Se existir vida eterna do outro lado, o jornalista Milton Peruzzi (1925-2001) deve estar servindo pizza para São Pedro e demais nomes da corte celeste há 20 anos, pois esse é o tempo que ele nos deixou. A pizza é aqui valorizada porque foi através dela que Peruzzi conquistou seu lugar na cultura brasileira. Não é qualquer um que consegue introduzir algo seu em um idioma, no caso, o Português. A festejada expressão “acabou tudo em pizza”, disseminada por todos os países lusófonos, e até em outras paragens, é da autoria dele, brotou da sua criatividade. 

Naturalmente, a rememoração desse episódio não é inédita, ao contrário, mas o episódio merece ser recuperado, pois além da data significativa, está enriquecida com detalhes pouco conhecidos sobre a prática do jornalismo na época, possivelmente ignorados pelos colegas jornalistas que ainda não dobraram o Cabo da Boa Esperança.

Estamos nos anos 1960. O Brasil está consolidando seu predomínio nos gramados apoiado em duas copas conquistadas. Nessa época, nosso futebol era governado por três estrelas, cada uma com um ícone principal: Santos FC (Pelé) e, em segunda posição, Sociedade Esportiva Palmeiras (Julinho Botelho) e Botafogo Futebol e Regatas (Garrincha). 

Peruzzi, o “inventor” da expressão “acabou tudo em pizza”
Milton Peruzzi

Nossa imprensa esportiva tinha sua maior representação em dois jornais. O primeiro, não necessariamente pela ordem, era o Jornal dos Sports (1931-2010), que se caracterizava pelo papel cor-de-rosa e cujo nome mais expressivo foi Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues e inventor do Estádio do Maracanã; o segundo, a paulista A Gazeta Esportiva (1947-2001), fundada por Cásper Líbero, teve em Thomaz Mazzoni o sucedâneo de Mário Filho em São Paulo. E que também teve seus inventos. (Era um italiano que veio, menino, para São Paulo. Tornou-se o segundo de Cásper Líbero a partir de 1930). A ele, além da competência jornalística, devemos os apelidos de Choque-rei para o clássico São Paulo x Palmeiras e Majestoso para São Paulo x Corinthians. Também deu os apelidos de Mosqueteiro ao Corinthians; Clube da Fé ao Palmeiras; Moleque Travesso ao Juventus e Nhô Quim ao XV de Piracicaba. Consta que também teria dado o cognome de Timão para o São Paulo; posteriormente, ao que tudo indica, a designação foi, segundo tricolores, usurpada pelo Corinthians. Neste último caso, porém, há controvérsias. Luiz Carlos Ramos, aposentado, premiado ex-editor de Esporte do Estadão, suspeita que o apelido do alvinegro partiu de Solange Biba (1918-1982), outro monumento da crônica esportiva paulista. 

É interessante registrar que as coberturas de jogos tinham cacoetes próprios. Os repórteres-fotográficos, diferentemente de hoje, em que ficam posicionados comportadamente em local demarcado bem além da linha das traves, naquela época enxameavam atrás do gol. (Um goleiro renomado, já falecido, confidenciou-me que essa aglomeração policiava – prejudicava, melhor dizendo – seu eficiente recurso de defesa, quando havia cruzamento alto para a área, em caso da cobrança de falta ou de escanteio. Antes do apito autorizador, ele se agachava, a título de flexão e voltava com as mãos cheias de areia para aspergir sobre o rosto, leia-se olhos, dos atacantes adversários com a finalidade de abortar cabeceadas. No passado, a linha de gol era recoberta com areia quase até o limite da pequena área, talvez para demarcar um território protetor absoluto do goleiro, pois a regra era clara: qualquer contato físico dos adversários com o arqueiro naquele espaço em princípio era falta. A certa altura esse lugar acabou gramado. Mas cunhou uma frase atribuída, salvo engano, a João Saldanha ou ao lendário filósofo Neném Prancha, no futebol de praia: goleiro é tão desgraçado que, no lugar em que pisa não nasce grama). Nos jogos noturnos os goleiros ficavam indignados com os flashes que espocavam nos seus olhos, prejudicando a orientação na sequência da jogada. Por outro lado, a experiência de perder a imagem de um gol, fosse por problema técnico ou inabilidade, levou os jornais a criarem o artifício do dinheiro sonante. No laboratório fotográfico da redação havia uma salvadora moedinha de 10 centavos com a efigie do presidente Getulio Vargas, que também aparecia nas notas de dez cruzeiros, cuja circunferência imitava perfeitamente uma bola. O truque era adicionado no processo de revelação do filme ou ampliação da imagem, não me recordo. Os repórteres já estavam condicionados a memorizar a posição da bola – gol rasteiro, a meia altura ou no alto – para não haver contradição com a concorrência bem-sucedida na documentação. Convém lembrar que naqueles tempos não havia videotape. 

