*Por Luciana Gurgel, especial para o Jornalistas&Cia
A edição do tabloide The Sun publicada em 17/9 colocou novamente em pauta o desafio de encontrar os limites entre notícias de interesse público e privacidade de pessoas famosas. O alvo foi um dos mais populares atletas do Reino Unido, o jogador de críquete Ben Stokes, que brilhou na última copa do mundo da modalidade e ajudou a conquistar o título para o time inglês.
Lendo a manchete (foto), pode-se ter a impressão de que o assassinato de dois meio-irmãos pelo próprio pai tenha sido recente. E isso certamente ajudou a vender jornais e a elevar os índices de leitura da edição online. Mas não foi bem assim.
A tragédia familiar ocorreu há mais de 30 anos. Os meio-irmãos foram assasinados na Nova Zelândia, pelo ex-marido da mãe do atleta. Uma história tenebrosa, mas que não envolveu diretamente Stokes, que viria a nascer três anos depois, fruto da segunda união da mãe.
O jogador manifestou-se furiosamente contra o jornal pelo Twitter, e sua revolta repercutiu em toda a imprensa. Classificou a reportagem como “a mais baixa forma de jornalismo, dedicada unicamente a turbinar vendas sem levar em conta a devastação causada a vidas humanas”.
Mas Stokes não ficou apenas no Twitter. Uma reclamação contra o jornal foi protocolada na IPSO (Independent Press Standards Organisation), um dos dois órgãos de controle da Imprensa do país, ao qual o Sun é afiliado. Alegando confidencialidade, a organização não revelou o autor – se o atleta ou alguém da família. Mas é certo que alguma decisão sairá por parte da IPSO.
Questionado, o jornal justificou a legitimidade da publicação da matéria sob o argumento de ter sido produzida com base em depoimentos de membros da família – uma outra filha do assassino, de um casamento anterior – que forneceu detalhes, imagens e posou para fotos. Observou ainda que o caso foi noticiado na época pela imprensa na Nova Zelândia, sendo de conhecimento público.
Não é de admirar que o assassinato de dois filhos pelo pai tenha ocupado as manchetes. O discutível é o que isso tem a ver com o atleta que nasceu três anos depois, viveu a maior parte da vida no Reino Unido e nem chegou a conhecer os meio-irmãos ou a conviver com o autor do crime. Ou como explicar a manchete que não é clara quanto ao fato de o caso ter ocorrido em passado longínquo.
Para agravar, a história veio a público quando Ben Stokes se recuperava de uma longa exposição negativa, por causa de uma briga na saída de uma boate em Bristol. O caso levou um ano para ser julgado e o atleta acabou absolvido, mas sofreu bom arranhão na imagem.
Outro esportista na mira dos tabloides – Ben Stokes não foi o único a enfrentar constrangimentos familiares por causa da imprensa sensacionalista britânica. Outra vítima na mesma semana foi o jogador de rúgbi galês Gareth Thomas, que anunciou voluntariamente sua condição de portador do vírus HIV ao jornal Sunday Mirror depois que um jornalista abordou seus pais – que não sabiam da doença – para ouvir a opinião deles sobre a doença do filho.
Thomas não revelou qual jornal procurou os pais, mas deu a entender ter sido o mesmo The Sun que expôs o caso da família de Ben Stokes. O que pode explicar sua iniciativa de voluntariamente revelar o caso ao concorrente Mirror.
O Sun é o segundo jornal de maior tiragem no Reino Unido, com mais de 1,2 milhão de exemplares durante a semana, perdendo apenas para o gratuito Metro, mas tem visto a circulação cair. Daí talvez a necessidade de matérias bombásticas.
Em um movimento inteligente, Thomas transformou o limão em limonada. Assumiu o controle da situação ao esvaziar o furo supostamente do The Sun, certamente negociando bem os termos da matéria com o Mirror, e ainda se engajou em uma campanha de conscientização sobre o HIV, que está rendendo bons dividendos.
Os casos alimentam o debate: onde termina a privacidade das celebridades e começa o direito do público de saber tudo sobre a vida dos seus ídolos, chegando a envolver suas famílias? Esta é uma questão sensível no Reino Unido, marcado por vários casos emblemáticos, com destaque para a morte da Princesa Diana, frequentemente atribuída ao assédio dos fotógrafos.
Os órgãos de controle aqui são mais ágeis do que a Justiça, mas, a julgar pelos dois novos casos, isso não parece frear o ímpeto dos tabloides na busca desesperada pela audiência.