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sábado, novembro 23, 2024

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Uma lembrança da Abril

Capa da edição nº 1 do Pato Donald (reprodução acervo Guia dos Quadrinhos)

Por José Maria dos Santos

No dia 12 de julho, há 70 anos − uma quarta-feira −, o Pato Donald ia pela primeira vez às bancas, registrando publicamente a Editora Abril. (Anteriormente, Victor Civita havia lançado o herói Raio Vermelho, que não vingou, fazendo do palmípede, para todos os efeitos, o marco inicial da empresa).

Segundo registra o site Guia dos Quadrinhos, era uma revista mensal em tamanho grande − 20 x 28 cm − que custava três cruzeiros, quantia difícil de ser calculada em reais devido à profusão de moedas e de inflações que tivemos de lá para cá. O lançamento, na linha do tempo, sugere ter sido uma temeridade, pois ocorreu a quatro dias da final da Copa do Mundo de 1950 entre Brasil e Uruguai que empolgava todo o País. Quem iria dar atenção para uma revista infantil naquelas circunstâncias, quando o Brasil se preparava para viver um dos seus dias mais gloriosos, que foi tragicamente abortado pelo segundo gol de Gighia?.

Mas Victor Civita, conforme revelou sua trajetória, gostava de arriscar. (Quando lançou 4 Rodas, em 1960, disseram que a revista iria durar três números, porque tínhamos somente três rodovias que mereciam esse nome: Dutra, Anchieta e Anhanguera). Mandou tirar O Pato Donald com 82 mil exemplares. Naquele ano a população brasileira era de 51.944.397 habitantes e São Paulo, por todos os títulos o principal mercado, dada a dificuldade de distribuição, tinha 2.198.096. De início, a publicação era mensal; mas logo se tornaria semanal e assim permaneceria, confirmando o tradicional e posteriormente famoso otimismo do editor. A revista infantil iria ganhar a companhia de Capricho em 1952 e de Manequim, em 1959, construindo o alicerce que faria da Abril a maior editora da América Latina.

Capa da Revista SP (reprodução acervo Cacalo Kfouri)

Certamente, os 70 anos deverão merecer atenção mais aprofundada de Jornalistas&Cia, considerando a importância da data. Por ora, quero adiantar aqui uma curiosidade da casa, relativa, salvo engano, à única revista que a editora produziu deliberadamente para não ser lançada. Foi uma espécie de protótipo, como se verá adiante, batizada internamente como SP, que se tornou seu logotipo. Como o título sugere, era uma publicação destinada à cidade de São Paulo, inspirada na londrina Time Out e no célebre Metropolitan Diary do New York Times.

Essa aventura ocorreu na virada de 1974 para 75. Mestre Paulo Patarra era o chefe da equipe, seguido por Luiz Fernando Mercadante e Eurico Andrade. Depois vinham Hamílton Almeida Filho, eu, Cacalo Kfouri e Luigi Mamprin na fotografia, Carlos Grasseti na arte. Sem esquecer, é claro, a habitual nuvem de jovens estagiários em torno do Ppat, como Patarra era chamado, devido à sua rubrica nas ordens de serviço.

Como convinha a uma publicação com aspirações metropolitanas, a matéria de capa, feita por mim e Hamiltinho, reunia o Zoológico paulistano e as primeiras manifestações apocalípticas da poluição na cidade. A pauta, sua justificativa e a forma de execução, decididas pelo trio de chefes, eram oportunas e brilhantes. A cidade estava conhecendo o fenômeno da inversão térmica, até então inédito aos paulistanos, que, além de comprometer concretamente a qualidade do ar, afetava fisicamente as pessoas. Assisti, no centro da cidade, a cenas dramáticas de pessoas lacrimejando, na verdade derrubando lágrimas à vista de todos, e a consequente corrida às farmácias para comprar colírios e remédios contra asma ou bronquite, que estariam na capa dos jornais na manhã seguinte. Como contraponto, o prestígio do Parque Zoológico, que permanece, estava no auge, era o xodó da cidade., particularmente o formigueiro montado pelo diretor Mário Autuori. Juntava gente, à semelhança da Mona Lisa no Museu do Louvre.

Também havia o fã-clube de um orangotango que se postava numa espécie de plataforma à meia altura, no seu recinto, estendendo a mão suplicantemente à frente, como se pedisse esmola, para as pessoas atirarem comida. Quando um dos zeladores fazia soar seu apito de repressão, o orangotango descia agilmente do seu posto, pegava areia do chão e lhe atirava. (Autuori é autor do mais convicente argumento que ouvi para demover o público de oferecer guloseimas aos animais: “Nos fins de semana, o Zoológico recebe cerca de 10 mil pessoas. Se cada uma der uma pipoca ao macaco, não há estômago de macaco, e o resto,que aguente”.).

Luigi Mamprim, encarregado de providenciar a fotografia que resumisse os dois temas, surgiu com a foto de um macaco-prego, ou bugio, não tenho certeza, portando uma máscara contra gases; o primata apontava aquele filtro em forma de focinho respirante para os leitores. Ficamos todos encantados, e curiosos, em saber como Luigi conseguira prender o equipamento em bicho tão irrequieto. Ele nos fitou com desprezo e alguma comiseração: “Arrumei uma máscara, fui no Museu da USP e coloquei num macaco embalsamado”.

Após o fechamento, a revista seguiu rotineiramente  para a gráfica. Mas o processo de impressão foi interrompido na boca da rotativa, como se diz no jargão dos gráficos. Foram processadas apenas as provas em ciano, que é uma espécie de checagem antes de se iniciar a impressão definitiva. (Essas provas são em azul ciano, porque é a melhor coloração para identificar problemas na imagem). Paulo Patarra informou que “Seu” Victor havia mandado guardar as provas no cofre da editora e nada mais foi dito.

Daquela experiência, que durou alguns meses, guardo uma lembrança sarcasticamente original. Numa certa tarde, Carlos Grasseti, ou algum assistente dele, estabeleceu um título com a exígua medida de duas linhas com até quatro toques para uma matéria que Hamiltinho estava fechando. Hamiltinho atendeu com a rapidez da sua aflição. Assim:

Cu

Cu

(Quem já fechou matéria nessas condições sabe o tormento que Hamiltinho tinha pela frente.)

Em 1983 ocorreu o lançamento de Veja São Paulo, a Vejinha. Até hoje suspeito que o Projeto SP foi uma espécie de ensaio.

José Maria dos Santos

Esta é novamente uma colaboração de José Maria dos Santos, ex-Diários Associados, Manchete, Abril e Diário do Comércio, de São Paulo, entre outros.


Tem alguma história de redação interessante para contar? Mande para [email protected].

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