Por Luciana Gurgel, especial para o J&Cia
Não é comum ver o povo nas ruas pedindo justiça pela morte de um jornalista, a despeito do grande número de profissionais de imprensa perdendo a vida em consequência do trabalho em defesa da sociedade. Mas em Malta, uma das menores nações da Europa, as manifestações motivadas pelo crime contra Daphne Caruana Galizia têm atraído cada vez mais gente inconformada com a impunidade.
A jornalista e blogueira de 53 anos investigava corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo poderosos a partir de dados do escândalo Panama Papers. Morreu em 2017 depois que uma bomba explodiu em seu carro.
O caso vem sendo acompanhado com atenção pela imprensa britânica, pois Malta foi colônia até 1964 e mantém laços com o país. E também porque os protestos escalaram para a política, com pressões pela renúncia do primeiro-ministro Joseph Muscat, sobretudo após um dos seus principais aliados ter sido preso acusado de participação no crime.
A mobilização da sociedade civil, que levou muita gente às ruas nas últimas semanas, é resultado do inconformismo da família de Daphne, que não deixou o caso cair no esquecimento. Um exemplo de perseverança que está gerando resultados concretos.
Finalmente, dois anos após o ocorrido, um inquérito público foi aberto esta semana. O primeiro-ministro já anunciou que vai deixar o cargo em janeiro e vê o cerco apertar à sua volta. Organizações de direitos humanos de vários países abraçaram a causa.
Liberdade de expressão sob risco – Enquanto Malta tenta reverter a tendência de impunidade que marca a maioria dos crimes envolvendo jornalistas, saem novos números demonstrando a gravidade da situação em todo o mundo. Na semana passada, a ONG britânica Article 19 publicou seu relatório anual Global Expression, com dados impressionantes.
Segundo a entidade, a liberdade de expressão atingiu o nível mais baixo em dez anos. Avanços registrados entre 2008 e 2013 foram consumidos por retrocessos de 2013 para cá. O estudo, que cobre 161 países, sustenta que três em cada quatro habitantes do planeta sofre com ameaças à liberdade de expressão.
A Unesco contabilizou 99 jornalistas assassinados em 2018 – 21 a mais do que no ano anterior – e 250 profissionais presos. No Brasil, foram quatro mortes, quatro tentativas de homicídio, 26 ameaças de morte e um sequestro, conforme a Article 19.
Os países com maior número de alertas de risco reportados em 2018 foram Turquia, Rússia, Ucrânia, Azerbaijão e França. E Turquia, China e Egito contabilizavam ao fim do ano mais da metade de todos os jornalistas presos no mundo.
Ainda que não figure entre os principais na lista de jornalistas assassinados ou encarcerados, o Brasil não saiu bem na foto. De 2016 para 2018 houve queda em todos os critérios analisados pelo estudo para avaliar a situação – mídia, digital, transparência, proteção, espaço cívico (que inclui o direito de protestar). A entidade destaca que a liberdade de expressão diminuiu em 28% no País. (Veja também Nacionais, na pág. 7)
Autoritarismo digital, a nova ameaça – O relatório chama a atenção para algo além de agressões, prisões, homicídios e repressão a protestos. A Article 19 registrou um crescimento do que classifica como autoritarismo digital, em que governos utilizam a tecnologia para vigiar cidadãos, restringir conteúdo e bloquear a livre circulação das informações.
Esse é um tema controverso na Europa, debatido no âmbito das cobranças por maior controle sobre as plataformas digitais. É uma pauta defendida principalmente pelas organizações de mídia e por quem se preocupa com a disseminação de fake news pelas redes sociais.
Adversários da tese argumentam que tais controles podem calar vozes que discordam de governos ou das posições adotadas pela imprensa tradicional, que muitas vezes encontram nas mídias sociais o único canal para se expressarem. No campo oposto, jornais e TVs ressentem-se das regras a que estão submetidos, enquanto blogs e canais independentes atuam com total liberdade.
Não é fácil achar o ponto de equilíbrio. Mas o alerta da Article 19 sobre o mau uso da tecnologia para limitar a liberdade de expressão é importante para inserir o problema no radar das entidades, dos cidadãos e da imprensa, estimulando reação capaz de evitar que iniciativas dessa natureza prosperem.