Por Luciana Gurgel, especial para o J&Cia
Uma tradição britânica foi quebrada no sábado (5/9). Muitos assinantes do The Times e do Daily Telegraph não receberam seu exemplar em casa. Alguns dos que mantém o hábito de sair para comprar jornal também não o encontraram à venda. O motivo: um protesto do grupo Extinction Rebellion bloqueou o acesso às gráficas onde esses e outros jornais são impressos.
A ação do grupo ambientalista radical, que em 2019 travou o centro de Londres por dez dias, com ativistas acorrentados a prédios públicos e colados ao asfalto de ruas principais, teve desta vez a imprensa como alvo. O XR acusa os meios de comunicação de não darem a devida atenção à mudança climática.
Mas o grupo também voltou-se contra o domínio da imprensa por grandes conglomerados, particularmente a News Corporation, controlada pelo empresário Ruppert Murdoch, notório por posições controversas sobre meio ambiente. Ao ponto de seu filho mais novo, James, ter deixado a organização em janeiro por discordar do pai.
Sobrou ainda para o controlador do Daily Mail, o nobre Lord Rothermere, IV Visconde de Rothermere. Com 52 anos, ele é o herdeiro do império jornalístico da família. Apesar de bem conceituado no meio − durante a pandemia ofereceu ações aos funcionários como forma de compensar a redução de salários e evitar demissões −, entrou na linha de tiro por representar a aristocracia que domina a imprensa britânica.
A ação do XR aconteceu no décimo dia da nova série de protestos do grupo. Os manifestantes surpreenderam ao se concentrarem de madrugada nas gráficas principais que rodam o The Times, The Sun, The Daily Telegraph e Daily Mail, entre outros. Com varas de bambu, bloquearam ruas que dão acesso aos prédios.
A reação da grande imprensa foi furiosa, denunciando o ataque à liberdade de expressão. E clamando que a mudança climática tem ocupado espaços generosos, embora reduzidos no auge da pandemia.
O Brasil é prova disso. Matérias sobre questões ambientais do País aparecem na imprensa britânica com regularidade, muitas vezes envolvendo produção sofisticada. Para o Extinction Rebellion ainda é pouco.
Políticos e autoridades também condenaram o ato. Mas telhado de vidro é perigoso. O tweet do primeiro-ministro Boris Johnson motivou reações, já que seu Governo mantém relação turbulenta com os veteranos que cobrem política. Pippa Crerar, editora de política do Daily Mirror, alfinetou Jonhson na rede social lembrando suas recentes ações para bloquear o acesso de jornalistas.
Queimando pontes ou conquistando aliados? − O XR não é uma unanimidade. Muitos contestam seus métodos, que prejudicam o cotidiano até mesmo dos que defendem a causa ambiental. Há críticas quanto ao caráter elitista do movimento, com baixa penetração fora de Londres e pouco envolvimento de minorias.
Ao criar confronto com a imprensa, o grupo perde um apoio importante para a causa, que depende da mobilização do público e da pressão sobre políticos e empresários para alcançar resultados. E troca o espaço que poderia ser usado para discutir temas ambientais por uma avalanche de matérias questionando seus métodos e buscando desqualificar os líderes do grupo.
Mas essa aparente insanidade bem pode ser uma estratégia para engajar jovens, mais inclinados a contestar estruturas tradicionais − uma aposta no crescimento futuro da base de apoiadores.
O ataque à imprensa, misturando a questão ambiental com a da concentração em mãos de poderosos, é uma boa isca para encantar gente de uma faixa etária que não se sente representada por veículos seculares.
Embora a imprensa tradicional tenha reconquistado audiência durante a pandemia, e as redes sociais tenham perdido credibilidade como fonte de informação (tema que exploramos no MediaTalks, a nova plataforma do J&Cia que entra no ar na sexta-feira, 11/9), pesquisas recentes mostram o desinteresse das novas gerações pelo jornalismo praticado por grandes veículos.
Não se trata apenas uma questão geracional relacionada ao acesso. No Reino Unido, os principais meios − TVs, jornais, rádios, revistas − estão avançados na digitalização. A BBC tem investido em programas moderninhos no IPlayer, voltados para jovens, sem muito sucesso, o que chegou a ser formalmente apontado pelo Ofcom, órgão regulador de telecomunicações.
E é inegável que os atos espetaculares do XR dão visibilidade à causa ambiental. Mas o da última semana tem o potencial de contribuir para a diminuição do valor do jornalismo aos olhos das novas gerações. Isso não é bom para a sociedade. Os fins podem não justificar os meios.