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sexta-feira, novembro 22, 2024

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Os riscos da discórdia entre jornalistas e Governo britânico para a confiança na imprensa

Lee Cain nos tempos de “galinha”

Por Luciana Gurgel, especial para o J&Cia

Luciana Gurgel

A divisão da sociedade britânica por causa do Brexit está se refletindo no clima entre a imprensa e o Governo. A administração de Boris Jonhson – um ex-jornalista – vem adotando posição de confronto ao quebrar práticas estabelecidas na relação com os meios de comunicação. O que não ajuda a apaziguar os ânimos nem a reverter cobertura desfavorável.

O episódio da última segunda-feira (3/2), em que jornalistas de organizações como BBC, Sky News e The Guardian boicotaram uma coletiva, em solidariedade a colegas nela barrados, foi um ato carregado de simbolismo. Colocou do mesmo lado profissionais de organizações favoráveis e contrárias ao Governo do Partido Conservador, que se uniram ao considerarem que a liberdade da imprensa estava sob ameaça.

Uma curiosidade: o responsável por barrar os colegas foi Lee Cain, diretor de Comunicação de Johnson, que escrevia para o esquerdista Daily Mirror antes de passar para o outro lado do balcão. E que em 2010 chegou a encarnar o folclórico personagem Mirror Chicken, vestindo uma fantasia de galinha para perseguir líderes do Partido Conservador e questionar suas posições. As voltas que o mundo dá…

Tradições quebradas – A temperatura começou a subir em dezembro, quando o Governo anunciou a decisão de mudar para a residência oficial os briefings diários feitos para os jornalistas credenciados na sala de imprensa do Parlamento. A transferência provocou reação do grupo Lobby, que reúne os veteranos da cobertura política.

Eles reclamaram do tempo perdido no deslocamento e do fato de o novo local  não ser “território neutro”. Temiam que colegas fossem barrados, o que seria mais difícil nas dependências do Parlamento. Embora a possibilidade tenha sido negada pelo Governo, foi o que acabou acontecendo.

O processo dos briefings diários, em que os credenciados recebem subsídios em off para as matérias, não é unanimidade. Jornalistas independentes, como o blogueiro político Paul Staines, do site Guido Fawkes, consideram que privilegia o grupo de credenciados. E que tudo deveria ser em on, com transmissão ao vivo para quem quiser acompanhar.

No incidente de segunda-feira, no entanto, o encontro não era um briefing rotineiro, e sim um encontro com um especialista do Governo sobre o difícil acordo com a União Europeia, para o qual foram convidados apenas sete profissionais. O diretor de Comunicação defendeu ser prerrogativa do Governo escolher com quem fala e onde fala. É um entendimento controverso, pois envolve o poder público, e não uma organização privada.

A posição tornou-se vulnerável também porque os que tentaram participar ao saber do encontro eram profissionais de títulos que cobrem extensivamente a saída do Reino Unido, como HuffPost, i, Independent e a agência de notícias Press Association. Alguns deles experientes editores de Política, com credenciais mais do que suficientes para estarem na coletiva.

Há um sentimento de que a administração de Boris Johnson vem se inspirando nas práticas do presidente norte-americano Donald Trump, escolhendo a dedo com quem falar e utilizando as redes sociais para se comunicar diretamente com a sociedade. Minando assim a relevância da imprensa.

São vários sinais nesse sentido. Na noite do Brexit, o Governo mandou para os veículos britânicos um pronunciamento editado pela equipe da casa, contrariando o hábito de uma emissora independente gravar e distribuir às outras. Em protesto, várias não veicularam, mas Johnson distribuiu o material por suas redes sociais.

No último domingo, The Sunday Times revelou que Dominic Cunnings, braço-direito do primeiro-ministro, determinou que ministros e assessores devem dividir a conta se almoçarem com jornalistas. E informar sobre tais encontros. A matéria diz que ele teria criado uma rede de “espiões” nos restaurantes próximos à área governamental para caçar desobedientes. Parece coisa da Guerra Fria.

Há muitos lados nessa história. Jornalistas se ressentem das mudanças sem consulta e do que veem como obstáculos ao seu trabalho. O Governo defende que as mudanças não afetam a liberdade da imprensa, e que na verdade destinam-se a democratizar o acesso às informações sobre atos oficiais.

Mas o fato é que ninguém ganha com esse ambiente de guerra. Principalmente em um momento em que jovens consomem cada vez mais notícias pelas redes sociais em detrimento da mídia tradicional. E podem perder a noção de como é fundamental para a sociedade uma imprensa que investiga, questiona e expõe opiniões diferentes para ajudar cada um a formar a sua.

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