Percival de Souza, especializado na área policial e atual comentarista do Cidade Alerta (Record) sobre o assunto, foi um dos poucos jornalistas que entrevistaram José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, ex-agente duplo da ditadura militar, falecido na semana passada, aos 80 anos. Ao Portal dos Jornalistas, Percival, que escreveu um livro sobre ele, revelou bastidores dos encontros.
Durante a ditadura, Anselmo atuou como agente infiltrado em grupos revolucionários opositores ao regime, repassando informações valiosas e nomes de militantes aos militares, ocasionando diversas mortes. Em 1964, liderou uma revolta de marinheiros que resultou na sua expulsão da Marinha. O episódio, inclusive, foi um dos pretextos usados pelos militares para darem o golpe de Estado. Permaneceu na clandestinidade desde os anos 1970 e fez até cirurgia plástica para não ser reconhecido. Na semana passada, Anselmo foi enterrado com um nome falso criado em 1973.
Em 1999, quando ele estava desaparecido, Percival lançou o livro Eu, Cabo Anselmo, que relata a história ex-marinheiro. O jornalista contou que a ideia inicial era escrever sobre o delegado Fleury, agente do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e considerado um dos repressores mais cruéis da ditadura. Mas, ao pesquisar sobre a vida dele, encontrou a história do Cabo Anselmo, e decidiu escrever sobre este primeiro. Percival contou também que, durante as duas semanas em que entrevistou Anselmo, hospedaram-se nos mesmos lugares, faziam refeições juntos e tiveram contato muito direto.
Confira a entrevista na íntegra a seguir:
Portal dos Jornalistas: Como surgiu a ideia de fazer um livro sobre o Cabo Anselmo?
Percival de Souza: O livro foi feito no período em que ele estava desaparecido, em 1999. Ninguém sabia onde ele estava, se no exterior, ou mesmo vivo ou morto. Na verdade, no começo, o projeto era fazer um livro sobre o delegado Sérgio Paranhos Fleury, de quem eu acabei fazendo uma biografia contextualizada também, um ano depois da do Anselmo, em 2000. Nas pesquisas da vida do Fleury, percebi que o Cabo Anselmo teve muitos momentos decisivos, foi personagem importantíssimo em sua história. Ele foi criado, projetado praticamente pelo Fleury, trabalhou para ele. Então, me veio a ideia de fazer um livro sobre Anselmo. Percebi que seria possível contatá-lo, então antecipei, fiz dele primeiro.
Portal: Como você conseguiu convencê-lo a dar uma entrevista?
Percival: Eu primeiro procurei saber de pessoas próximas a ele, e cheguei ao nome do delegado Carlos Alberto Augusto, conhecido como Carteira Preta, ex-agente do DOPS e amigo/protetor do Anselmo. Fiz contato com ele, que conseguiu convencer o Cabo a dar uma entrevista. Marcamos um encontro em Aracajú, no Sergipe, sua terra natal, onde tivemos as conversas iniciais, tratativas. Foi lá que ele se alistou na Marinha.
Depois, fomos para o Recife, em Pernambuco. Vale lembrar que, na região de Abreu e Lima, a cerca de 20 km de Recife, ocorreu o Massacre da Chácara São Bento, execução de seis militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), incluindo da paraguaia Soledad Barret, esposa de Anselmo, que estava grávida de quatro meses. O movimento foi articulado por Fleury, com a ajuda do próprio Anselmo.
E do Recife, fomos para o Rio de Janeiro, onde é a sede da Associação dos Fuzileiros Navais, na qual Anselmo teve participação decisiva em 1964. Então, foi um roteiro nordestino que terminou no Rio de Janeiro.
Portal: Como foi entrevistá-lo? Você tem algum bastidor interessante desses encontros?
Percival: Nós ficamos duas semanas hospedados nos mesmos lugares, fazendo nossas refeições juntos. Então, tive contato bem direto com ele, direto mesmo. Tinha um período, digamos, “formal”, nas entrevistas, períodos longos, e tinha evidentemente os momentos fora do trabalho, de almoço, jantar, café da manhã, no caso de Aracaju e Recife, caminhar pela praia, então foi um contato próximo.
E pude perceber, além da parte formal, pré-confecção do livro, esses momentos de descontração. Tudo isso junto me permitiu conhecê-lo muito bem, a personalidade dele, seu jeito, sua espontaneidade, avaliar a veracidade dos fatos. Falamos não só sobre as coisas relatadas no livro, mas sobre outras coisas banais do cotidiano. Fiquei muito perto dele, dia e noite, por duas semanas.
Portal: E você teve algum outro contato com ele depois?
Percival: Tive poucos contatos. Eu não o via há anos. Tive contato até ele pedir anistia, solicitando sua reintegração à Marinha, e indenização, em 2004. Desse período em diante, nunca mais, não o via há anos.