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sexta-feira, novembro 22, 2024

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A propósito de Otto Filgueiras

* Por Cacalo Kfouri

Leio com tristeza no J&Cia que meu antigo companheiro de reportagens na revista Guia Rural, da Editora Abril, Otto Filgueiras, está em situação difícil (*). Sofreu as penas do inferno na Bahia, durante a ditadura militar, foi torturado, mas não abriu o bico. Veio para São Paulo depois de solto, e foi acolhido por Nivaldo Manzano na Guia Rural. Fizemos algumas viagens a trabalho, todas geraram, além de boas matérias, histórias engraçadas.

Uma, em especial. Fomos a Montes Claros (MG), quase na Bahia – avião até Belo Horizonte, carro até lá, eu guiando, Otto não dirige –, fazer reportagens sobre produção de pequenos proprietários. Um deles, em Claro dos Poções, produzia rapadura pelo método tradicional, moenda rodada por bois. Saía uma rapadura maravilhosa, ganhamos duas cada um. No dia de voltar a São Paulo, no café da manhã no hotel, percebo Otto com expressão agoniada, pergunto por quê, ele diz “Cacalo, passei a noite em claro – sem trocadilho –, tô que não aguento de dor, uma crise de hemorroidas daquelas”. Imaginei o tamanho do sofrimento dele, um cara que foi torturado dizendo que não estava aguentando. Falei pra ele arrumar a mala enquanto eu fechava a conta do hotel para cairmos logo na estrada, 440 km, quase tudo pista simples. Estávamos com carro alugado, um belo Voyage 1.8, andava bem. Pé na estrada e embaixo no acelerador. De repente, senti que havia passado em cima de alguma coisa e vejo Otto anotando a quilometragem marcada na estrada e me perguntou a que velocidade estávamos; respondi “quase 190…” – crime prescrito, foi em 1989 – e pergunto por que queria saber. Ele responde “você passou por cima de um macaquinho, vou jogar no bicho, no macaco, no km e na velocidade”.

Resumo da ópera, fiz o que não faria hoje, chegamos ao Aeroporto da Pampulha em pouco menos de quatro horas, entregamos o carro e fomos para o balcão da Vasp – sim, ela mesmo. Nossa passagem era em aberto, saía um voo em 40 minutos e outro horas depois. Otto explica para a atendente que estava com um problema de saúde, passando mal, se ela não conseguiria colocar a gente no voo. Ela responde que seria difícil, tinha uma lista de espera grande. Digo pra moça “põe só ele, eu vou no próximo”. Ela puxa conversa, pergunta o que fazíamos em Minas, dissemos ser jornalistas, que tínhamos feito reportagem sobre pequenos produtores, um deles de rapadura. Ela diz “adoro rapadura, mas faz tempo que não consigo uma da boas” Otto diz a ela “põe a gente no voo e você ganha uma maravilhosa”. Digo “duas!”. Ela pega nossas passagens, entra em uma saleta e logo volta com nossos cartões de embarque. Acabou ganhando três rapaduras, Otto ficou tão aliviado de voltar logo pra Sampa que deu as duas dele. Chegamos, eu fui pra casa; Otto, pro hospital; foi operado na manhã do dia seguinte.

(*) Para quem não leu, é esta a nota a que Cacalo se refere:

Amigos se mobilizam para ajudar a Otto Filgueiras, baiano que vive em São Paulo há mais de 30 anos e que atuou em Jornal do Brasil e Gazeta Mercantil, entre outros, também conhecido por sua militância em organizações da esquerda. Autor de Revolucionários sem rosto: uma história da Ação Popular (editora Caio Prado Jr., 2014), vive praticamente dentro de casa há cerca de um ano, em Osasco.

Sofre de uma doença denominada paralisia supranuclear progressiva, um mal neurodegenerativo que atinge regiões do cérebro que controlam os movimentos e também provoca demência. Há alguns meses Otto depende de duas cuidadoras, que se revezam e ficam com ele 24 horas do dia, sete dias por semana.

Contribuições podem ser feitas diretamente para a conta Otto José Mattos Filgueiras (CPF 836 654 988-72) – Banco do Brasil – Agência 0637-8 – Conta 76028-5.

 

* Cacalo Kfouri é repórter fotográfico e titular da seção “Os Sacis do J&Cia”, publicada semanalmente em Jornalistas&Cia

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Gyannini Jácomo Cândido do Prado
Gyannini Jácomo Cândido do Prado
5 anos atrás

Eu o conheci, mas hoje veio a falecer. Uma tristeza.

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