entre as tendências apontadas pela estudo está o avanço da inteligência artificial, que o Reuters chama de “a próxima onda de disrupção tecnológica”. As aplicações vão desde a apuração, produção de textos e distribuição até o uso comercial, como otimização de paywall. Na visão de 52% dos consultados, ela será muito importante este ano, mas empresas menores temem ficar para trás.
Além dos questionamentos sobre privacidade e democracia, entretanto, outra questão sobre inteligência artificial emergiu. Um total de 24% dos participantes prevê dificuldades para contratar e reter profissionais com expertise em programação diante dos altos salários a eles oferecidos pelas empresas de tecnologia. Por incrível que pareça, pode acabar sobrando vagas nas redações por falta de gente qualificada.
A chave do cofre – E de onde virá o dinheiro para a mídia? Para 50% dos que responderam ao questionário, sairá direto do bolso de quem consome notícias. Apenas 14% apostam em sustentabilidade financeira contando só com receitas publicitárias. E 35% acham que será uma combinação das duas.
O relatório prevê que organizações de mídia do mundo inteiro tentarão cada vez mais emular as experiências das que já celebram crescimento como resultado de ações para encantar leitores e espectadores, levando-os a pagar pelo conteúdo, principalmente na Europa e nos Estados Unidos. Florescem aqui modelos criativos que ressuscitaram títulos moribundos e deram origem a notáveis exemplos de bom jornalismo.
Em contrapartida, há o risco de o noticiário de qualidade ficar restrito à elite, restando aos menos abastados o território caótico das redes sociais. O estudo registra ações já em curso destinadas a neutralizar tal impacto, como eventos de engajamento e podcasts.
O vigor do áudio é confirmado, mas o Instituto alerta para o desafio da monetização. Muitos editores admitiram dificuldades para gerar receita com podcasts, ainda que reconheçam seu valor no engajamento do público, sobretudo jovens. O Brasil é destacado como segundo maior mercado consumidor de podcasts, com citação ao projeto do Estadão em parceria com a Ford para criar um produto diário no Spotify.
O documento do Instituto Reuters é uma compilação de visões a partir de realidades nem sempre comparáveis à do Brasil. Mas joga luz sobre tendências capazes de se estenderem para toda a indústria, que merecem ser observadas tanto por executivos e editores experientes como pelos que entram no mercado de trabalho.
Aprender programação pode ser a diferença entre um futuro na redação do futuro ou um diploma guardado na gaveta.