Milton Peruzzi era repórter de A Gazeta Esportiva, em cujo grupo, rádio e TV, construiu sua bela carreira. 

Naqueles inícios dos anos 1960 explodiu um sério arranca-rabo, eis a definição precisa, entre as diversas alas políticas do Palmeiras; nada a estranhar, pois a gestão dos clubes, mais do que hoje, era sobretudo amadorística; diretores eram fervorosos torcedores. Eles se intrometiam em tudo. Por isso seus nomes eram quase tão citados como os dos jogadores e técnicos nas matérias. No caso do Palmeiras, naquela ocasião, havia o Delfino Facchina, o Ferrucio Sandoli, o Pascoal Byron Giuliano, Nelson Duque, Nicola Raccioppi… 

O engalfinhamento foi de tal ordem que chegou a ganhar projeção nacional. Em certo momento houve necessidade de se promover uma reunião pacificadora entre as alas, pois a desavença já estava afetando a performance do time em campo. 

Segundo os registros, foram mais de dez horas de debates. Fumado o cachimbo da paz, o bom desfecho foi comemorado em um jantar na Cantina Papa Genovese, na Avenida Pompeia, próxima ao Parque Antártica. Evidentemente era um território alviverde. (Posteriormente a cantina esteve em frente ao Parque Antártica e hoje, salvo engano, encontra-se na Rua Itapicuru – naquele mesmo pedaço).

Peruzzi passou todo o dia em cobertura. Na medida em que a noite avançou, tratou de avisar a redação que passaria a matéria por telefone, pois esse era o procedimento devido ao prazo de fechamento dos jornais, que correria por volta das 10 da noite. Não haveria tempo de voltar à redação e escrever o texto. Era o tempo de rodar e de distribuir. (Por volta das 5 da manhã os caminhões-baús saíam numa corrida assustadora das oficinas para o interior e litoral. Em certa ocasião, quando trabalhava nos Diários Associados, peguei uma carona para ir a Jaú, minha cidade – cerca de 320 km da capital – e, mal entrado na Via Anhanguera, decidi viajar na carroceria para sobreviver a possíveis desastres, cercado de pacotes de jornal. Os policiais rodoviários recebiam exemplares gratuitos e talvez a gentileza contribuísse para prevenir multas. À propósito, ainda não existiam pontos a perder na carteira).

Quando os guardanapos foram dobrados sobre os pratos no Papa Genovese, Peruzzi correu ao telefone preto – ainda não havia celular – e transmitiu sua matéria sob o título, aliás, manchete, com direito a ponto de exclamação: A crise do Palmeiras acabou em pizza! Bom repórter, Peruzzi, judiciosamente, enxertou dados convincentes para justificar sua proclamação. O jantar deu conta de 18 pizzas grandes e dez brotinhos, regadas a 15 garrafas do vinho Valpolicella, o bom e velho néctar do Veneto. A manchete provocou viva empatia e foi reverberada em outras ocasiões até se tornar definitivamente expressão idiomática.

Creio que o episódio foi revelado pela primeira vez pelo próprio Milton Peruzzi no programa do colega Milton Neves. Devido à enorme repercussão, ele se deu conta da importância de sua magnifica criação e, no tempo que lhe restou de vida, bem-humorado, pedia aos colegas que sempre lembrassem dele por meio dela.

Milton era publicamente palmeirense. Merecidamente, deu o seu nome à sala de imprensa do belíssimo Allianz Parque.


José Maria dos Santos

Esta é novamente uma colaboração de José Maria dos Santos, ex-Diários Associados, Manchete, Abril e Diário do Comércio, de São Paulo, entre outros.

Tem alguma história de redação interessante para contar? Mande para [email protected].


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