Por Luciana Gurgel
O terremoto causado pelo livro do príncipe Harry não está abalando apenas a monarquia, mas também a reputação da imprensa britânica.
Culpar a mídia por notícias desfavoráveis não é novidade. No entanto, a dimensão da batalha que uma das maiores celebridades do mundo contemporâneo resolveu travar é impressionante.
Harry declarou em entrevista ao apresentador Tom Bradbey, da ITV, que reformar a imprensa britânica virou “o trabalho de sua vida”.
Em Spare e em entrevistas prévias, Harry desfia um rosário de reclamações que jornalistas especializados em acompanhar a família real chamam de “obsessão”.
Compreensivelmente, a morte da princesa Diana em um automóvel perseguido por paparazzi é um trauma. Mas nos anos que se seguiram, a mágoa parecia sob controle. Os tabloides noticiavam as estripulias de Harry, assim como outras situações constrangedoras para a família real.
Ainda assim, jornalistas desses veículos continuaram a participar de eventos e viagens da realeza, em uma relação de interesse mútuo. Harry não se demonstrava desconfortável ou pouco colaborativo.
Até que veio o casamento com Meghan. Na visão do casal, os tabloides encarnam o mal do mundo e causaram o sofrimento que os fez deixar o país.
Eles pegam pesado, sim. Mas nem todos os jornalistas são racistas ou discriminam estrangeiros − embora alguns certamente o façam. Nem todas as notícias negativas são perseguições ou invenções. E várias não tiveram origem em tabloides.
O hipermonarquista Daily Telegraph sempre foi um dos mais críticos a Meghan na época da briga com o pai, vista como uma baixaria que destoava da discrição da família real. E não perdoou a ida do casal para os EUA, tratada como traição.
Em 2021, o conservador The Times publicou reportagens devastadoras sobre doações à fundação do então príncipe Charles. Algumas em dinheiro vivo, outras supostamente em troca de comendas reais concedidas em segredo.
Outro exemplo é o apresentador de TV Piers Morgan, da ITV, que em 2021 perdeu o emprego na emissora por duvidar dos pensamentos suicidas de Meghan revelados à apresentadora Oprah Winfrey.
Os tabloides não são os únicos responsáveis pela cobertura negativa, mas são o inimigo perfeito em uma narrativa maniqueísta de bem contra o mal, inclusive judicialmente.
Em 2022, Meghan ganhou uma ação contra o Daily Mail por causa da publicação de trechos da carta enviada por ela ao pai após o casamento, primeiro grande escândalo a atingir o casal.
Harry move atualmente três processos contra empresas que editam tabloides.
O curioso na narrativa dele é que, ao mesmo tempo em que demoniza a imprensa, acusa assessores do Palácio e membros da família de terem vazado informações para jornais com o objetivo de destruir a imagem de Meghan e supostamente forçar o “Megxit”.
No melhor estilo “mate o mensageiro”, culpa a imprensa por aceitar o jogo, que estaria sendo feito por sua própria família − a mesma a quem ele parece agora querer perdoar. E chegou a dizer nas entrevistas recentes que não acha racista. De novo, teria sido a imprensa britânica a inventar essa tese, embora a primeira a verbalizar isso tenha sido a americana Oprah ao comentar a revelação do casal de que alguém tinha perguntado sobre a cor da pele do filho que esperavam.
Não há santos nessa história. A estabilidade da monarquia é assunto de Estado em um país que tem imagem e negócios associados a ela.
Com exceção do The Guardian, a grande mídia britânica é controlada por aristocratas ou grupos conservadores. A família real usa os instrumentos de que dispõe para se promover e se proteger, como empresas e instituições fazem. Até onde esse uso foi ético durante todo o tempo será difícil descobrir.
Mais difícil ainda é Harry transformar um ecossistema de mídia em que notícias sobre celebridades são elemento vital, porque o público as consome. Uma regra válida em todo o mundo.
Entretanto, o estrago foi feito. A guerra santa do príncipe magoado contra a imprensa pecadora pode contribuir para deteriorar ainda mais a confiança do público no jornalismo.
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