Por Marco Antonio Zanfra
Ele certamente tinha um nome, um registro civil, uma família, um lugar para morar, mas para nós não importava nada disso. Ele era simplesmente o Profeta, ou o Dito – o que sugeria que seu nome poderia ser efetivamente Benedito –, e era uma companhia inseparável da marquise do prédio da Folha, na Barão de Limeira. Era folclórico, chegava a ser um ponto turístico, com um detalhe interessante: parece que cumpria expediente, chegando de manhã e indo embora à noite, para dormir sabe-se lá onde.
Maltrapilho, barbudo, dentes podres, ele tinha, contudo, os olhos verdes e os traços de quem poderia ter sido outrora muito bem cuidado. Brincavam que ele tinha sido jornalista e enlouquecido em razão da profissão, mas contavam também que o Dito era de uma família abastada da Zona Norte de São Paulo e dono de uma casa ampla na Freguesia do Ó, mas havia optado pela vida nas ruas. Podia ter uma briga de família pela posse de bens envolvida na história, mas isso não vinha ao caso.
Conto nos dedos os dias em que, no início dos anos 1980, não nos cumprimentávamos quando eu chegava para trabalhar. Falhava às vezes porque, bêbado, ela havia dormido em seu cantinho, uns vinte ou trinta metros à esquerda da porta de número 425, mais perto do prédio vizinho do que da entrada do jornal. Apesar de ter sido ‘adotado’ pelo reportariado da Folha, ele não era exclusividade nossa: tinha um carro chique, não me lembro da marca (mas era importado), que todos os dias parava nas proximidades, para que seus ocupantes lhe deixassem uns trocados.
Dito tinha uma risada barulhenta, a pele curtida pela sujeira e um bafo misto de cachaça e podridão de dentes, mas era inofensivo, não fazia mal a ninguém. Por isso estranhamos quando, num início de noite, no meio da semana, um carro de polícia veio e o levou embora. Foram acionados por um vizinho, disse um policial, embora não apresentasse justificativa para que ele fosse preso – no mínimo, poderia ser levado ao serviço social.
Mas, logo que a viatura saiu, fomos atrás, com destino ao 3º Distrito Policial, perto de esquina da Rio Branco com a rua Aurora. Não foi difícil resgatá-lo: assinei um termo de responsabilidade por ele – coisa que, sóbrio, não faria jamais – e voltamos todos juntos para a marquise da Folha. No bar do Mané/Luiz/Juvenal, prometi pagar-lhe uma 51 para rebater o susto por ter sido preso. “Em vez de uma 51, paga duas pingas vagabundas”, ele pediu, matreiramente.
Dito, ou Profeta, foi figura constante por um par de anos na Barão de Limeira, mas acho que não cumpria os requisitos para fazer parte do Projeto Folha, pois desapareceu. Nunca mais soubemos dele. Seria injusto, porém, que essa editoria que homenageia em seu centenário os antigos personagens do jornal não o colocasse entre os ícones marcantes que povoaram, ainda que apenas do lado de fora, o prédio da Empresa Folha da Manhã.
(Em tempo: não encontrei foto real de nosso mendigo favorito; sei que foi feita, mas possivelmente não chegou a ser digitalizada; essa que ilustra o texto é a que mais lembra a imagem do Profeta, embora o rosto dele não fosse tão vincado.)
Ainda em continuidade às comemorações pelo centenário da Folha de S.Paulo, reproduzimos texto que Marco Antonio Zanfra publicou no espaço Humanos da Folha, do próprio jornal, em 2 de março. O especial de J&Cia sobre o centenário da Folha está disponível na internet.
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